Trilhas automatizadas de atuação

Dando o passo certo para o futuro próximo das Instituições de Controle e do bom monitoramento de serviços públicos

Daniel Lima Ribeiro
Inovação em governo e no controle
7 min readMar 20, 2023

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Inteligência de dados e automação tornam quase tudo mais eficiente. É assim com ações de controle — o principal serviço de uma instituição como o Ministério Público, os Tribunais de Contas e as Controladorias. E é assim também com serviços públicos prestados pelo Executivo — de alta ou baixa complexidade, isto é, desde serviços de educação e saúde até a velha burocracia, de preenchimento de formulários.

Usar automação significa apoiar o agente público decisor por meio da conversão da inteligência do serviço (inclusive de controle) em um algoritmo, alimentado por dados e gerando conclusões/alertas. E, preferencialmente, já sugerindo providências prontas. Com isso, abrem-se caminhos de padronização e escala, melhorando a gestão do conhecimento, promovendo resultados mais acertados e reduzindo custos.

Esse processo já está em andamento — mais nas instituições de controle do que no Executivo. Alguns chamam essas automações de robôs, trilhas de investigação ou de auditorias, atuação por tipologias etc. O que antes era uma centena de investigações pulverizadas sobre um certo tema, por exemplo, como superfaturamento de compras públicas ou funcionários fantasmas, dá lugar a uma ferramenta de automação de detecção (e sugestão de providências) desses casos, em larga escala.

Em outras palavras, a trilha automatizada pode ser a total transformação da velha “cartilha ou manual de atuação”. E tem o potencial de eliminar o velho paradigma de uma investigação associada a um único caso, documentada em um conjunto de papéis (ou PDFs), obtidos pela intuição investigatória.

Tendência

O movimento de construção das trilhas vem crescendo e pode vir a ser o exemplo mais efetivo de autêntica transformação digital nas instituições de controle. Em muitos casos, ainda se trata de um processo em fase inicial, em que as trilhas estão sendo construídas em sua fase de inteligência (dados que precisam ser cruzados). Muito distante, ainda, da fase de automação (efetiva captura e processamento automatizados dos dados).

No entanto, analisando as iniciativas em andamento, percebem-se alguns riscos de passos no caminho errado. Porque, em mais um exemplo de separação de agendas, muitas vezes falta sintonia e aprendizado com as lições e tendências da transformação digital.

O principal risco (e distanciamento de um elemento central de transformação digital) é de que a iniciativa de construção de uma trilha não siga a lógica de plataforma e de compartilhamento.

Isso acontece quando as trilhas existem (e muitas vezes se confundem) em sistemas e não em módulos agnósticos e independentes, que possam ser compartilhados via API.

Em alguns casos, mais valor tem sido dado a sistemas do que à inteligência embutida na construção da trilha, seus dados e como obtê-los, o que causa a perda de oportunidade de reuso e configuração de outras trilhas a partir de componentes já criados. Melhor do que a metáfora muitas vezes utilizadas, de robôs, seria a de um bloco de peças de lego — moduláveis e interoperáveis.

Como consequência, outras limitações aparecem:

  • falta de documentação — as trilhas automatizadas não são documentadas de forma adequada, em especial as fontes de dados utilizadas, os cruzamentos realizados e os eventuais índices criados.
  • dependências externas — quase todas as trilhas automatizadas dependem de dados externos à organização que pretende utilizá-las. Sem documentação adequada, não se sabe se as trilhas passaram a ser desatualizadas ou se os dados estão completos. Nem sempre o acesso aos dados necessários se dá de maneira contínua, sem que haja preocupação com confiabilidade e sustentabilidade da manutenção da trilha (que depende de novas extrações estáticas).
  • sem foco no usuário — o usuário das trilhas é o agente público que implementa com autoridade o programa ou as prerrogativas de governo/controle. De preferência, o que não precisa ter formação técnica, eliminando a necessidade de intermediários. Mas, além da construção de trilhas em sistemas (e não em módulos-componentes de uma plataforma — como deveria ser), o desenho de muitos deles não leva em conta as reais necessidades e o processo de trabalho daquele usuário. Ao invés das muitas plataformas complexas, com interfaces inadequadas e dados enciclopédicos, agentes públicos necessitam de “alerta e botão”, com automação de providências que podem ser provenientes da inteligência gerada pelas trilhas.

Desafios atuais para corrigir o rumo

Os desafios de correção do rumo são oportunidades para integração entre instituições e fortalecimento do processo de transformação digital. Eles passam pelo seguinte:

  • integração e parceria com quem está criando trilhas — Falta de integração inter e entre instituições resulta em retrabalho e, muitas vezes, na impossibilidade (pela falta de compartilhamento de dados) da criação de trilhas de alto impacto. Órgãos ou unidades de transformação e inovação digital precisam navegar o desafio adicional de, com suas atribuições transversais, não aparentarem disputar espaço com unidades temáticas que despertaram para a importância e estão no seu processo de criação de trilhas. Esse é um desafio da inovação e da TI se transformando em estratégica e não fazendo sentido existir separadas das unidades de “negócio”.
  • comunicar a ideia e a lógica de plataforma e modularização, desincentivando a criação de sistemas novos e próprios — Apesar da trilha ser o principal, ela tende a ser comunicada apenas como um acessório — uma parte de um sistema. Mas é na verdade um produto por si só. Nesse ponto, entra em cena o viés do custo enterrado (sunken cost), tornando desafiadora a decisão de abandonar um sistema e aproveitar apenas alguns de seus componentes. No mínimo, é fundamental criar a cultura de plataforma, exigindo ou incentivando que as trilhas sejam disponibilizadas como APIs, independente da decisão de desenvolver qualquer sistema.
  • mapear as que já existem — para cada sistema, identificar as trilhas existentes, o que elas informam, a partir de quais cruzamentos, utilizando quais dados (obtidos e atualizados de qual forma) e embasando quais providências de controle ou gestão.

De sistemas a módulos self-service

Como sugestão do caminho a seguir, a partir daqui, estão os seguintes passos:

  • priorizar por onde começar — a partir do mapeamento das trilhas já existentes como input de custo para a priorização das novas trilhas a construir — considerando seu impacto e gravidade do risco do que se precisa investigar.
  • desempacotar as trilhas criadas em módulos com APIs — e a cada trilha dar endereço próprio em um banco de trilhas, com sua documentação, exemplos de casos de uso, informações sobre fontes e suas atualizações e instruções para replicar o acesso. É calçar os sapatos do desenvolvedor de novas trilhas e permitir que as existentes sejam facilmente reutilizadas.
  • detalhar em documentação os dados necessários para reuso da trilha e mostrar o caminho (judicial, inclusive) para sua obtenção — muitas trilhas irão depender de dados de nível local, distinto da unidade administrativa/política de onde a trilha foi criada e onde pode estar funcionando. Desenvolver soluções fáceis e baratas; e teses e peças jurídicas para promover o acesso contínuo às bases de dados necessárias.

Novos usos

Para as trilhas que já existem e quanto às quais já foram dados os passos anteriores, é possível avançar com os seguintes usos:

  • investir em automação — criar, na mesma plataforma que reunir todas as trilhas, soluções de automatização de providências que partam da inteligência produzida pelas trilhas. Para as que já estejam funcionando, oferecer acesso às providências sugeridas aos órgãos responsáveis.
  • em mais uma estratégia de integração, promover a internalização e uso de trilhas pelos controlados — estratégia idealizada pelo TCU, oferecendo ao controlado o uso da trilha embutida em seus processos internos de controle e gestão. Assim, sendo notificado (pelo funcionamento da trilha) da ocorrência de uma irregularidade a ser sanada, evitando-se uma ação de controle.

Novas trilhas

Já para a construção integrada e eficiente de novas trilhas, sugere-se

  • entender e integrar os tipos complementares de expertise necessárias para a construção de uma trilha — em parte, é preciso o conhecimento do “negócio”, o que envolve o conhecimento de especialistas sobre o tema — que estão no controle, no Executivo e Legislativo, no setor privado, terceiro setor e na Academia. Mas, além disso, exige-se o conhecimento técnico, de infraestrutura e de ciência de dados, para permitir o acesso fácil e com custo baixo aos dados necessários para a trilha. Por fim, exige-se conhecimento jurídico para o desenho e implementação de teses e estratégias para o acesso aos dados e automação de providências a partir da inteligência gerada pelas trilhas.
  • desenhar e implementar estratégias (inclusive de controle judicial quando preciso) para obtenção contínua de dados — coordenar o desenho das teses e escolher casos estratégicos para, de forma articulada com todos os órgãos atuantes em todos os graus recusais, atuarem em conjunto para permitir a consagração da tese que garante o acesso. Também será necessário alinhamento para que elementos técnicos e financeiros também façam parte da tese, prevenindo as possíveis objeções infundadas que foquem nesses aspectos.
  • criar regras de contratação e gestão de trilhas criadas (ou alimentadas) pelo setor privado — o setor privado pode ser (inclusive por meio de processos de inovação semiaberta e aberta) um provedor do desenho e construção de trilhas de controle. Mas há uma série de questões a serem resolvidas. Em alguns casos, pode ser necessário pagar pelo desenho e implementação de arquitetura para acesso aos dados, ou também pelos modelos de IA usados para processá-los e gerar a inteligência da trilha. Devem as contratações de construção de trilha exigir o código dos modelos criados? Perguntas a serem enfrentadas e que podem alterar profundamente os incentivos e o mercado.
  • coordenar a criação de novas trilhas, modulares ao máximo para servirem a mais de uma área — lógica de trilhas criadas a partir da aglutinação de outras trilhas. Quando disponibilizadas em plataformas, de modo self-service, bem documentadas e com uma estratégia de alimentação contínua e sustentável de dados, cria-se um aumento exponencial de possibilidades de criação de novas trilhas a partir de combinações das que já existem. Para isso, pode ser interessante criar uma rede e um banco de trilhas, compartilhado pelas instituições de controle, externo e interno.

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Daniel Lima Ribeiro
Inovação em governo e no controle

Ex-Coordenador e atual Fagulha do Laboratório de Inovação do MPRJ (Inova_MPRJ). Duke SJD. Curte correr e nadar. Curioso incurável.