Bons livros nos dizem o que já sabemos

Cecília Furlan
indō
Published in
4 min readApr 20, 2020

“Os melhores livros são aqueles que lhe dizem o que você já sabe,” foi a conclusão de Winston ao ler o manifesto de Goldsmith, em 1984 (não o ano, mas o livro de George Orwell). Uma conclusão curiosa, uma vez que costumamos considerar os livros justamente como veículos para novos conhecimentos e aprendizados. De que adianta ler sobre algo que já sabemos?

O que Winston estava sentindo era identificação. Entrar em contato com algo que já sabemos significa que alguém no mundo pensou e se sentiu da mesma forma que nós e isso faz com que nos sintamos menos sozinhos.

Toda a nossa percepção do universo acontece dentro de nós mesmos. Observamos o mundo ao nosso redor, e as impressões que temos e conclusões que tiramos nem sempre são compartilhadas. Consequentemente, temos muito pouco acesso às impressões e conclusões dos outros a respeito desse mesmo mundo. Logo, nem sempre temos consciência de que nossas impressões e conclusões não são únicas e nem tão destoantes assim.

Estamos acostumados a julgar e a sermos julgados, então acabamos compartilhando muito pouco ou nos preocupando em não compartilhar as coisas da exata forma que as pensamos. Permanecemos, assim, presos dentro de nossas cabeças, isolados da realidade alheia, a sós em nossos pensamentos e emoções.

No regime totalitário em que o personagem Winston vivia em 1984, era terminantemente proibido ter pensamentos contra o Partido, e essa é justamente a questão. Winston pensava coisas que não podiam ser compartilhadas sob o risco de severas punições. Da mesma forma, também não tinha como saber se outras pessoas pensavam o mesmo que ele ou se estava completamente sozinho em suas concepções. Ler algo que já sabia significava ter a certeza definitiva de que não estava só, de que outras pessoas pensavam da mesma forma que ele. Portanto, devia existir certo nível de coerência em seu pensamento. Ele não estava louco de pensar essas coisas, afinal.

A primeira vez que tirei essa mesma conclusão de Winston foi quando li Debord. Em determinado momento da minha vida, olhei para o mundo a minha volta e não entendi por que as coisas aconteciam da forma como elas aconteciam. Primeiro pensei que estavam todos loucos por fazerem as coisas do jeito que faziam, depois conclui que, se todos faziam as coisas daquele jeito e só eu estava achando tudo aquilo um absurdo, das duas uma: ou estavam todos loucos, ou era eu quem estava. Ambas as hipóteses igualmente desesperadoras.

Comecei, então, a frequentar um psicoterapeuta com quem pude compartilhar as minhas mais sórdidas desconfianças sobre minha sanidade mental sem temer nenhum tipo de sanção, já que eu não tinha mais muito a perder e nem mesmo estava ele em posição de me julgar.

Ao ouvir minhas inquietações, seu conselho foi que eu lesse A sociedade do espetáculo, de Guy Debord. Assim o fiz e ainda bem que o fiz assim. Não encontrei no livro nenhuma novidade, muito pelo contrário. Tudo que li eu já sabia e era exatamente o que eu mesma teria dito se tivesse a capacidade de organizar meus pensamentos dispersos — como diria o próprio Winston. Pela primeira vez em muito tempo, não me senti tão só.

O artista vira e mexe é acometido pelo desestímulo à produção por considerar sua arte inútil. Se de nada serve, de que adianta ser feito? Rilke responde a essa questão em suas Cartas para um jovem poeta: se alguém, em algum lugar no mundo, entrar em contato com a sua arte e se identificar com ela, se alguém, graças a sua arte, se sentir menos sozinho, tudo terá valido a pena.

Ele está falando do que sentimos quando estamos frente a frente com um girassol de Van Gogh, quando ouvimos a Nona Sinfonia ou quando nos identificamos com Os sofrimentos do jovem Werther. Mesmo sendo criações de pessoas em outros continentes, de outros gêneros, outras idades, que viviam em outras culturas e estavam inseridas em outros contextos, essas obras são consideradas clássicas porque evocam emoções essenciais compartilhadas por toda a humanidade. Alguém no mundo conseguiu colocar em palavras, dar cores e compor melodias que expressam o que eu mesma sinto mas não tive habilidade para expressar. Alguém no mundo sabe do que eu sei e se sente como eu me sinto. Eu não estou só.

Livros podem não nos ensinar nada, mas pelo menos nos fazem companhia. Isso basta.

Para acompanhar os novos textos da revista indō, siga nossa página.

--

--