Sobreviventes

Alexandre Brandão
impublicável.
5 min readJun 9, 2024

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Photo by Sara Kurfeß on Unsplash

Ela estava em uma mesa da área de fumantes do Bar Beija-Flor. Uma gota escorria pela lateral da Heineken de 600mL. O cinzeiro estava cheio de cinzas de Marlboro vermelho. Algum sertanejo universitário em início de carreira cantava alguma música ruim no canto do bar. Os outros clientes conversavam e riam e gritavam e batiam palmas no intervalo das músicas. Uma mosca batia insistentemente na lâmpada sobre as outras duas mesas vazias da área de fumantes.

As mesas ficavam no fundo bar. Pouca gente ia ali. Poucos fumavam e bebiam e gostavam do silêncio e da solidão e da penumbra provocada pela iluminação fraca das lâmpadas baratas.

Ela fumava e bebia e aproveitava o silêncio para observar as ondas quebrando sobre a areia no fim de tarde fresco do começo do inverno no Rio de Janeiro. Os carros iam e vinham e as pessoas saíam da praia sujas de areia e de sal, carregando suas toalhas e boias, com seus cabelos molhados e um sorriso no rosto.

“Então você ainda frequenta esse lugar?”, ele disse e ela não precisou se virar para atribuir um rosto àquela voz.

“Achei que tinha ido embora para sempre, Henrique”, ela respondeu.

Ele riu baixinho. Sua risada era rouca, contida, gostosa de ouvir.

“Eu fui”, Henrique Garcia admitiu.

“Qual a razão de voltar? As histórias em Los Angeles não eram tão interessantes quanto as daqui?”

Ele puxou uma cadeira e chamou um garçom e o garçom trouxe um copo e Henrique o encheu de cerveja. Bebeu tudo de uma vez e completou o copo outra vez e puxou um cigarro. Um Marlboro Vermelho.

“Elas eram”, disse, finalmente. “Mas faltava alguma coisa.”

“O quê?”

O escritor encarou a praia e as pessoas e o sol se encaminhando para o outro lado do mundo e suspirou. Tragou a fumaça e soprou a fumaça e suas pupilas dançavam na órbita de seus olhos, procurando desesperadamente por alguma resposta.

“Não sei”, disse e coçou os fios ralos que cobriam sua cabeça. “Se eu soubesse talvez tivesse continuado por lá. Que tal falar sobre outra coisa?”

“Sobre o quê?”, ela disse.

Ele olhou em volta.

“Sobre como esse lugar está quebrado e fedido. O que aconteceu?”

“Você não estava mais aqui para sustentá-los.”

“Muito engraçado”, Henrique apagou o cigarro no cinzeiro, enquanto encarava as pessoas pela porta estreita e prestava atenção na música ruim. “Essa área também era maior. As paredes não fediam tanto. A música era melhor. Parece que tudo deu errado no tempo que fiquei fora.”

“Nem tudo”, ela disse.

“É mesmo? O que deu certo?”

“Você ganhou alguns prêmios.”

“E deveria ter ganhado mais, só que eles roubaram. Mas não é sobre isso que estou falando. Você sabe disso.”

Ela encarou o cigarro apagado entre seus dedos indicador e médio. Há quanto tempo estava ali?

“Sim. Eu sei. Os outros também pararam de vir.”

“Só você continuou.”

“Só eu continuei.”

Não disseram nada por um tempo. Uma Kombi colorida passou pela avenida em frente ao bar. Luzes piscavam sobre o capô, os vidros estavam cobertos por um insulfilm muito escuro e duas mulheres brindavam em um teto-solar improvisado na forma de um grande retângulo sobre o veículo.

“Nunca vi um desses em LA”, ele falou.

Ela riu e ele se lembrou de como era bom escutar a risada dela, mas não teve coragem de tirar os olhos da rua e encarar a pessoa do outro lado da mesa. Tinha medo de não reconhecer a mesma garota que ele deixara para trás antes de embarcar atrás de sonhos que agora pareciam pequenos demais.

Era como Morrissey cantava, ele pensou e fez uma careta e afastou os pensamentos antes de começarem a formar a velha bola de neve que o mandavam para o ciclo do qual tentava escapar.

Mas ele sempre me puxa de volta.

Sacudiu a cabeça e bebeu a cerveja e encarou a mesa de madeira rachada e mofada. Talvez ainda fosse a mesma mesa de seis anos atrás. Ou talvez fosse alguma mesa velha da área agitada do bar.

“Por que voltou?”, Carolina disse. “De verdade.”

Ele puxou um cigarro e o isqueiro e refletiu. A fumaça ajudava. O sabor carregado de nicotina e tabaco. A morte invadindo seus pulmões. Henrique Garcia sentiu, pela primeira vez em muito tempo, o desejo de ser brutalmente franco.

“Porque não tinha mais nada pra mim em Los Angeles”, falou. “Porque eu encarei a morte e ela me assustou.”

“Logo você, hein?”

“Logo eu.”

O vento soprou os cabelos dela e ele sorriu e ela também sorriu, mas abaixou o olhar para o copo e bebeu a cerveja de uma vez. Depois fez um gesto para um garçom, mas ninguém viu. Ela continuou com o braço erguido por bastante tempo antes de um deles perceber e trazer outra Heineken de 600mL.

“Pode trazer mais uma”, Henrique falou. “Essa daqui não vai durar muito.” Então ele encheu o copo e esvaziou o copo e encheu o copo outra vez. Acendeu mais um cigarro e segurou a fumaça por muito tempo antes de soprar um fiapo ralo, quase invisível. O garçom chegou com outra cerveja e sumiu em direção à parte barulhenta do bar.

“Quem diria, hein?”, Carolina disse.

Ele se lembrou de como ela gostava desses joguinhos e sabia que sua próxima frase deveria ser:

“Quem diria o quê?”

“Você não esqueceu!”, ela disse e sorriu e tomou mais cerveja; suas bochechas estavam ficando rosadas. “Quem diria que ainda estaríamos aqui, bêbados, fumantes e solitários nessa idade.”

Ele riu.

“Só de estarmos vivos já é surpreendente.”

Ela ergueu o copo.

“Nós sobrevivemos!”, falou.

“Nós sobrevivemos!”, ele concordou e também ergueu seu copo.

Escutaram o som do toque dos vidro e sentiram a cerveja gelada escorrendo por suas gargantas e riram até parecerem dois idiotas e um pouco além disso.

O vento soprou. Dava para sentir o distante cheiro da chuva e ver os raios colorindo o céu sobre o oceano. Longe. Tudo muito longe. O sertanejo ruim, a gritaria e as risadas dos jovens, os garçons, os carros cruzando a avenida, a escuridão noturna expulsando a claridade do dia. Tudo muito longe. Los Angeles, os prêmios, os livros e as histórias em sua mente. Muito longe.

Menos ela. Bebendo do outro lado da mesa, usando a franja para disfarçar as rugas da testa e cobrindo a boca quando sorria para esconder os dentes amarelados graças aos anos abraçada à nicotina e ao tabaco delicioso de seus Marlboros vermelhos.

“Tá pensando em quê?”, ela disse e bebeu.

Ele riu baixinho.

“Em você.”

A chuva chegou de repente. As nuvens cobriram a praia e o bar e as gotas grossas demais expulsaram o restante dos banhistas de uma só vez.

Ela sorriu. Eles beberam. O mundo que se acabasse em água. Nada importava além daquela mesa. Eram dois sobreviventes e beberiam à isso até a madrugada virar manhã e a chuva se tornar um dia quente e abafado do outono carioca.

O resto podia esperar.

AB — 16/04/2024

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Alexandre Brandão
impublicável.

Às vezes um cigarro é só uma fumaça e uma história é só uma história