Guerra na Ucrânia torna ainda mais urgente uma política para refugiados

Hélio B. Barboza
Inovação Pública
4 min readMar 6, 2022

Faltam programas e projetos articulados em nível nacional para acolher essas pessoas, inseri-las na sociedade e aproveitar seu potencial

Refugiados venezuelanos em Boa Vista, Roraima — 2018 (Foto: Marcelo Camargo/ Ag. Brasil)

Em uma semana, a guerra na Ucrânia produziu cerca de um milhão de refugiados, no ritmo de deslocamento mais rápido já registrado entre as crises humanitárias. Parte desse contingente virá para o Brasil, que acaba de criar o visto humanitário para os ucranianos.

Nos últimos anos, o país recebeu grandes ondas de refugiados: aos haitianos expulsos pelo terremoto de 2010 seguiram-se os sírios que fugiram da guerra civil a partir de 2014 e os venezuelanos deslocados pela fome no país vizinho em 2017. Houve ainda um fluxo contínuo de africanos (principalmente congoleses) e bolivianos, entre outros.

Os ucranianos que vierem vão encontrar um país que aprovou há apenas cinco anos uma nova Lei de Migração, em substituição ao Estatuto do Estrangeiro, que havia sido criado na ditadura militar e considerava os estrangeiros como ameaça à segurança nacional. Juntamente com a Lei de Refúgio, de 1997, e a lei sobre tráfico de pessoas, de 2016, estabeleceu um novo tratamento aos cidadãos que chegam de outros países, sob a perspectiva dos direitos humanos, inclusive com a consolidação da política de vistos humanitários.

Mas se por um lado modernizou a legislação, por outro lado o Brasil segue sem uma política para os refugiados, isto é, sem um conjunto de programas e projetos articulados em nível nacional. O Comitê Nacional para os Refugiados (Conare, criado pela lei de 1997), limita-se a definir critérios de reconhecimento legal da situação dessas pessoas.

Estamos atrasados: a instabilidade do sistema internacional aponta para a continuidade da produção em larga escala de refugiados no mundo. A guerra na Ucrânia apenas acentua a urgência de o governo brasileiro lidar com a questão por meio de uma política consistente, intersetorial e integrada com os estados e municípios.

Os ucranianos pelo menos não devem sofrer o racismo e a violência brutal que matou o congolês Moïse Kabagambe há pouco mais de um mês, no Rio de Janeiro. Mas vão enfrentar problemas que afligem todos os que tentam reconstruir a vida por aqui: falta de integração aos sistemas de ensino e ao mercado de trabalho, dificuldade de acesso aos serviços públicos, preconceito e discriminação.

Na falta de uma política nacional, o que temos são iniciativas de governos locais e de organizações não-governamentais. São Paulo tornou-se a primeira cidade do país a contar com uma política municipal para imigrantes, estabelecida em lei a partir de 2016. Foi criada a Coordenação de Políticas para Imigrantes e Promoção do Trabalho Decente (CPMig), subordinada â Secretaria Municipal de Direitos Humanos e Cidadania. “Seu objetivo é articular as políticas públicas migratórias no município de forma transversal, intersetorial e intersecretarial, uma proposta pioneira na cidade e no país”, diz o site da Coordenação.

A atuação do órgão abrange, entre outras atividades, a capacitação de servidores, a gestão de um centro de referência e quatro centros de acolhida e o Programa “Portas Abertas”, que utiliza a rede de escolas municipais para oferecer gratuitamente o ensino de língua portuguesa, com material didático próprio. Os professores da rede recebem treinamento específico para o atendimento desse público.

A cidade de São Paulo conta ainda com o Adus — Instituto de Reintegração do Refugiado, ONG dedicada a inserir os refugiados na sociedade brasileira por meio de ações educacionais, culturais e de capacitação profissional. A organização também oferece orientação jurídica e ensino de português, além de manter uma escola de idiomas onde refugiados ensinam francês e espanhol.

A Igreja Católica apoia os imigrantes e refugiados por meio do Centro de Apoio e Pastoral do Migrante (Cami), referência em acolhimento, orientação e assistência. Para muitos que chegam em meio ao desespero, sem trabalho nem moradia, o Centro é a primeira porta que se abre.

Em um mapeamento sobre as políticas públicas e a produção acadêmica acerca dos refugiados no Brasil, pesquisadores da Universidade de Brasília apontaram que:

quando não existe um modelo de assistência aos refugiados no Brasil, ações pontuais são tomadas. Entretanto, com o crescente ciclo migratório internacional, devido às guerras civis ou graves incidentes naturais, há necessidade de políticas, programas e ações programáticas para recebimento e acolhimento dessa população.

Com uma política nacional sistematizada para receber quem vem de fora, o Brasil poderia aproveitar melhor a imensa riqueza cultural, a capacidade de trabalho e a diversidade de conhecimentos e experiências que essas pessoas trazem na bagagem. O país só teria a ganhar.

Last but not least…

É importante esclarecer os conceitos:

  • migrante é qualquer pessoa que muda de região ou país, sendo imigrante a pessoa que chega a determinado país e emigrante, a que sai;
  • refugiado é o migrante que foge de guerras, perseguições políticas, violação de direitos humanos;
  • solicitante de asilo é quem pede proteção internacional e aguarda ser reconhecido como refugiado.

Segundo o Ministério da Justiça, até meados do ano passado o Brasil tinha 60 mil refugiados, dos quais 26 mil tiveram o status reconhecido em 2020. De acordo com o relatório “Refúgio em Números”, o governo brasileiro recebeu 29 mil pedidos de refúgio em 2020, de 113 países, sendo que 60% vieram da Venezuela.

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No final do ano passado, o Cami e a Associação Nacional de Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra) lançaram o guia “Bem-vindos ao Brasil”, um manual de bolso com orientações básicas sobre documentação, acesso a serviços públicos e direitos dos migrantes, atualizado com as modificações impostas pela reforma trabalhista de 2017. O guia pode ser baixado gratuitamente neste link.

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Quem assinar a newsletter do Adus — Instituto de Reintegração do Refugiado, ganha gratuitamente o pequeno e-book “Sabores e Lembranças”, com receitas da Colômbia, do Congo e da Síria.

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Em 2020, a Agência da ONU para Refugiados (Acnur) desafiou estudantes de todo o mundo a formularem ideias para ajudar os refugiados. Um resumo das oito ideias vencedoras pode ser visto aqui.

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