Lendas invisíveis

Transformação e relevância do folclore brasileiro para além da série "Cidade Invisível" da Netflix

Dalmo Borba
indō
8 min readFeb 24, 2021

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“As pessoas são cruéis, Isac. Elas têm medo de tudo o que é diferente. Porque a gente revela o quanto eles são absolutamente iguais e entediantes."

Essa fala de Alessandra Negrini, no papel de uma Cuca contemporânea, marca uma das minhas cenas favoritas de Cidade Invisível, a série brasileira da Netflix que se tornou a nova sensação do momento. Não apenas os brasileiros, mas também nossos hermanos argentinos, chilenos, mexicanos e ainda franceses, ianques e italianos pararam para assisti-la e a colocaram entre as dez séries mais vistas em seus países. A produção transporta personagens do folclore brasileiro para uma realidade nada fantástica: o Rio de Janeiro atual, com suas desigualdades sociais extremas, questões ambientais negligenciadas e uma eterna disputa entre o progresso e a valorização da cultura tradicional.

Na versão televisiva, os personagens também ganham uma nova roupagem: Saci-Pererê é um jovem negro com perna mecânica que mora em uma ocupação na Lapa, a Cuca é dona de um bar na noite carioca e o Curupira (praticamente sem mata para proteger), acaba bêbado em uma cadeira de rodas. A série fisga o público ao construir um enredo que chama a atenção por combinar a essência sobrenatural (e nostálgica) desses personagens da cultura popular brasileira com uma narrativa realista do Brasil (distópico) de 2021.

Versão contemporânea, fórmula antiga: entidades folclóricas temem ser exterminadas.

A fórmula, por certo, não é nova. Séries como “American Gods”, “Vikings” e “Era uma vez” continuam a fazer sucesso ao repaginar histórias fantásticas e mitológicas que prendem o ser humano há séculos.

Se levarmos em consideração a figura do herói, perceberemos que poderes mágicos, jornadas fantásticas e a luta entre o bem e o mal continua a atrair a atenção das pessoas: dentre as dez maiores bilheterias da história do cinema, oito sacam a essência mágica e mitológica do coldre para acertar em cheio o sucesso comercial. Se por um lado Hollywood está em decadência há anos, o enredo mitológico, ou da jornada do herói, continua a fazer sucesso, seja em séries, jogos ou outros formatos.

As entidades somos nós

Não importa o veículo. Mesmo na era da ciência, o ser humano continua a buscar explicações com a ferramenta que mais lhe fez companhia desde sempre: histórias. Narrativas fantásticas, repletas de magia, heróis e entidades sobrenaturais. É uma verdade quase matemática. Engloba desde as grandes religiões ao ateísmo soviético, também repleto de superstições — basta permanecer alguns minutos na estação de metrô Ploshchad Revolyutsii, em Moscou, para observar dezenas de transeuntes acariciarem rapidamente o focinho da estátua de um cachorro, num pedido de sorte à moda russa.

Essas histórias são uma das principais armas que temos para lidar com o desconhecido e o diferente que, como disse a personagem de Alessandra Negrini, assusta o ser humano. Seja para amedrontar as crianças que não querem dormir (com a Cuca), explicar as pequenas travessuras que acontecem em um povoado (com o Saci) ou justificar a gravidez que parece inexplicável (com o sedutor Boto), estamos sempre criando histórias para clarificar o que acontece ao nosso redor.

Isso acontece mesmo em uma série fictícia, em uma sociedade que parece ter perdido a capacidade de ser guiada por mitos e narrativas. Sabemos que o enredo é mentira, assistimos por entretenimento, mas algo nessas histórias e na forma como são contadas nos fisgam e nos emocionam.

No caso de Cidade Invisível, os autores acertam em cheio ao trazer as personagens do folclore brasileiro para a nossa realidade. Elas dialogam com o mundo em que vivemos, o contexto de suas ações faz sentido para nós. A essência de cada personagem é mantida, mas elas se transformam para nos sensibilizar. Nos vemos nas entidades! As entidades somos nós e sempre fomos elas, não importa a época.

Transformação contínua

Mas a adaptação de mitos não é de agora. Cada um dos personagens do folclore brasileiro que aparece na série percorreu um caminho longo e permanente de transformações para chegar até aqui. Esse mudar contínuo das lendas é outra verdade quase matemática na história humana, lapidada pelos contextos de cada época e de cada lugar. A Cuca, por exemplo, que já foi conhecida como o simpático jacaré das histórias do Sítio do Pica-Pau Amarelo, nos acompanha desde o mundo colonial. Chegou ao Brasil com as caravelas ibéricas.

“A Cuca ou Coca é um ente velho, muito feio, desgrenhado, que aparece durante a noite para levar consigo os meninos inquietos, insones ou faladores (…) Mostra-se igualmente sua existência em Espanha e Portugal, em aplicação irmã à que ouvimos em nossa meninice”, escreve o folclorista Luís da Câmara Cascudo em Geografia dos mitos brasileiros. Ele conta que há registros da cuca, coca ou coco — que seriam a mesma entidade — há séculos na Península Ibérica. Em algumas manifestações de Corpus Christi, em Portugal, ela assume a forma de um dragão, que é trespassado pela lança dourada de São Jorge. Há registros dela por todo o Brasil, ora como cuca, ora como coca. Em cada lugar ela assume novas características, formas e sutilezas.

Obra de Câmara Cascudo mergulha na origem e na variação regional das ledas brasileiras.

No livro “Abecedário do Folclore Brasileiro”, usado pelo diretor Carlos Saldanha como uma das principais fontes para a série, a pesquisadora Januária Cristina Alves nos conta que a Cuca se transmuta em coruja, aranha e borboleta, esta última empregada com maestria para dar forma à Cuca de Cidade Invisível, uma versão preocupada com a natureza, mas que ainda faz uso da cantiga “nana nenê…” para amedrontar a criança que existe em cada um de nós.

Essas transformações das entidades variam com o espaço e o tempo. O contato entre europeus, africanos e indígenas fez com que as entidades de nossas mitologias assumissem formas e características variadas ao redor do Brasil. Elas se adaptam às realidades regionais e, ao mesmo tempo, vão ganhando novos nomes e atributos de acordo com a época em que são recontados. É assim que o Tutu — lenda desconhecida para grande parte dos brasileiros da atualidade — assume na série uma forma de guarda-costas briguento e barbudo no papel de Jimmy London.

Popular antigamente em diferentes regiões do Brasil, Tutu é um animal “informe e negro que aparece nas cantigas de embalar. Não o descrevem nem há a menor alusão a um detalhe físico”, destaca Câmara Cascudo. Mas isso depende da região: “na Bahia, o tutu se encarna no porco-do-mato”, o que explica a escolha dos produtores da série para o personagem.

Obra de Januária Alves serviu como fonte para produção televisiva.

A entidade tem origem africana; o termo é uma variação da palavra quitutu, que em quimbundo ou angolês, quer dizer “papão” ou “ogre”. É uma daquelas personagens criadas para assustar as crianças, como o bicho-papão. Vindo para a América do Sul, provavelmente em um navio negreiro, sua história embaralhou-se com a mitologia indígena. Em alguns lugares virou o Tutu-Zambê, parceiro da Caipora e uma variação do mito do saci-pererê. Em outros, é o Tutu-Marambá, que sofreu influência do tupi. Nesta língua indígena, “marambá” era o filho de um indígena com estrangeiro. Em cada versão há detalhes sutis da história da cultura popular.

Essas lendas mudam para fazer sentido e ao mesmo tempo dialogar com a época em que suas histórias são contadas. É assim que Fábio Lago, numa atuação impecável como Curupira, chamou tanto a atenção: ele acendeu as chamas de um personagem envolto em questões tão atuais quanto distantes, como a destruição de reservas naturais para a expansão do progresso urbano e a invisibilidade de um mendigo ébrio nas favelas cariocas.

No Brasil-Colônia do século XVI, indígenas transmitiam o temor do Curupira, o deus de pés para trás que protege as florestas, a padres e exploradores com quem viajavam. “Os guerreiros, aliados aos portugueses, no convívio dos acampamentos nas marchas, conversavam, confidenciando pavores. Curupira aparecia nos lábios com assustadora frequência. Começando a dominar as árvores, terminou estendendo o reino aos animais, submissos ao seu gesto”, conta Câmara Cascudo. O Padre Anchieta, por sua vez, escreveu em 1560 que o Curupira ataca e mata indígenas e estes, para apiedarem o duende, deixavam ofertas “rogando fervorosamente que não lhes faça mal”.

Personagem de Fábio Lago, Curupira é transformado pelas histórias desde o século XVI.

Curupira foi o primeiro duende selvagem ameríndio sobre o qual os europeus escreveram e, ao disseminar sua história, começaram a transformar. Inicialmente desconhecido para os colonizadores, logo se transformou em um personagem popular em todo o país e ganhou contornos diferentes em cada lugar. Em Santarém era descrito como um tapuio pequeno, de quatro palmos; no Rio Negro, tinha o corpo coberto de pelos; no Rio Tapajós, teria um olho só; e no Solimões, dentes azuis e orelhas grandes. Mas em todos os lugares, dono de uma força prodigiosa que espantava os humanos.

Representação da resposta agressiva da natureza aos excessos do homem, o personagem de pés virados espalhava temor por entre as populações mestiças do Brasil. De boca em boca, a história do Curupira (assim como da Cuca, Tutu e de centenas de outros personagens do folclore brasileiro) ganha vida e se transforma, se reconstrói e adota diferentes tons regionais para dar sentido ao medo e à necessidade humana de sentir que o mundo é controlado, organizado, mesmo que seja com narrativas fantásticas. Nesse processo, entidades se encontram, se fundem e são redesenhadas pelas peculiaridades que cada lugar, região e cultura manifestam. Sincretismo cultural e espiritual da história do Brasil.

Como disse a personagem de Alessandra Negrini, o ser humano tem medo do desconhecido. As lendas e os mitos ajudam a organizar esse desconhecido, a dar rosto e sentido para que possamos lidar com o caos do mundo em que vivemos. Para isso, abusamos do elemento fantástico, sobrenatural, que nos visita nos sonhos todas as noites, mas que parece estar presente também nas coincidências da vida e na força da própria natureza — irracional e muitas vezes desproporcional.

Nesse caminhar, construímos e reconstruímos histórias. A coca, que antigamente incorporava o dragão para ser derrotada por São Jorge em festas religiosas de Portugal e Espanha, pode ganhar versões para ninar, nas quais vira uma velha disforme, depois se transformar em um jacaré simpático e em uma dona de bar sedutora da boemia carioca. A forma não diz respeito tanto ao personagem em si, mas às dúvidas, medos e necessidades das pessoas que a criam e espalham. Se depois de séculos estes personagens continuam a fazer sentido, mesmo em uma obra de ficção, é porque dialogam com a realidade à nossa volta e com a necessidade de entendê-la e modificá-la. É porque são um espelho onírico de nosso mundo.

As entidades somos nós! Elas mudam conosco. Mas a essência permanece a mesma.

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Dalmo Borba
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Entre a antropologia, neurociência e narrativas, me interessa porque inventamos verdades.