Meditar serve para quê? Para nada!

Murilo Papantonio
indō
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7 min readApr 13, 2020
O monge zen Kōshō Uchiyama

É natural encararmos a prática da meditação com o mesmo tipo de atitude que abordamos todas as outras atividades da vida. Perguntamos a nós mesmos: o que a meditação pode nos oferecer? A resposta, no entanto, é nada — e nisso reside sua maior beleza.

Em nossa cultura utilitarista, quase sempre calculamos o valor de cada coisa (e pessoa) de acordo com sua utilidade ou benefícios que podem nos trazer. Tenho observado em meu feed do Instagram anunciarem a meditação como uma técnica infalível que vai te transformar em uma pessoa melhor, mais focada, equilibrada, "zen", iluminada. Não é incomum, também, a meditação aparecer associada a expressões do meio corporativo como alta performance, otimização, excelência, etc, que geralmente implicam em grandes esforços para se atingir objetivos e metas que estão sempre no futuro. Em suma, a meditação geralmente é vendida como um método para trazer à tona "sua melhor versão", ou seja, para se tornar alguém diferente de quem se é agora.

Não há nada de errado nisso. É completamente natural o desejo de nos tornamos pessoas melhores, mais saudáveis, produtivas e felizes. Em comunidades budistas pelo mundo, é comum a ideia de que as pessoas geralmente aparecem pela primeira vez em centros de meditação por motivos egoístas —buscando benefícios para si mesmas — mas, com o tempo, acabam entendendo a prática de outra forma. Nos cursos laicos de mindfulness não é muito diferente. Em dado momento do curso, a pessoa ouve algo um tanto paradoxal:

Para obter os benefícios da prática, que são inúmeros e comprovados cientificamente, é preciso abandonar qualquer ideia de obter benefícios.

Não é que a prática da meditação não possa trazer benefícios, mas, se você focar demais neles, talvez acabe desperdiçando o que há de mais belo na experiência.

O monge zen budista Kōshō Uchiyama conta, no livro The Zen Teaching of the Homeless Kōdō (Os ensinamentos zen do Kōdō Sem-Teto), uma história interessante. Logo depois de ter começado a praticar o zen budismo com seu mestre, o famoso Kōdō Sawaki, eles tiveram uma conversa enquanto caminhavam pela rua. Uchiyama perguntou ao mestre:

" 'Como você bem sabe, eu sou uma pessoa de cabeça fraca, mas quero continuar praticando zazen [meditação] com você por vinte ou até mesmo trinta anos, ou até a sua morte. Se eu fizer isso, será possível, para uma pessoa fraca como eu, se tornar um pouco mais forte?'

Sawaki Roshi respondeu: 'Não! Zazen não é bom para nada.' Ele tinha uma voz alta, grave, era robusto e determinado. Não era uma pessoa fraca, porém bonita, como eu! Personificava a imagem tradicional de um monge zen. 'Eu não sou assim por causa da minha prática,' ele continuou. 'Eu era assim antes de começar a praticar. O zazen não muda a pessoa. Zazen não é bom para nada.'

Quando ouvi essas palavras, pensei, 'apesar de ele dizer que não é possível, ainda assim me tornarei uma pessoa melhor'. Eu o segui e pratiquei zazen com ele por vinte e cinco anos, até sua morte em dezembro de 1965. Enquanto ele estava vivo, eu dependia dele. Depois que morreu, não podia mais fazer isso. Logo depois da sua morte, lembrei da minha pergunta durante a nossa caminhada e perguntei a mim mesmo, 'será que eu mudei após ter praticado zazen com o roshi [mestre] por vinte e cinco anos?' Percebi que, na verdade, eu não tinha mudado nada.

Naquele momento, foi natural dizer a mim mesmo, 'uma violeta floresce como uma violeta, uma rosa floresce como uma rosa'. Existem pessoas como Sawaki Roshi que lembram rosas deslumbrantes. Existem pessoas como eu, que parecem violetas pequenininhas e bonitas. Qual é melhor? Essa questão não é relevante. Não deveríamos nos comparar aos outros. É suficiente florescer com todo o coração, simplesmente como somos. Foi isso que senti depois que Sawaki Roshi morreu."

Alguns parágrafos antes, no mesmo livro, Uchiyama Roshi escreveu:

"Como disse, o que quer que aconteça, eu vivo a minha vida. Enquanto eu mantiver essa atitude, não posso ir a nenhum outro lugar; não há nenhum lugar a ir. Já que estou onde deveria estar, é natural dizer que o zazen não é bom para nada. Não há nada a ganhar do zazen porque nós já somos preenchidos pelo universo."

Essa última frase me faz lembrar uma história de outro monge, Shunryu Suzuki. Quando ele estava em uma cama de hospital com um câncer terminal, nas suas últimas semanas de vida, recebeu a visita de um discípulo. Ao perceber a expressão de preocupação no semblante do visitante, tentou lhe confortar. Com um largo sorriso, disse: “não se preocupe comigo, eu sei quem eu sou!”. Em outra ocasião, Suzuki falou: “a morte não existe, você sempre vai existir no universo, sob uma forma ou outra” — e não acho que ele se referia à vida após a morte ou reencarnação, mas simplesmente à interconexão de todas as coisas.

Em 1998, o jornalista Pico Iyer foi visitar seu ídolo, o lendário cantor folk Leonard Cohen, na época em que ele vivia como um monge zen budista em um pequeno monastério isolado numa região montanhosa perto de Los Angeles. Intrigado pelo motivo dessa personalidade de renome internacional ter escolhido esse peculiar estilo de vida (Cohen viveu no monastério por quase seis anos, acordando diariamente às 2h30 da manhã para meditar, enquanto passava boa parte do dia removendo neve com uma pá), Iyer recebeu a seguinte resposta:

“Eu não acho que ninguém realmente saiba o porquê de estar fazendo qualquer coisa. Se você parar alguém no metrô e dizer, 'onde você está indo, no sentido mais profundo da palavra?' você realmente não pode esperar uma resposta. Eu não sei porque estou aqui. […] Eu estaria começando um novo casamento com uma mulher mais nova e constituindo outra família? Bem, eu detestava isso quando estava acontecendo, então talvez eu me sentisse melhor em relação a isso agora. Mas eu acho que não. Eu gostaria de descobrir novas drogas, comprar vinhos mais caros? Esta me parece a resposta mais luxuosa para o vazio da minha existência. Eu acho que este é o verdadeiro profundo entretenimento: a religião. Entretenimento realmente profundo, voluptuoso e delicioso. O verdadeiro banquete está disponível para nós nessa atividade. Nada chega perto disso."

No fundo, no fundo, quem realmente sabe para onde está indo, qual o sentido da vida ou o propósito das coisas? Eu sempre tive a impressão de que nós inventamos e nos apegamos a teorias, tecnologias, filosofias, ideologias, religiões, a própria civilização inteira, para nos sentirmos mais seguros e confortáveis diante dessa coisa tão misteriosa, frágil e efêmera que chamamos de vida. Mas, no fundo e no fim, ninguém sabe nada de nada. Raul Seixas cantou isso da seguinte forma:

E as perguntas continuam sempre as mesmas
Quem eu sou? De onde venho?
E aonde vou, dar?

E todo mundo explica tudo
Como a luz acende
Como um avião pode voar

Algumas pessoas podem até passar a impressão de saberem aonde estão indo, por conseguirem explicar, com certa desenvoltura, "como a luz acende e como um avião pode voar". Mas, para mim, aqueles que realmente acham que sabem aonde estão indo, pelo menos no sentido mais profundo da palavra, são os mais perdidos de todos.

Graças a esse enorme vazio, e perante a assustadora fragilidade da vida, sentimos uma intensa ansiedade existencial que nos faz buscar constantemente por respostas fora de nós mesmos.

Dessa forma, encaramos a prática da meditação como mais um método para nos transformarmos em algo diferente do que já somos, em busca da felicidade que está sempre em algum outro lugar. Da mesma maneira como nos comportamos em relação aos relacionamentos, ao dinheiro, às drogas, aos bens de consumo, às viagens, à política, à religião, esperamos que a meditação seja a resposta mágica que nos salvará da nossa profunda angústia existencial.

No entanto, a maior beleza e oportunidade da meditação, me parece, é exatamente a possibilidade de interromper um pouco essa busca incessante por respostas e alívios que vêm sempre de fora, ao cultivarmos a aceitação total de quem já somos neste exato instante. Como se, depois de uma longa e árdua caminhada sob o sol de rachar, simplesmente desistíssemos da busca, déssemos de ombros e sentássemos sob a sombra de uma árvore com um leve sorriso nos lábios, aproveitando a brisa passageira.

Um respiro, por mais breve que seja, dessa lógica de vida que nos diz a todo momento que precisamos consumir e acumular, aproveitar a vida sem desperdiçar um segundo sequer, que devemos ser produtivos e eficientes, ao mesmo tempos espiritualizados, tranquilos e iluminados.

Certa vez, um professor meu do zen escreveu o seguinte sobre a prática da meditação:

“Não lute, simplesmente se entregue à postura. Se você TENTAR fazer zazen, zazen estará distante. Se você deixar tudo para a própria postura sentada, zazen se manifestará naturalmente, automaticamente. Zazen não pode ser uma ferramenta para você, você tem que desistir de si mesmo para o zazen se manifestar.”

Apesar de que um certo empenho e disciplina são necessários para a manutenção da prática de meditação, em algum momento todo e qualquer esforço tem que ser abandonado, abrindo o espaço para florescermos "com todo o coração, simplesmente como somos" — o verdadeiro relaxamento. O poeta Bashō expressou isso da seguinte forma: "Sentado em silêncio, sem fazer nada, a primavera vem e a grama cresce por si só."

Por isso, eu acho, que Kōdō Sawaki dizia que a meditação não serve para nada. Se não sabemos nada de nada, não há aonde ir ou algum lugar a chegar, e a morte é a única certeza, o que resta fazer? Sem fazer nada, a primavera vem.

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Murilo Papantonio
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Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com