As histórias que teu cérebro te conta

Dalmo Borba
indō
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11 min readApr 27, 2020

Em 2009, a ativista norte-americana Sarah Shourd foi presa com dois amigos pela polícia iraniana próximo a uma cachoeira na fronteira com o Iraque. Ao contrário dos seus amigos, que compartilharam uma cela, ela foi trancafiada numa solitária por 410 dias, acusada de espionagem, o que lhe causou sequelas das quais se recupera até hoje. Ela conta que, após algumas semanas na prisão, sentiu-se em um estado de isolamento em que “sua mente começa a desacelerar e seus pensamentos se tornam repetitivos”.

“A uma certa hora do dia o sol entrava através da minha janela e iluminava todas as pequenas partículas de poeira da cela. Eu via aquelas partículas de poeira como outros seres humanos ocupando o planeta. E eles estavam no fluxo da vida, estavam interagindo, estavam pulando um no outro. Eles estavam fazendo algo coletivo. Eu me via em um canto cercado por muros. Fora do fluxo da vida.”

Privado de interação social, o cérebro de Sarah começou a criar uma realidade própria, fantasiando seres com os quais precisava interagir. Ela experimentou o oposto do que vivemos em sociedade. Nossos cérebros são alimentados por estímulos sociais o tempo todo: conversamos com outras pessoas, trocamos mensagens, olhamos nos olhos de alguém, damos um abraço. Precisamos dessa interação, dessa troca, para viver.

Nossa mente se transforma com a interação ou com a falta dela. Diversas experiências já comprovaram que nossas emoções são afetadas quando vemos outras pessoas sorrindo, chorando ou sentindo dor. É como se a realidade do outro construísse a nossa própria realidade. É daí que advém o que conhecemos por empatia: a capacidade humana de se sensibilizar com a dor do outro, de se colocar no lugar dela ou dele.

Esse é também um dos motivos que faz com que as histórias, narrativas e contos nos preencham tanto e conquistem nossa atenção. Elas nos envolvem, seduzem e hipnotizam. Sabe quando “aquela sua tia ou tio maluco” fica conversando com o personagem da novela ou do filme? “Não faça isso, Ana, ele vai matar você.” Ou quando você sua frio e pula de susto numa cena de filme de terror? Ora, você sabe que é ficção — racionalmente — , mas seu corpo ignora isso e se comporta como se estivesse pronto para ajudar o próximo ou para fugir desesperadamente. Graças à empatia, somos capazes de gestos como torcer pela mocinha ou mocinho (lembre-se dessa palavra) da novela — mesmo sabendo se tratar de um personagem fictício — , cuidar de crianças órfãs, e de ajudar até desconhecidos. Mas por que isso acontece?

Na prática, nosso cérebro funciona como se realmente sentisse dor pelos outros. Um conjunto de estruturas cerebrais conhecida como Matriz da Dor é acionado toda vez que sentimos dor (por exemplo, ao ser espetado por uma agulha), ou quando vemos alguém sentindo dor. “Ver alguém sentindo dor ou sentir dor [você mesmo] ativa o mesmo maquinário neural. Essa é a base da empatia,” sintetiza o neurocientista David Eagleman.

O outro lado

A questão muda quando olhamos para o outro lado da empatia. O que acontece quando, para defendermos alguém de quem gostamos, nos confrontamos com outra pessoa? Desde pequenos as crianças ouvem dos pais que eles desejam que os seus filhos sejam os melhores. Nas ruas dos nossos bairros, aprendemos desde pequenos a nos comportar defendendo o que é nosso: a família, o gênero, a etnia, o time de futebol, a profissão, a visão política. A teoria é simples: ao pensarmos de forma parecida e cooperarmos pela ideia em que acreditamos, deixamos o nosso grupo mais forte. Isso ajudou o ser humano a povoar o planeta inteiro, criar nações, desenvolver novas tecnologias e se tornar o “grande dono da Terra”, ao menos em teoria.

Por outro lado, como consequência inevitável, para cada pessoa “do grupo” que pensa como nós, há uma pessoa “fora do grupo”, que inconscientemente acabamos por combater. Racionalmente, você pode argumentar que é possível conviver com o pensamento oposto. Mas na prática é muito, muito mais difícil do que pensamos.

Em 1976 Richard Dawkins criou o conceito de meme: “unidade de transmissão cultural que pode de alguma maneira autopropagar-se”. Assim como o gene é a unidade de transmissão genética hereditária a qual todos estamos submetidos, da mesma forma acontece com os memes. São ideias básicas, conceitos, pensamentos que nós achamos que criamos e dominamos. Acreditamos que desenvolvemos ideias, pensamos nelas e que elas trabalham para nós. Mas a história da humanidade, de um modo geral, tem demonstrado que ocorre o oposto.

A humanidade protagonizou exemplos assustadores quando ignorou o princípio mais básico de coexistência: [tentar] não fazer mal ao próximo. A popularidade e o apoio a Hitler eram maciços durante o holocausto. A população católica promoveu durante muito tempo a caça e a queima de bruxas na Idade Média. Mais de 800 pessoas cometeram suicídio coletivo na Guiana Francesa sob o comando de Jim Jones, acreditando que seriam salvos por Deus. O coro dos hebreus foi a batida do martelo para a morte de Jesus. “Crucifica-o!”

Essas ideias podem nos parecer absurdas de nossa perspectiva atual, mas contaminaram milhões de pessoas em cada um desses episódios históricos. Isso acontece porque, acima de tudo, nosso cérebro, o grande manda-chuva, trabalha para nos defender, como indivíduo e como espécie.

Em situações de ameaça, as estruturas cerebrais da mente inconsciente agem muito mais rápido do que o consciente. Ao invés de pensar sobre o que fazer, tendemos a ter a famosa reação conhecida como flight or fight (correr ou lutar, numa adaptação para o português), em que nos preparamos para agir antes mesmo de pensar, porque pensar é demorado e pode nos custar a vida.

Essa é uma reação que evoluiu junto com a humanidade, para proteger nossos antepassados de animais selvagens e de inimigos. Só que na atualidade a ameaça não é mais o predador que podia roubar nossa caça e nos matar, como há 15 mil anos. Agora tememos “a perda do emprego”, “o aumento da violência”, “uma doença que ainda não temos…”

A narrativas do cérebro

Responsável por consumir cerca de um terço das energias adquiridas pelo corpo, o cérebro trabalha o tempo inteiro para resolver nossos conflitos diários. E a maioria deles se desenrola na esfera inconsciente, porque o consciente consome muito mais energia para trabalhar. A amígdala, uma pequena estrutura em formato de amêndoa localizada no lobo temporal, atua o tempo inteiro para identificar riscos e ameaças à nossa volta. Se ela identifica algum perigo, é ativada e em milésimos de segundos transmite informações para que haja uma resposta rápida e direta.

Em situações de ameaça, medo e incerteza, a complexidade da vida, dos sistemas políticos e do comportamento dos seres humanos acaba sendo resumido e simplificado pelo inconsciente: mocinhos (de novo essa palavra) ou bandidos. Nós ou eles? Certo ou errado? As pessoas não querem refletir verdadeiramente sobre a criação dos sistemas políticos, sobre a complexidade e as incertezas de uma pandemia e sobre a delicada e extremamente complexa organização dos seres vivos no mundo.

Elas só querem acabar com a corrupção! Querem que o governo resolva o problema. Porque é mais fácil, porque parece simples e porque nosso cérebro gasta muito mais energia para lidar com situações complicadas. A tendência natural que temos é economizar energia, o que significa simplificar a realidade, organizá-la em opostos, separar os mocinhos (nós), dos malvados (eles).

E para dar coerência a essa simplificação, nosso cérebro age como um narrador, que interpreta os estímulos externos para construir uma narrativa que faça sentido e que simplifique a realidade. Ele conta as histórias e nós acreditamos, achamos que nós é que estamos pensando e chegando a conclusões racionais.

Isso fica um pouco mais claro quando observamos mais alguns episódios históricos. Em 1915, os turcos-otomanos mataram mais de um milhão de armênios. Em 1937, os japoneses invadiram a China e mataram centenas de milhares de civis. Entre 1992 e 1995, mais de 100 mil muçulmanos bósnios foram dizimados pelos sérvios. Em todos esses casos, o governo teve apoio maciço da população. As pessoas acreditavam que estavam fazendo a coisa certa.

Para o neurocirurgião Itzhak Fried, que estudou diversos casos de violência ao redor do mundo, em todas essas situações acontece o que se conhece por Síndrome E: “uma diminuição das reações emocionais, que permite atos repetitivos de violência”, muitas vezes com hiperestímulo desses atos. No cérebro, o que acontece é que “funções como linguagem e memória estão intactas” (continuamos a cuidar e ter carinho por nossa família), mas, por outro lado, “há uma grande alteração cerebral em áreas que envolvem emoção e empatia”. Continuamos a ser nós mesmos (acreditamos nisso, ao menos), mas nossos julgamentos emocionais, nossa sensibilidade emocional e nossa capacidade de empatia está totalmente desregulada.

Mas como agir de forma cruel e ainda conseguir justificar esse comportamento para si mesmo? Boa parte da resposta pode estar nas narrativas, que fazem com que vejamos algumas pessoas como mais “iguais a nós” do que outras. Muitas histórias são construídas ao longo de gerações, como no caso da escravidão dos negros no Brasil ou a disputa entre cristãos e muçulmanos desde a época das Cruzadas. Em outras situações, como na disputa entre sérvios e bósnios, durante a guerra civil da Iugoslávia, há forte atuação de discursos políticos e propaganda capaz de estimular esse componente desumanizador na relação entre os povos. A tática foi ostensivamente usada pela rádio e televisão do governo sérvio. Nas situações mais bizarras, notícias distorcidas contavam histórias surreais de bósnios muçulmanos que estariam alimentando leões com crianças sérvias.

Olhando de fora, mais de 20 anos depois, pode parecer patético que a população sérvia tenha acreditado nessas histórias. Mas o que explica que em 2020, somente no segundo trimestre e somente no Brasil, existam mais de 4 milhões de casos de fake news? O que explica que boa parte da população do país tenha se dividido ao longo dos últimos anos em dois grupos com visões políticas antagônicas e trocado constantes agressões verbais e até físicas entre si para defender o seu “salvador da pátria”, ignorando fatos e, principalmente, simplificando a complexa realidade entre “mocinhos” e “bandidos”, “nós” e “eles”?

Lembra do conceito de meme? A unidade de transmissão cultural: as ideias. Na verdade, nós somos hospedeiros dessas ideias, especialmente das ideias associadas a gatilhos de sobrevivência do ser humano, como sexo, sobrevivência e ameaça de morte.

É o que Richard Brodie chama de vírus da mente, informações que nos programam com novos memes, sejam informações verdadeiras ou não. Memes bem disseminados no momento atual são “fique em casa” ou “se todos ficarem em casa, o país para”.

Como tristemente descobrimos em escala global, o sucesso de um vírus depende da capacidade de se proliferar. Os vírus da mente também são assim — os que possuem grande capacidade de se disseminar são mais bem sucedidos do que os que são verdadeiros. Isso explica muito da dificuldade em se combater fake news. “Nossas mentes são perfeitamente suscetíveis à infecção pelos vírus da mente. Eles podem penetrar em nossas mentes porque somos muito hábeis em aprender novas idéias e informações,” afirma Brodie.

Quem já compartilhou fake news? Todos nós, seja na internet, seja através de uma fofoca, “de um causo que me contaram, mas que não sei se é verdade”. Em situações de ameaça e especialmente em grupos, o efeito da disseminação desses memes (sejam verdade ou não) tende a ser pior. É a relação custo-benefício: “Não sei se é verdade que o coronavírus morre submetido a altas temperaturas. Mas se for verdade? Então melhor eu compartilhar.” O impulso em disseminar o meme é a natureza do ser humano. Motivados pelo gatilho do medo, da sobrevivência, fazemos sem pensar. Checar a informação para saber o que estamos transmitindo é um caminho antinatural para o cérebro, que exige esforço. O mestre zen Kodo Sawaki, em uma reflexão precisa, afirmou:

“Quando as pessoas estão sozinhas, elas não são tão más. Entretanto, quando um grupo se forma, ocorre uma paralisia; as pessoas ficam totalmente insensatas e não conseguem distinguir o bom do mau. Suas mentes estão agrupadas pelo coletivo. Por causa do desejo de pertencer e até mesmo de perder a si mesmos, alguns pagam ‘taxas’ de pertencimento. Outros trabalham na propaganda para atrair mais pessoas e intoxicá-las de alguma forma: política, espiritual ou comercial.”

Uma fumaça de esperança

Em sua viagem pelo espaço, o astronauta Russell “Rusty” Schweickart viu nosso planeta por inteiro. Após a experiência, ele diz ter desenvolvido um extraordinário conhecimento pessoal da interdependência de toda a vida. A experiência de observar a Terra de fora, como um único organismo vivo, fez com que ele compreendesse a ilusão das nossas disputas:

“As fronteiras pelas quais lutamos não são reais da perspectiva do espaço. Temos que entender que a situação real é que nós, como formas de vida em nosso planeta, estamos todos interconectados, e que o nosso comportamento e o os nossos sistemas e a nossa atitude é que deve ser reconhecida e refletida como realidade.”

Mas como conseguir olhar de fora para nós mesmos, sem ir ao espaço? Há uma solução? O primeiro passo, na minha opinião, seria aceitar que construímos histórias (todos nós!) e que precisamos, antes de tudo, vê-las como histórias, aceitar que tudo em que acreditamos hoje pode mudar amanhã. Kodo Sawaki, novamente, tenta nos ajudar a enxergar uma luz no fim do túnel:

“Tudo é apenas um sonho. ‘Realidade’ é apenas a realidade de um sonho. As pessoas acham que revoluções e guerras são espantosas, mas eles estão presos em um sonho. Quando você morrer, você verá facilmente, ‘oh, aquilo era apenas um sonho’. Quando você sonha, é difícil saber que você está sonhando. Se alguém belisca sua bochecha, você pode sentir dor; essa dor também é sonho. Nós interagimos com os outros em um sonho, então nós não reconhecemos os sonhos como os sonhos. Todos estão vivendo seus próprios sonhos. O problema é a divergência entre esses sonhos.”

David Eagleman traz outra história inspiradora:

“Era 1968, um dia após o assassinato do líder de direitos civis, Martin Luther King. Jane Elliot, professora numa pequena cidade de Iowa, decidiu demonstrar para sua classe o que isso significava. Jane perguntou à turma se eles sabiam o que era sentir na pele ser julgado pela cor dos olhos ou da pele. A maioria dos estudantes achava que sim. Mas ela não estava tão certa disso, então lançou o que se tornaria um famoso experimento. Ela anunciou que as pessoas com olhos azuis eram as 'melhores na sala'.

Jane Elliot: As pessoas com olhos castanhos não podem usar o bebedouro. Vocês vão ter que usar os copos de papel. Vocês, pessoas de olhos castanhos, não podem brincar com as pessoas de olhos azuis no playground porque vocês não são boas como elas. A partir de hoje, as pessoas com olhos azuis vão vestir colares. Assim nós conseguimos dizer à distância de que cor é o seu olho. Todo mundo está pronto? Todos, menos Laurie. Pronto, Laurie?

Crianças: Ela tem olhos castanhos.

Jane Elliot: Ela tem olhos castanhos. Vocês vão começar a perceber hoje que nós gastamos um tempo enorme esperando pelas pessoas de olhos castanhos.

Um momento depois, Jane olhou à volta e dois meninos estavam em pé. Rex apontou para onde estava a divisão das pessoas e Raymond prestativamente se ofereceu: 'Senhora Elliot, é melhor você manter seus pertences na sua mesa, ou as pessoas de olhos marrons podem pegar'”.

Décadas depois, Eagleman entrevistou Raymond, que disse ter sido “tremendamente cruel com meus amigos” […] “e eu era o perfeito nazistinha. Eu procurava meios de ser cruel com meus amigos, que minutos antes eram bem próximos de mim.”

No dia seguinte, a professora inverteu a regra, e fez as crianças de olhos azuis sentirem na pele o que era ser rejeitado e excluído pela cor de seus olhos. “É como pegar o seu mundo e despedaçá-lo, como se ele nunca tivesse sido despedaçado antes.” Isso fez com que Raymond estivesse abaixo de todos, o que o deixou com uma sensação de perda gigantesca, fazendo com que seu “eu” não funcionasse.

“Uma das coisas mais importantes que aprendemos como humanos é a escolha de perspectivas. Quando alguém é forçado a entender o que é estar no lugar do outro, isso abre novos caminhos cognitivos,” sintetiza Eagleman.

Parece que, mais uma vez, a humanidade se encontra diante de uma grande oportunidade para compreender o que é estar no lugar do outro, e para escolher com quais narrativas e memes vai querer seguir daqui adiante.

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Dalmo Borba
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Entre a antropologia, neurociência e narrativas, me interessa porque inventamos verdades.