Você teria 5 minutinhos para ouvir a palavra da Kundalini Yoga?

Capítulo #1 da Kundazine, uma série de artigos relacionados à filosofia e prática da Kundalini Yoga.

Cecília Furlan
indō
5 min readMay 11, 2020

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Não é raro que o primeiro contato com a Kundalini Yoga se dê em um momento de particular tristeza e vulnerabilidade. Comigo aconteceu quando o peso da existência estava especialmente insuportável e, já desesperançosa, me rendi a experimentar qualquer coisa que pudesse ajudar a aliviar minha melancolia. Comecei a frequentar um psicoterapeuta, comprei uma bicicleta e concordei em fazer uma aula experimental de Kundalini.

Cética que sou, fui pega de surpresa ao verificar os inegáveis efeitos positivos da prática. A vontade de espalhar a “palavra”, para que mais pessoas pudessem se beneficiar, veio acompanhada da necessidade de esclarecer algumas das ideias vagas e talvez equivocadas a respeito do que significa essa filosofia e como ela se aplica no cotidiano.

Venho, então, por meio deste, apresentar alguns dos conceitos da Kundalini Yoga com interpretações muito pessoais baseadas na minha própria experiência e vivência:

O mergulho em si mesmo

Nós, seres humanos ocidentais modernos, de forma generalizada, compartilhamos a intenção de nos desenvolvermos em direção a sociedades cada vez mais civilizadas e com dinâmicas cada vez mais eficientes em termos de bem comum e satisfação pessoal. Para tornar essa trajetória possível, se faz necessário que nos dediquemos a entender não só os processos sociais, mas também os internos, como indivíduos.

Apesar do nosso suposto esforço para nos tornarmos mais civilizados, deixando para trás impulsos que não mais condizem com os desafios que enfrentamos nos tempos atuais, as pessoas ainda são acometidas por questões que vão além de seu controle. Nossos deuses e demônios não desapareceram, têm apenas novos nomes, como disse Carl Jung, fundador da psicologia analítica, ao estudar a importância do simbolismo para o ser humano (O Homem e seus Símbolos).

Olhando com cuidado para nós mesmos e para as pessoas a nossa volta, é possível verificar que permanecemos inquietos, apreensivos, temos complicações psicológicas, possuímos comportamentos compulsivos e uma enorme coleção de neuroses. Isso nos acompanha ao longo de toda a nossa existência, mas não precisamos ser reféns dessa condição. Existe a possibilidade de amenizarmos essas mazelas e as ferramentas para isso são inúmeras.

Jung, que se dedicou a entender os processos da mente do ser humano moderno e seu inconsciente, concluiu que só seríamos capazes de nos sentirmos verdadeiramente realizados como indivíduos quando conseguíssemos compreender e aceitar o papel que o inconsciente exerce em nossas vidas, como guia, amigo e conselheiro.

As formas de estabelecer essa relação com o inconsciente são diversas e complementares. Jung sugere que prestemos atenção aos nossos sonhos, mas, para além disso, dispomos de uma infinidade de vertentes terapêuticas, técnicas de autoconhecimento, práticas meditativas e, é claro, a própria Kundalini Yoga.

A serpente

O termo “Kundalini” (em sânscrito: कुंडलिनी) representa a ideia de uma corrente elétrica de força criativa que se encontra adormecida na base da coluna, no osso sacro (cóccix). Ao despertar, essa energia sobe pela coluna vertebral atravessando seis chakras até chegar ao sétimo e último, ativando a glândula pineal, símbolo de iluminação.

Apesar de parecer esotérico, as técnicas da Kundalini Yoga, na verdade, trabalham paralelamente a conceitos biológicos da ciência tradicional. Os chakras são representações das principais glândulas do corpo, e os exercícios propostos visam estimulá-las de forma a promover seu funcionamento saudável, contribuindo para o equilíbrio hormonal e, consequentemente, emocional.

Existe uma razão muito simples e específica para a famosa postura da coluna ereta e ombros relaxados: ninguém consegue ser feliz sentindo dores nas costas.

O fluxo da kundalini é uma analogia ao crescimento individual. A Kundalini Yoga é, portanto, uma tecnologia utilizada para atingir um estado de equilíbrio físico, mental e espiritual, possibilitando uma existência cada vez mais plena. (The Aquarian Teacher)

Cada vertente da yoga segue uma linha diferente. A Kundalini Yoga se diferencia, entre outros fatores, pela maior ênfase no lado espiritual, com uma abundância de dinâmicas ritualísticas e referências a manifestações divinas. Eu mesma, que nunca imaginei sentir falta de algo assim, fiquei surpresa e até mesmo aliviada ao perceber que o papel que a Kundalini Yoga passou a cumprir na minha vida poderia muito bem ser comparado ao de uma religião.

A questão da religião

“O mundo é, na sua maior parte, nada mais que um espetáculo. Você monta seu espetáculo. E a espiritualidade nada mais é do que um show.”

— Yogi Bhajan

Yogi Bhajan, que foi o responsável por trazer as técnicas da Kundalini Yoga para o ocidente, costumava dizer que o conceito de religião fora deturpado pelo fanatismo e se tornado completamente obsoleto. Nos últimos dois mil anos (que compõem a Era de Peixes), tivemos inúmeras guerras e milhões de pessoas morreram em nome da religião.

Consequentemente, passamos a associar religião a opressão e intolerância. À medida em que fomos nos apegando ao materialismo secular, nos afastamos da espiritualidade e passamos a associá-la a manifestações de vícios humanos, gerando um ciclo de rejeição e aversão. Por enxergarmos as instituições religiosas como algo a ser combatido, acabamos perdendo, por tabela, o vínculo com um dos pilares básicos da experiência humana: a espiritualidade.

As religiões estiveram e permanecem presentes nas mais diversas organizações sociais e vestem as mais diversas roupagens. Sua razão de ser é relativamente simples e pode ser explicada ao olharmos para os dilemas mais antigos da humanidade: nós não conseguimos entender completamente o universo que nos cerca, e o desconhecido gera medo e insegurança. Mitos e narrativas existem desde sempre e foram criados em uma tentativa de esclarecer fenômenos incompreensíveis e tranquilizar corações apreensivos.

O sentimento de pertencimento a uma comunidade, as formas metafóricas de pregar valores básicos, que têm o potencial de tornar a vida em sociedade mais plena, e a conscientização a respeito de práticas nocivas para o indivíduo e, consequentemente, para a comunidade, são legítimas e louváveis. Nossa rejeição à opressão exercida pela religião também nos privou, portanto, dos seus benefícios práticos.

“Ao procurar Deus fora de si, as pessoas se tornaram limitadas a uma mera existência física. Esquecemos que Deus é parte de nós e nos tornamos cegos para a presença de Deus em todo lugar. É hora de pararmos de buscar Deus e passarmos a ser Deus. Deixar de adorá-lo, para confiar no Deus atuante que habita em nós.”

“Quem não vê Deus em tudo, não vê Deus em nada”

–Yogi Bhajan

Para além de todos os benefícios físicos e mentais que a prática da yoga e da meditação me trouxeram, a grande descoberta que experimentei com a Kundalini foi o conforto espiritual de encontrar algo em que confiar, uma ideia improvável na qual se apoiar, um consolo para as angústias mundanas. Foi passar a ver Deus em tudo.

[Continua nos próximos capítulos.]

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