Sobre o não chegar — ou o rugido do leão

Murilo Papantonio
indō
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4 min readJan 4, 2021

Uma pedalada fracassada pela maior praia do mundo

Desde criança, fazia pequenas aventuras de bicicleta pelas estradas de terra em cidades no interior de SP onde morei. Lembro-me de uma vez em específico, pedalando cedinho após matar aula com meu amigo Hugo, quando tive um insight. Sentindo o cheiro da terra e do mato no início da manhã, a brisa fresca na cara, intuí que aquilo era a verdadeira paz, liberdade. Se, independente do que acontecesse na vida, eu pudesse fechar os olhos e relembrar daquilo, estaria bem, em qualquer lugar. Talvez a busca por me reconectar com esse estado foi uma das coisas que me levaram, anos mais tarde, à meditação.

Vinte anos se passaram e meu amigo me convidou para viajarmos de bike de Torres ao Chuí, quase 700 km pela praia, no trecho mais deserto do litoral brasileiro. Como não resisto a uma boa aventura, aceitei na hora. A caminho de Torres, lia os relatos de viagem de Matsuo Bashō, o grande poeta japonês, que no século 17 viajava a pé por estradas longínquas e descrevia aventuras assim como uma forma de peregrinação.

"A lua e o sol são viajantes eternos. Até os anos perambulam em frente. Uma vida inteira à deriva num barco, ou na velhice conduzindo um cavalo cansado ao longo dos anos, todo dia é uma jornada, e a jornada em si é o lar."

Matsuo Bashō

A jornada de sete dias e sete noites teve lágrimas de riso e desespero, a companhia constante do sol e da lua, ventos contra e a favor, muita areia. Certo dia meu amigo abriu os braços — dunas, praia, céu e mar por todos os lados, nenhum ser humano além de nós à vista — e disse: essa é nossa casa. Passamos por uma baleia, tartarugas gigantes e golfinhos mortos, um leão marinho vivo, lixos do mar que pareciam naves espaciais, moradores desse ambiente inóspito que lembravam personagens do filme Mad Max. Às vezes dormíamos ao relento, cozinhávamos com uma fogueirinha.

No zen budismo, retiro de meditação é chamado de sesshin, ou "tocar o coração". Ao longo da viagem, mergulhado na imensidão do mar, do deserto e das estrelas, entre dores e perrengues, longe de notícias e redes sociais, fui sentindo que cada vez mais era tocado no coração.

No dia a dia, somos tão bombardeados por estímulos, notícias, opiniões e julgamentos, que esquecemos completamente quem somos nós. Em meio ao barulho constante, perdemos a conexão com aquele silêncio primal que nos permite perceber nossa verdadeira essência.

Quando todas essas camadas mais superficiais são arrancadas pela força do vento, o viajante se depara com a essência que está em tudo e em todos e em nós mesmos. No budismo, esse despertar às vezes é chamado de "rugido do leão". De repente, nos damos conta de que, por vivermos em meio ao rebanho, nos esquecemos completamente que em nossa essência somos leões.

E essa força não tem nada a ver com o ego, mas com a simples e súbita constatação de que sempre estivemos umbilicalmente conectados com toda a natureza. Nossa verdadeira força pessoal nada mais é que a força da própria natureza.

Não conseguimos completar todo o percurso. Por causa do vento sul e da ressaca do mar, além do limite de tempo, tivemos que abandonar o trajeto a 150 km do fim. Um pescador que encontramos nesse trecho resumiu o aprendizado de humildade: “aqui a natureza manda”.

Empurrando as bikes entre uma floresta de pinheiros na nossa fuga da praia do Cassino, já com pouca água e comida, os corpos surrados, porém felizes, fizemos um balanço inicial da viagem: no fim, o objetivo de chegar ao Chuí era apenas um pretexto, uma desculpa, para nos lançarmos rumo ao desconhecido, mergulhados na natureza e em nós mesmos. Nesse sentido a viagem foi um sucesso.

Não faltaram aprendizados, momentos de beleza indizível: pássaros em revoada na pedalada da noite de lua cheia, o calor da amizade, a generosidade tocante de pessoas desconhecidas, um pôr do sol com fogueira, a brisa fresca na cara.

Enquanto somos ensinados desde pequenos que sucesso é algo distante e externo a nós, que devemos perseguir a qualquer custo, é muito belo e libertador reencontrar a grande beleza do Caminho — relembrar que, assim como o sol e a lua, somos eternos viajantes, a jornada em si é o lar. Não há aonde chegar.

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Murilo Papantonio
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Monge que fugiu do monastério, escritor desconhecido, cofundador do institutodo.com