Sem sentido

Anita Regina Lis
impublicável.
3 min readNov 17, 2022

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de todas as coisas inúteis que faço (ou fazia), escrever talvez seja a mais inútil. as linhas emancipadas que não querem dizer nada, me falam tanto de tudo, de mim, de tantas mudanças acontecendo. me falam da vida, que eu não sei. mas isso foi antes. antes eu podia escrever as experiências. capturava, assim, os momentos. hoje pareço impedida de dizer, pois já não consigo escrever. há tempos não tenho conseguido escrever. anoto. rascunho. mas não escrevo. não como eu escrevia. a escrita minha, pra mim, tinha vida. tinha calor. agora é insossa. sem sentido. mas eu não queria mesmo um sentido. queria era só escrever. com vida. com calor.

o devir. o tempo. o nada. o ser.
a letra. a palavra. a linguagem.

eu sendo eu, da maneira mais autêntica que seu sei: sem saber quem sou. vivendo, apenas. entregue (ou quase) à vida. quanto tempo levei para chegar a esse exato momento, não conseguiria dizer. desse tempo que me foge e que me arrasta, que me mostra que a vida é mais. a vida é sempre. a vida é coisa de viver. a vida é até mesmo isso de ‘palavra’. eu nem sempre sou, e do que sou, nem sempre sei.

deságuo. me refaço. tanto e tantas vezes quanto não posso. me vejo cada vez mais viva ao consumir a vida. sinto a vida que escapa todo dia. em cada momento vivido: passado.

inexoravelmente sempre eu. ainda que sempre já sendo outra. há um mundo me chamando sempre. nem sempre ouço. nem sempre quero. me encontro novamente e sempre no mesmo lugar. que já não é o mesmo lugar de antes. nem eu sou eu mesma de antes. tudo em mim é antes e agora e depois. e ainda outra coisa a mais. tudo em mim é ser. até o que não sou. mas disso, não sei.

quero as águas claras e limpas lavando meu corpo. limpando minha alma. escorrendo em meu rosto.
a vida é líquida.
é crua.
é salgada.

nada a lamentar. tudo é vida, afinal. vivo com gosto e com gozo o que a vida me traz. nada me passa despercebido. e de novo, e sempre, nada é igual a nada. o corpo que pulsa, o desejo que brota, a tristeza que ensina, a alegria que habita: tudo é vida, afinal!

reaprendo comigo mesma o viver. ressignificando a importância dos fatos, dos atos, das pessoas, das saudades, dos amores, das amizades, das dores.

não sei se é só tristeza. é uma nostalgia que me toma de assalto. é como se todo final me falasse tão alto, que não sei bem escutar. a morte do dia. a morte que eu vejo no mundo. a morte que habita tudo que é vivo. a morte. seja ela qual for, me fala cada vez mais da vida.

quero aproveitar todos os dias que não aproveitei. nada mais me escapa. nem o grilo que agora cricrila… nem o bater de asas da borboleta que sonhei… nem meu gato que ronrona lá no quarto… nem a respiração tão viva do meu filho aqui ao lado… nem meu coração batendo aqui no peito… nem o seu coração batendo aí no seu peito. nada mais me escapa. e já não posso dormir…

queria poder colocar no papel tudo que vai à mente. talvez eu possa. sem que isso faça sentido algum. talvez eu nem queira fazer sentido. a falta de sentido que quero ter, faz tanto sentido pra mim, que já não encontro o sentido que eu tinha.

enxergar os pequenos acontecimentos especiais que acontecem todo dia, e que por isso mesmo, ninguém vê. sentir o encanto do dia ao arregalar os olhos e ver o que sempre esteve ali. nada mais passa despercebido daqui em diante.

seria isso ‘’o’’ amor? não saberia te dizer… importa que esteja percebendo a vida se mostrar assim, sem roupa. nua e crua. importa agora, que a essência das coisas não pode ser compreendida, porque se assim o fosse, já não seria. um nascer sem saber para quê, nem quando vai partir.

não entendia nada do que dizia. e isso era bom…

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Anita Regina Lis
impublicável.

se eu sinto, escrevo. e sobre isso, quase não há mistério.