Convidando a sombra para dançar

Dalmo Borba
indō
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6 min readMay 19, 2020

Conta uma das minhas histórias favoritas que Mulá Nasrudin (personagem popular no Oriente Médio) estava agachado, tateando o solo próximo à luz de uma lâmpada. Um conhecido seu aproximou-se e ao vê-lo desta maneira perguntou-lhe:

– Nasrudin, que está fazendo?
– Não faz muita diferença.
– Como assim não faz diferença? Você está agachado no chão, à noite, no meio da rua! O que você está fazendo?
– Se é tão importante, estou procurando.
– Mas procurando o quê?
– Não faz muita diferença.
– Como assim, se você está procurando algo, é importante saber o que é. Posso ajudá-lo.
– Bem, perdi uma chave e estou há um bocado de tempo procurando-a sem encontrá-la.
– Deixe que eu lhe ajudo.

E juntos continuaram procurando a chave, aproveitando a luz propagada por um poste. Meia hora depois, o amigo começou a ficar inquieto. Era impossível que depois do tempo que levavam ali não tivessem encontrado nada, e perguntou:

– Nasrudin, como é possível que não encontremos a chave, não há aqui muitos lugares para procurar… Está seguro que a perdeu aqui?
– Não, de forma alguma, perdi-a dentro de casa, mas lá está tão escuro e aqui pelo menos há mais luz.

Popular entre diferentes povos do Oriente Médio, como os uzbeques, turcos e armênios, esse conto deixa sugestões a diferentes interpretações. Uma das mais básicas e aparentemente banais:

Nasrudin foge da escuridão que é a sua casa, mas é exatamente lá que se encontra a chave, a questão a ser resolvida. O problema é a escuridão, o desconforto que é procurar sem enxergar, tatear no desconhecido.

O escuro da casa de Nasrudin e sua resistência em resolver a questão que lá se encontra me remete à ideia de sombra, de trevas, daquilo que não conhecemos ou não podemos ver e, justamente por isso, nos assusta. Cada um de nós convive com um ser desconhecido dentro de si, que às vezes se manifesta na forma de pensamentos estranhos, de vontades reprimidas ou medos inexplicáveis. Embora na maioria das vezes não compartilhemos publicamente esses sentimentos, cada um de nós sente o que se passa dentro de si. Somos todos cúmplices desse sentimento. Como Nasrudin, muitas vezes procuramos conforto em algo conhecido, e jogamos para debaixo do tapete a sombra que nos assusta.

Numa tentativa de compreender a si mesmo, o ser humano visitou esse tema incontáveis vezes, através da arte e da ciência. Em uma reflexão sobre a essência humana, Robert Greene afirma que “As pessoas raramente são quem parecem ser. Espreitando sob seu exterior educado e afável há, inevitavelmente, um lado sombrio, que consiste nas inseguranças e nos impulsos agressivos e egoístas que reprimem e cuidadosamente ocultam dos olhos dos outros.”

Carl Gustav Jung

Um dos primeiros a trabalhar com o arquétipo da sombra, o psiquiatra Carl Gustav Jung afirmou que “Não há dúvida de que o homem não é, em geral, tão bom quanto imagina ou gostaria de ser. Todo mundo tem uma sombra e, quanto mais escondida ela está da vida consciente do indivíduo, mais escura e densa ela se tornará. De qualquer forma, é um dos nossos piores obstáculos, já que frustra as nossas ações bem intencionadas.”

A sombra pode se manifestar em sentimentos que nos dominam, como no medo e preconceito contra o outro (outra língua, outro grupo étnico, outro grupo social) que não conhecemos. Sob o ponto de vista da neurociência, essa é uma reação natural de proteção. Ao longo da evolução o ser humano aprendeu como podia obter mais com menos esforço. Nesse sentido, tudo o que é desconhecido exige um esforço adicional, um gasto de energia. Mais importante ainda, pode representar uma ameaça. O nosso cérebro reflete isso e procura compor uma coerência, privilegiando sempre o que já conhecemos e o que é parecido conosco.

Uma série de estudos demonstram que tendemos a privilegiar aquilo que já conhecemos ou que nos lembram a nós mesmos, como produtos que começam com a mesma letra que começa o nosso nome. Esse comportamento, conhecido como “efeito de mera exposição”, foi estudado pelo psicólogo Robert Zajonc ao longo de sua carreira e mostrou que “As consequências de exposições repetidas beneficiam o organismo em suas relações com o ambiente imediato, animado e inanimado. Elas permitem que diferentes organismos diferenciem objetos e habitats que são seguros dos que não são, e constituem a base mais primitiva das ligações sociais.”

Nos mitos, lendas e narrativas, a sombra — ou o desconhecido — aparece como metáfora dos espaços oníricos, lugares mágicos como a floresta escura, o fundo do mar, ou o espaço. No clássico infantil João e Maria, os irmãos penetram na floresta escura, o espaço onde forças desconhecidas, mágicas e terríveis reinam. Os irmãos são cativados pela atraente casa de chocolates, que ao mesmo tempo guarda uma bruxa repugnante e má. São os dois lados da sombra, que emerge atraente e depois se transforma.

É nesse espaço desconhecido que geralmente se desenvolve a aventura, em que os personagens passam por desafios e se transformam. Esses contos fantásticos não explicam o que acontecem dentro de nós, mas nos presenteiam com uma belíssima mensagem: é preciso aceitar a sombra que existe dentro de nós e enfrentá-la.

Geralmente tendemos a focar nas consequências — o que eu fiz?, por que agi assim?, não posso mais fazer isso! — e esquecemos de procurar sinceramente de onde vêm essas manifestações, qual é a verdadeira causa desses comportamentos que brotam e parecem nos dominar em determinados momentos.

“Conhece-te a ti mesmo,” leu Sócrates quando jovem no pronau do Templo de Apolo em Delfos. Esse caminho exige que olhemos para dentro de nós mesmos, com uma curiosidade objetiva, procurando nos afastar da tendência humana de justificar os próprios atos. Olhar com sinceridade, como um observador, e mergulhar na própria alma, psique ou floresta escura que habita cada um de nós. Ao fazermos esse movimento, inevitavelmente nos depararemos com nossa sombra, com esse mundo desconhecido e assustador que habita dentro de nós.

É doloroso lidar com esse universo que nos habita. Tendemos a enxergar a nós mesmos como boas pessoas e a justificar nossas falhas e erros ao invés de encará-las, também como uma forma de defesa. Ao longo de séculos aprendemos a reproduzir o que era mais fácil, conhecido e a priorizar o nosso “lado bom”, muitas vezes ignorando a nossa sombra. É da vida. Mas “a sombra quer liberar um pouco da tensão interna e voltar à vida”, acrescenta Greene.

Olhar para dentro de si, aceitar e acolher a própria sombra pode até parecer um caminho antinatural. Ele é inevitavelmente difícil, cheio de desafios e nem sempre obtemos o que desejamos, como nos contam as histórias. Mas acredito que é preciso conhecer nossas sombras, tratá-las com carinho e compaixão. Mais uma de minhas histórias favoritas traz sugestões de como podemos fazer isso:

Conta-se que que Ryokan, um mestre zen, vivia uma vida extremamente simples em uma cabana ao pé de uma montanha. Uma noite, enquanto o monge estava fora, um ladrão entrou na cabana e, depois de vasculhar por todos os cantos, descobriu que não havia absolutamente nada a roubar. Ryokan chegou nesse momento e o pegou no pulo do gato. “Você deve ter percorrido um longo caminho para me visitar,” disse ele ao ladrão, “e você não deve ir embora de mãos vazias. Eu não tenho mais nada a oferecer, mas por favor, leve minhas roupas de presente.” Dizendo isso, despiu-se e entregou o manto que vestia. O ladrão ficou perplexo. Desconcertado, pegou as roupas e partiu. Ryokan ficou nu, olhando a lua. “Pobre companheiro,” ele pensou, “eu gostaria de poder dar a ele esta linda lua.”

Como uma boa história, esse conto não explica nada, mas sugere muito. Uma das minhas interpretações favoritas é ver o ladrão como uma metáfora de nossa própria sombra. Ele chega dentro de casa para roubar, mas fica desconcertado com a atitude do monge que responde com compaixão. Como se a sua própria sombra aparecesse, ele a tratasse com carinho enquanto ela está ali e depois a deixasse partir. Em algum momento o ladrão ou sombra que nos habita vai aparecer. Conseguiremos cuidar dela como fez o monge Ryokan?

Ignorada e questionada, nossa sombra vive escondida, como o pássaro azul de Bukowski, que se manifesta vez ou outra com sofrimento. Mas podemos olhar para ela com compaixão, chamá-la para uma xícara de chá ou tirá-la para dançar. Afinal, ela vai estar conosco aonde formos, até o final. Como disse Jung, “uma pessoa não é iluminada por imaginar figuras de luz, mas por estar ciente da escuridão”.

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Dalmo Borba
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Entre a antropologia, neurociência e narrativas, me interessa porque inventamos verdades.