SOBRE RIBEIRÃO PRETO E DESPEDIDAS

Gabrielli Duarte
impublicável.
4 min readOct 17, 2019

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Ribeirão Preto, 2019.

Dizem que há uma tonalidade específica em uma melodia triste, que lhe confere um toque a mais de vivacidade e beleza. Por isso sou pássaro de canto belo. E hoje a minha tristeza vem da despedida. As coisas não acontecem de súbito, porque está escrito. Foi feito. Mas nos colocamos em constante estado de alienação. Abstração imersiva que nos afasta a possibilidade de conhecer as coisas do porvir. A vantagem desse mecanismo é que o mundo se desfolha em novidade, construindo-se em incertezas que dão um certo frio na barriga, um certo ímpeto em esperar. Essa espera se tece feito o traçado da aranha, convertendo-se em uma densa e propositada teia de esperança. Digo propositada porque a nós nos serve não para apanhar presas, mas para nos segurar nas frágeis estruturas da vida. Dizem que a velocidade não é problema. Não que nosso corpo não aguente altas apostas. É a apelação, a mudança repentina, o sair de um estado para outro completamente diferente que nos gera desconforto, machuca nosso ser e desconstrói tudo aquilo que pensamos como nossa identidade. Fragmentados, não conseguimos mais seguir, e culpamos o tempo. Por estar passando rápido demais, por nem nos permitir a honra do deleite. Como com quase tudo na vida, erramos. Não é um problema de tempo, mas sim de percepção. São as coisas que vem abruptamente alterando nosso estado inicial, induzindo-nos a atingir estados nunca dantes alcançados, que nos geram o mal-estar. Se pelo menos estivéssemos mais conscientes. Mas o problema vem de um paradoxo antigo. É possível aprender uma maça sabendo apenas o conceito de uma maçã? Sem poder tocá-la, sem poder cheirá-la, sem poder vivê-la? Não se pode conhecer a maçã apenas com as explicações teóricas sobre o que é a maça. Assim como não se pode saber o que é mudança, o que é recomeço, o que é o fim, quando não se esteve lá para contar a história. E só quem passou por uma aceleração bruta de um estado para o outro que sabe as implicações na própria pele.
Estou ensaiando esse momento nas grutas do meu ser já faz uns meses. Mas só agora com a realidade batendo à porta, e a vida me gritando que já não há mais tempo, que me deparo com a implosão de todos esses sentimentos, tão novos quanto as folhas das árvores que caem durante o outono. Como se minha vida inteira tivesse que procurar novos significados, como se todas as velhas instituições a que estive agarrada até agora ruíssem, deixando-me desnuda num oceano aberto. Porém seco. Estamos acostumados a viver de um modo e a vida vem com a sua maior, senão a única, lição de que nada é para sempre. Despeço-me de Ribeirão Preto, das noites de café e arritmia, como quem acaba de ser resgatado de um grande, terrível e confuso acidente.

"Queria ter asas pra voar
Bem distante pra não mais lembrar
De tudo que a minha vida passou, um novo começo chegou"

Exatamente o minuto seguinte ao resgate. Em que você cansado, confuso, desnorteado é recebido às palmas, pronto para ser embalado em um ombro amigo. Com a percepção prejudicada demais para conseguir discernir o que se perdeu, o que se ganhou. E aquela enxurrada de felicitações e contentamentos descem pela calçada de seus medos e compõem o mosaico da confusão dos seus sentimentos. Você estava lá até agora, o acidente foi feio e repentino, a situação de improviso provocou uma tensão, mas o tempo te habitou a tudo aquilo. E você passou até a tolerar a situação, até aceitar tudo aquilo como a sua própria realidade e sua inabalável zona de conforto. Até que, quando você menos espera, aparecem luzes e vozes e forças e pesos que te puxam dali, como que te relembrando que, de fato, ali você não pertence. Resta então a agonia de um sísifico processo. Um ciclo sem fim. Que apenas recomeça para um dia, enfim, terminar em morte.
Logo agora que me acostumei, despeço-me. Com um buraco em meu peito provocado pelos efeitos colaterais da transição. Como quem se recusa a deixar as velhas roupas, que já não servem. Como quem se recusa a abandonar a casa aos pedaços. Pelo simples comodismo. Ribeirão Preto. O Santa Úrsula. A minha história. A minha vida. Serão apenas mais uma memória que não conseguirei contar, e que ninguém se importa. Vai doer. Até as coisas se assentarem de novo e adquirirem um movimento contínuo, à espera de serem abaladas por uma nova força e recomeçar o doloroso processo de novo.

“Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno e asa rimada.
E um dia sei que estarei muda:
— mais nada.”
Cecíllia Meireles

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