TOLKIEN E A IDADE MÉDIA, UMA BELA COMBINAÇÃO… SERÁ MESMO?
ESTA NÃO É UMA CRÍTICA AOS FÃS DE J.R.R TOLKIEN!
No entanto, é uma crítica. Uma crítica à ideia tão disseminada e aceita atualmente sobre a suposta colaboração das obras de Tolkien em popularizar temáticas medievais na cultura pop.
Não há a menor dúvida quanto a contribuição de O Hobbit (1937) e O Senhor dos Anéis (1954) na ficção literária do século XX e muito menos no que tange a criação de universos fantásticos. Tolkien cria mundos e sociedades praticamente em um mesmo universo com suas especificidades e complexidades, culturas e línguas. Utiliza de diversas referências mitológicas europeias para dar origem a uma mitologia fantástica singular presente em suas obras. Ninguém discute o talento e a contribuição de Tolkien nesse sentido. Mas é interessante notar que há quem diga que as referências mitológicas utilizadas por ele e que possuem origem nas antigas mitologias europeias de povos célticos, germânicos, saxões e etc são exemplares na popularização de contextos e temáticas medievais. Começando pela própria ambientação universal da “Terra-Média”, passando pela exposição de cavaleiros e ideais corteses; elfos; anões; magos; dragões; castelos; florestas densas e misteriosas; orcs e a representação do Maligno até a referência a doce vida campesina dos pequenos hobbits no Condado. Tolkien transmite ao público sua mitologia fortemente referenciada pelas mitologias pagãs do mundo antigo e medieval, mas não sem sustentar, como o próprio autor dissera exaustivamente em vida, a construção da alegoria do que ele chamava de Grande Mito — o Evangelho de Cristo. Até mesmo nesse quesito, vemos o quanto a medievalidade pulsa em Tolkien e, assim, parece corroborar o argumento central da contribuição tolkiana para uma Idade Média pop.
De fato, contribuiu. Mas a questão que se levanta não é “se”, mas “o quanto?” e “como?”… se realmente, além das pretensões artísticas, há uma contribuição para que o grande público enxergue os elementos referentes ao mundo medieval com um olhar menos preconceituoso e estereotipado. Muitos fã-clubes de Tokien no Brasil e no mundo, além de grupos de estudos especializados na área de estudos medievais e outros grupos entusiastas fora da Academia endossam uma opinião favorável às obras de Tolkien nesse sentido. Eu não. Tendo em vista o grande desafio enfrentado por historiadores da atualidade em lidar com estereótipos culturais reproduzidos na cultura pop em filmes, séries e livros sobre o universo medieval — os chamados neomedievalismos — não acredito que a leitura alegórica da Idade Média em Tolkien seja capaz de romper com certos estereótipos que contribuem em muito, artisticamente, sem dúvidas, mas não para a abertura a um conhecimento mais crítico e detido do medievo.
Em suma, quando no universo mitológico de Tolkien não temos referências negativas do mitos pagãos antigos e medievais representados — o que é ótimo para romper com a associação do período medieval com o obscurantismo ao qual é tradicionalmente associado — há, no entanto, a perseverança de idealizações românticas sobre tais elementos. Novamente: desde os cavaleiros e seus ideais corteses até a doce vida campesina dos pequenos hobbits, passando pela presença de magos, anões e elfos e a vitória sobre criaturas horrendas, temos a inserção desses elementos oriundos de mitos antigos e medievais numa perspectiva romantizada; bela; uma espécie de paraíso imaginário que muito lembra aquela visão dispensada pelos autores do Romantismo no século XIX. Belos e bravos cavaleiros, lutando por causas nobres e salvando princesas; se tornando reis admirados por seu povo; auxiliado por magos — tal como na lenda de Arthur — e enfrentado o Mal sob diversas faces no caminho. Hobbits que, como dissera Tolkien, viviam numa espécie de utopia campesina para qual o próprio Tolkien gostaria de escapar e que podem ser lidos como uma simbólica referência aos camponeses medievais por suas vestes, costumes e ambientação. Tolkien, felizmente rompe com o estigma renascentista sobre o obscurantismo medieval, porém, com muito fôlego, reforça o estereótipo romântico de uma Idade Média idealizada e à serviço de valores e ideais burgueses impulsionados no século XIX.
Não podemos esquecer da finalidade a que Tolkien atribuiu o seu próprio universo mitológico — alegorizar o Evangelho de Cristo. Como bem sabido, Tolkien era um católico fervoroso que não queria abrir mão de introduzir ou direcionar os elementos de seu universo à sustentação da própria cosmovisão que mantinha. Em termos de composição artística, é bastante difícil que um autor deixe de lado suas crenças pessoais no momento de produção. Elas se tornam perceptíveis, direta ou indiretamente na obra, ainda mais quando o autor as reconhece e admite suas intenções ao grande público afora. Não é um problema. O problema aparece quando se interliga a identidade religiosa do autor; suas finalidades teleológicas em suas narrativas e as associam naturalmente com a popularização do conhecimento a respeito do mundo medieval. Ora, a quem poderia interessar a legitimação da popularização de tal conhecimento através de uma narrativa cristã alegorizada, com toda pompa romântica sobre o mundo medieval e ainda se valendo da subserviência de elementos mitológicos pagãos para tal feito? Ainda causa prazer ou naturalidade o desconhecido; o ocultado; o pagão; o céltico; o germânico; o saxão; o ‘bárbaro’ servir ao cristão; ao cortês; ao nobre; ao romanizado?
Com toda a opressão e supressão de corpos e consciências impulsionadas pela Igreja e pelo pensamento cristão tradicional desde os tempos medievais e ganhando terríveis contornos no mundo contemporâneo, não diria que existe realmente uma ‘contribuição’ cultural positiva para a medievalística do Brasil e do mundo ter nas obras teleologicamente cristãs e conservadoras de Tolkien um exemplo de medievalismo ‘indireto’ para a cultura pop. Ao menos, não uma cultura pop que se pretenda romper com estigmas e estereótipos culturais acríticos nos tempos atuais e não uma medievalística que busque contribuir com os conhecimentos cientificamente produzidos quando se trata de referências históricas, ainda que alegorizadas.