Zinnia Elegans
impublicável.
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5 min readMar 7, 2023

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Textos de verão

Ruídos de fevereiro e amores impossíveis II

E lá nos limites intocáveis do invisível subsiste o azul do céu. Inviolável poder. Sua eminência era um mistério até pouco tempo, um dentro das 7 cores do espectro solar que incide acima de todos e invade nossa retina. Incandescente. Que me divide a lembrança de um calor inquietante do sol de meio dia e a sensação de consolo após uma lufada de brisa litorânea atravessar a pele. E cheiro de maresia. De protetor solar exalando na sua mais intensa fragrância no corpo bronzeado.

Azul que é quente aqui e frio no hemisfério norte. Um azul que me lembra dias felizes ou quase felizes… não importa que o dia termine árido ou fértil, o azul se sustenta na luz que o alimenta, mas a mesma luz que se afasta e desaparece, o empalidece, e enegrece frio e silencioso como a chegada de uma tempestade sorrateira. Mas retorna, sempre no outro dia o mesmo azul.
Céu pintado de azul e um gramado torricado esse era o cenário.

É verão, estou em minha casa, andando pelos pátios do condomínio que são divididos entre concreto e terra, passo por um pátio de árvores que lutam por espaço entre o chão de concreto. Suas raízes expostas me lembram algum conto fantástico, uma luta de algo vivo e incontrolável contra um monstro forjado de pedra, frio e sem vida.

Árvores que sobrepõem o concreto, invadem meu campo de visão e assim prefiro. Penso em algum momento ser transportada dali, por entre as fendas transpassadas daquelas árvores, pra alguma realidade distante, por onde todos os delírios possam se consumar.

Talvez eu precise escrever sobre isso para que eu me sinta desatulhada. Pra que eu expulse o desejo do meu corpo, o desejo de consumar aquilo que só existe dentro do meu imaginário avesso. insaciável, por vontades que fogem do natural, do ordinário, do que se espera. Mas o que é o avesso? O que se espera? Para quem eu devo me desculpar, pelos meus desejos obscenos.

Dia 8 de fevereiro, em um consciente impetuoso desejo pensei em ir vê-la naquele local impermanente. Imprevisível. Onde encontros são milagres e milagres são encontros. Dias e meses a fio sem a mínima vontade de acordar pra viver o dia antes do meio dia, ela foi a única e possível razão pra que o dia fosse diferente.
Pedi um cappuccino grumoso e uma garrafa de água na lanchonete. Eu entendi o sabor, eu entendi o propósito. Doce e forte aroma de canela. Absolutamente tudo sai pela culatra, não posso contra o acaso. E essa foi a magia do dia. Tudo desde o início já estava decidido a não ser como eu idealizei. Porque tudo é muito maior do que a minha mera ignorância de prever o futuro. Ela não estava lá. Ela nunca esteve lá. Talvez se minha consciência pudesse preencher as lacunas do imprevisível, eu saberia. Talvez se ela pensasse em me encontrar nos encontraríamos em todos os lugares. Em todos os momentos. Talvez isso aconteça em algum lugar onde os encontros impossíveis aconteçam.
É um espírito obsessor que me corrompe a cada pensamento sobre ela. Com ela. A partir dela. Me consome em conversas incabíveis, abraços vazios, olhares perdidos. Penso em mandar um e-mail, o único contato que restou. Tento exprimir da forma mais singela e imperceptível minha preocupação por ela, se ela passou bem na virada do ano, se ela se encontrou com as pessoas que ama. Se ela ainda ama alguém tanto que não caberia amar mais outro alguém nesse último pedaço de vida que lhe sobrou.

Se ela ainda vai me esperar mais uma vez e estar presente quando eu precisar.

Aquele teria sido o último abraço do ano, o único momento em que eu decidir não prever nenhum gesto, nenhuma palavra, nenhum silêncio. Ela não cheirava a nada, nada que me lembrasse qualquer coisa, talvez ela seja alérgica a fragrâncias. Eu levei um bombom como uma tola estúpida faria. Eu usava uma fragrância cítrica nesse dia — acho um desserviços a venda de perfumes doces e florais para moradores tropicanos, extremamente sufocante a experiência de sentir algo tão doce ou tão floral evaporando no vapor dos trópicos — .

Eu usava cítrico e ela não usava nada. Eu lembrei dela em cada detalhe do dia, talvez ela tenha percebido, pois o abraço foi apertado, as palavras gentis, o tom de voz suave e aveludado como se meus ouvidos pudessem saboreá-las, o doce e agradável sabor daquelas palavras. Eu guardei todos esses momentos em mim como se mais nada importasse, eu poderia morrer naquele instante. Nada mais importaria, apenas a lembrança consistente e ressonando para toda a eternidade, acho que se algum dia alguém me permitisse viver um dia eternamente, eu saberia que esse seria o único momento que valeria a pena viver.

Eu digo ‘vim pra que me não esqueça, pra te lembrar da minha existência.’ Ela responde ‘ah I., eu nunca vou me esquecer de você.’

E hoje, dia 8 de fevereiro, o dia onde decidir por todas as escolhas erradas desde o primeiro passo fora da cama, eu pensei naquele dia e em todos os outros encontros fortuitos, em todas as palavras não ditas, em todos os abraços vazios, em todos as histórias não vividas e fui. Mas ela não estava. Eu decidi escrever isso à luz das janelas empoeiradas da biblioteca, pensei que esse sentimento não pudesse se esvair assim como em mais um dia onde todos os planos escapam por entre os dedos. Eu precisava dizer, dedicar mais uma vez um tempo que nunca mais vai retornar à ela, porque eu amo, amo estar obcecada por essa vontade de não ter, essa vontade de amar alguém que eu criei em mim. Essa vontade de esperar pelo que nunca vai acontecer, assim como Marguerite Duras faria.

Um ar áspero, que irritava as vias. Metálico. Eu sempre reclamo do mesmo ar, parece não ser mais como o ar da infância, a gente sabe que não. Um ônibus coletivo trepidante, lamuriante. Gritava as ferragens como um grande monstro de metal estrangeiro que ninava minha tristeza. Eu gastei tanto dinheiro esse dia, ingeri comidas vazias, fiquei cansada. O sapato apertado que massacrava meu dedão a mais de 4 anos. Eu nunca desistir de pensar em que ele poderia ceder algum dia, alguém sempre precisa ceder, eu tenho cedido por 4 anos a dor pulsante no dedão, uma cadência pulsante entre dedões e um coração solitário.
Me irritava respirar, me irritava andar, me irritava qualquer tipo de socialização. Mas ao mesmo eu queria, eu precisava. Para me sentir presente. E esconder a falta, a frustração dentro das minhas estúpidas tentativas de fazer as coisas darem certo.
Eu durmo, minha maquiagem borra e tenho vontade de chorar. Não vou molhar as plantas hoje. Elas estão morrendo. Já não sei mais se choro por Marguerite (1) ou se choro por esperar um futuro que não existirá.

(1) Marguerite Duras, La Douleur. 1985

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