Como User Research pode melhorar a relação entre profissionais de saúde e seus pacientes?

Fred Andrade
Indigo Health

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Dona Maria se senta no consultório do Dr João. Ela está com uma cara triste, uma postura prostrada e um olhar vazio. Ele, em seu pragmatismo profissional e pressa de quem se prepara para uma longa fila de consultas, faz algumas apresentações e já inicia uma enxurrada de perguntas.

Idade? Estado civil? Religião? E a sua naturalidade? O que a trouxe aqui? Há quanto tempo sente isso? O que faz melhorar? E na família, algo parecido?…

Essas, entre muitas outras perguntas impossíveis de serem descritas nesse texto sem torná-lo cansativo, fazem parte de um dos rituais mais relevantes da área da saúde: a anamnese.

Anamnese

Do grego ana, “trazer de novo” e mnesis, “memória”, nada mais é do que um processo de entrevistada, contextualizada na relação profissional de saúde e seu paciente. Assim sendo, tem-se como premissa o objetivo de obtenção de informação a partir de uma fonte informante, como o paciente ou pessoa a ele relacionada. Mas por que estamos falando deste tema, e o que UX diz a respeito disso?

De forma resumida, a anamnese é uma das mais puras formas de User Research. Sim, User Research. Evidentemente algumas adaptações semânticas são cobradas, mas, em última análise, o paciente é um usuário. Isso é bem reforçado por alguns mestres das disciplinas de Design, Don Norman e seu popularizado human-centered design.

O paciente é usuário de várias formas, seja enquanto alvo de um plano de cuidado, um tratamento farmacológico, um sistema de saúde complexo e diversas tecnologias, soft ou hard, que o acompanham em sua jornada de saúde.

Porém, o foco desse artigo não é estabelecer paralelos didáticos. O que quero trazer aqui é o que User Research tem a ensinar na condução das anamneses. E, que fique registrado, também há muito o que a anamnese pode ensinar ao User Research, mas esse papo fica para uma próxima.

E o qual é esse ensinamento?

Basicamente, como coletar informações mais vastas, verdadeiras e livres de viéses.

Na verdade, é muito mais ajudando com o que não fazer. E como isso ajuda?Potencializando a exploração de sintomas, fatores preditivos de menor engajamento, comportamentos de risco e muitas outras variáveis que definirão do diagnóstico ao plano de cuidados ideal.

Para ilustrar melhor o como isso aconteceria, nada melhor que um exemplo anedótico com o mesmo par que iniciamos nossa conversa:

Dr João pergunta a Maria: “essa dor que está sentindo, é em pontada, certo? Irradia para o lado esquerdo também, né? Como se fosse… “. Dona Maria responde: “bem… é… É”. Dr João, contente com sua leitura assertiva prossegue com um série de termos técnicos mal adaptadas à compreensão de Maria e já parte para uma exame auxiliar, como alguma radiografia.

Nessa curta interação, vemos vários exemplos de alguns atritos no processo de obtenção de informação. Agora vamos ver como essa experiência poderia ser diferente a partir de alguns preceitos e heurísticas de User Research:

1. Faça perguntas abertas

No exemplo “… é em pontada, certo?”, João não só reduz o estimulo ao pensamento livre de Maria (com potencial de trazer coisas que não estão no seu radar, como também incorre em um forte sugestionamento. Ou seja, descobre menos e ainda aumenta a chance de coletas de dados enviesados.

Outro ponto importante que devemos lembrar, é o fato da relação entre médicos e pacientes ser recheada de assimetrias, vergonhas e estereótipos. Mesmo sendo papel do médico lutar contra essa realidade, é plausível concluir que uma sugestão médica sobre o que o paciente sente exerce uma fortíssima influência para que ele concorde, pois alguém mais habilitado saberia melhor o que ele sente…

Quando um médico tenta tira as palavras do paciente de sua boca, incrementa seu risco de erro e distancia o paciente, o que implica menores adesões, colaborações e sucessos clínicos.

2. Não faça o comercial quando você quer aprender e testar!

É frequente, sobretudo em testes de usabilidade, lembrarmos aos entrevistadores que eles não devem tentar vender a solução que está sendo testada ou a ideia que está sendo explorada.

Como assim? Simples: se alguém não entende uma funcionalidade ou afirma que não usaria, você não deve explicá-la ou mostrar os benefícios que a pessoa teria ao usá-la, mas sim questionar, explorar: “por que não entende?”, “o que está confuso?”, “ por quê?”, “como poderia ser melhor?”, “por quê e por quê e por quê…?”.

Voltando ao nosso paradigma na saúde, não é raro vermos médicos tentarem valorizar seus conhecimentos, conduzindo os pacientes a “comprarem” essas “verdades”. Se um paciente fala que fuma, o Dr João já vai dizendo o quão ruim isso é, o quão necessário é parar e o quão simples pode ser tudo isso, se seguir o que ele fala.
Talvez essa não seja a melhor maneira de lidar com o paciente… Mais uma vez, perde-se a possibilidade de se explorar causas raízes, estabelecer-se combinados mais críticos às realidades do paciente e, mais, aprender com ele dimensões que só são encontradas na vivência pessoal dele.

Essa dinâmica também é bem vista no lado do tratamento. Desvalorizar tudo que foge ao paradigma alopático/remediativo/ocidental é, no mínimo uma ignorância.

Ainda mais no contexto crescente de descobertas sobre as terapêuticas alternativas, reconhecimento do papel da mente (e seus efeitos) na evolução da saúde e caráter evidence-based.

Isso pode nos mostrar, por exemplo, que é melhor deixar o paciente tomando o chá de ervas que acredita curá-lo — mesmo sem evidência científica —do que impor a interrupção desse comportamento cultural e um consequente afastamento do paciente dos serviços de saúde como um todo, gerando piores resultados para outras condições futuras.

3. Explore: se fosse para fazer perguntas fixas e colher respostas secas era melhor rodar um forms

Vemos com muita frequência médicos encurtando seu esforço criativo de adaptar seu processo de condução de perguntas e de conquista de espaços comunicativos mais empáticos e colaborativos em detrimento de algoritmos de perguntas e respostas, listagens de to-do’s e indagações de “sim ou não”.

Veja bem, não quero trazer aqui que isso seja necessariamente errado, até porque há momentos que protocolos, perguntas fechadas e o pragmatismo de um fluxograma são mais que bem-quistos.

Todavia, não devemos também esquecer o valor de uma comunicação entre pessoas. O valor de ir além de um formulário. De entrar em threads exploratórias que lhe levam a lugares improváveis, mas altamente esclarecedores… Ou seja, obter descobertas e insights adquiridos de forma orgânica.

Pode ser que investigando o porquê de uma reclamação sobre as cidades movimentadas ter sido feita em consulta, conduza à descoberta de quem o paciente veio do campo e sente saudade de seus trabalhos rurais, os quais podem ter levado a uma contaminação específica que explica os sintomas respiratórios dele e a radiografia estranha, como no caso de uma paracoccidioidomicose. Sim, esse é o nome de uma doença fúngica.

Enfim, a mensagem final pode ser resumida em algumas pequenas máximas bastante intuitivas até:

“Escute, explore e respeite”,

“Tome cuidado com viéses”, e

“Valorize o informante, não só a informação ou, pior ainda, só a validação de suas hipóteses”.

Por fim, destaco:

“Lembre que pessoas são complexas, emocionais e integrais, por isso a comunicação também deve ser assim.
Mais que reduzir atritos no fluxo das informações, é também para aproximar as partes envolvidas de forma verdadeira e colaborativa”.

Podemos falar de muitas outras coisas que o Design tem a acrescentar para a saúde, e teremos outras oportunidades para tratar disso.

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