Mar de fertilidade

Ou sobre ser engolido pelo peixe grande

Murilo Papantonio
indō
4 min readOct 2, 2020

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Domingo à noite, chuva, relâmpagos, estrondosas trovoadas, a janela sacodida pelo vento. Leio, à luz de vela, os últimos trechos do quarto livro da tetralogia Mar da Fertilidade, obra-prima de Yukio Mishima, escritor japonês indicado algumas vezes ao prêmio Nobel de Literatura. Os principais temas do livro são reencarnação e suicídio — o próprio Mishima cometeu seppuku (suicídio ritual japonês, no estilo samurai) ao terminar de escrever o quarto livro da tetralogia, em 1970. É uma leitura bela, porém por vezes pesada.

Vou à cozinha com a lanterna do celular para esquentar um chá e uma mariposa, provavelmente atraída pela luminosidade do fogo, se joga contra as chamas de gás do fogão. Chocado com a cena, quase uma reverberação da história do livro, não tenho tempo de salvá-la. Com as pernas e asas queimadas, não há outra opção a não ser levá-la para a varanda e— com um aperto no meu coração — dar o golpe final para encurtar seu sofrimento.

Volto à leitura e recebo no WhatsApp um áudio de uma grande amiga dizendo que teve um sonho bem simbólico comigo — ela me visitava numa casa onde eu morava no meio do mar. Disse que o sonho talvez foi influenciado por uma live minha que ela assistiu no Instagram e onde eu falava do mergulho em águas profundas possível através da meditação, citando o livro do diretor de cinema David Lynch sobre sua experiência meditativa:

"Ideias são como peixes. Se você quiser pegar peixes pequenos, pode ficar nas águas rasas. Mas se quiser pegar o peixe grande, você tem que ir mais fundo. Lá no fundo, os peixes são mais poderosos e mais puros. São enormes e abstratos. E são muito belos."

Em meio a trovoadas registradas no meu áudio de resposta, contei a ela do livro do Mishima, da vela, da mariposa, de certa melancolia que sentia no peito naquele instante, das dúvidas que às vezes me assombram.

Ela respondeu citando uma conversa que tivemos anos atrás e eu nem lembrava, sobre o zen budismo:

"Uma das pessoas que me fez refletir muito sobre essa percepção de vida foi você, quando você falava do zen budismo, não sei se você lembra, você disse que o intuito dessa meditação é exatamente não ter uma finalidade, você medita por meditar. Bom, não sei se eu entendi errado, mas não tem uma coisa de uma evolução, um caminho para a evolução, de que você vai se tornar uma pessoa melhor, vai se tornar um espírito de luz e tal… não, é exatamente trabalhar essa perenidade da vida. E me lembra muito coisas que questiono em mim mesma, sobre o conceito de felicidade e de tristeza, que é muito forjado na nossa cultura, uma cultura ocidental, uma cultura capitalista, seja lá como você queira denominar isso… mas a gente entende muito que a gente precisa ser feliz… que a gente precisa ter isso ou aquilo… mas essa é uma ideia falsa. Na verdade eu acho que a gente passa por diversos processos, e estar triste ou estar melancólico é um desses processos. O que eu entendo disso é que tem coisas que simplesmente não têm resposta. Tem coisas que simplesmente são. Que talvez essa busca incansável… ela se perde um pouco, porque talvez não seja essa a solução. E eu também não sei qual é."

É isso. Adoro quando alguma pessoa me devolve uma fala ou ideia que compartilhei com ela no passado, no momento certo em que eu precisava ouvir aquilo de alguém. Essa é uma das belezas da conexão humana, e me faz lembrar de um monge que uma vez me falou que uma das possíveis interpretações do zazen (meditação zen budista) é ser uma forma de ode, homenagem, ao grande mistério que é a vida, sem nenhum objetivo a atingir ou lugar a chegar. Apenas estar vivo e consciente da vida além de qualquer meta ou racionalização — mesmo que somente por alguns instantes — e nada mais.

Respondi agradecendo e dizendo algo que esqueci de falar na live: os peixes grandes que encontramos nas águas profundas às vezes podem ser assustadores, podem ser como baleias que nos engolem. E entrar no ventre da baleia pode ser algo muito perigoso, mas também é um símbolo muito antigo de transformação e renascimento, mais antigo ainda que a história bíblica de Jonas, que teve que passar três dias no ventre da baleia para encontrar seu propósito na vida. O inconsciente da mente humana é às vezes chamado de mare nostrum, latim para "nosso mar". Mar de fertilidade.

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Murilo Papantonio
indō
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Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com