The Facebook Files: A Influência do Instagram no Espectro Psicológico dos Adolescentes

Duarte Gaivão
iNOVAMedialab
Published in
7 min readMar 3, 2022
A ex-funcionária do Facebook Frances Haugen testemunha durante uma audiência do Comité do Senado sobre Comércio, Ciência e Transporte no Capitólio, 5 de Outubro de 2021, em Washington, DC. Drew Angerer/Getty Images

O que são os Facebook Files?

Frances Haugen, uma mulher americana de 37 anos, com mais de 15 anos de experiência na indústria das grandes empresas de tecnologia, foi Product Manager na equipa de integridade civil do Facebook entre 2019 e Maio de 2021, altura em que decidiu abandonar a empresa e divulgar o conjunto de documentos internos que originou o escândalo que hoje conhecemos como Facebook Files (Setembro de 2021). Os Facebook Files vieram expor um número de situações de má conduta e influência negativa das aplicações da família do Facebook nos seus utilizadores. Entre elas, foi revelada, por meio de estudos internos, a influência que o Instagram exerce sobre a saúde mental dos seus utilizadores adolescentes, em particular do sexo feminino. Entre os vários documentos divulgados, estes são alguns dos mais reveladores, organizados por ordem cronológica:

2012 — O Facebook compra o Instagram para apostar no mercado de adolescentes.

2018 — O Facebook começa a estudar a influência do Instagram na saúde mental dos seus utilizadores. Começaram com um inquérito online a 2.500 adolescentes dos E.U.A. e Reino Unido, de onde resultaram as seguintes informações e citações, divulgadas nos documentos internos:
- “De entre os jovens que revelaram pensamentos suicidas, 13% dos utilizadores britânicos e 6% dos utilizadores americanos associam o desejo de terminar a própria vida ao Instagram.”
“De entre os jovens que revelaram sentimento de solidão, 21% dos jovens americanos e 18% dos jovens britânicos partilharam que esse sentimento começou no Instagram.”
“O Instagram molda as vidas e estado espírito diários dos adolescentes.”

2019 — Documento interno que sumariza os resultados dos estudos anteriores. Contém a seguinte citação, a bold e maiúsculas:
“NÓS PIORAMOS OS PROBLEMAS DE IMAGEM CORPORAL DE 1 EM CADA 3 RAPARIGAS ADOLESCENTES!”

2020 (Março) — Estudo qualitativo “Teen Girls Body Image Study”. Concluiu que: “A comparação social é pior no Instagram.”

2021 — Inquérito sobre comparação social, que contou com mais de 100.000 participantes.
“A comparação social e o perfecionismo não são nada de novo, mas os jovens estão a ter de lidar com estes problemas numa escala sem precedentes. Os jovens apontam o Instagram como uma das causas.”

Atendendo a esta linha temporal de documentos internos do Facebook, é fácil verificar a existência de uma influência negativa do Instagram em adolescentes, assim como o elevado nível de conhecimento da empresa sobre este efeito, uma vez que se trata de estudos e documentos criados e divulgados na rede interna pelas equipas de investigadores internos do próprio Facebook.

A argumentação do Facebook

Numa audiência ao Comité de Comércio, Ciência e Transportes do Senado dos E.U.A., em Setembro de 2021, em defesa da empresa, alguns executivos do Facebook argumentaram que a comparação social e outros problemas semelhantes são problemas da sociedade e transversais a toda a indústria, que podem ter múltiplas origens exteriores, sendo que qualquer tentativa de resolver o problema dentro do Facebook pode resultar num agravamento não intencional, ou ter consequências noutros campos da experiência do utilizador. Disseram, por isso, que não existe uma solução simples. Argumentaram ainda que, conforme os estudos também indicam, nem todos os jovens utilizadores são afetados por esta influência negativa e que, no geral, os efeitos das aplicações são acima de tudo positivos. Outro argumento muito apresentado foi o de que a denunciante não teria acesso a reuniões ou documentos de alto nível, que alegadamente revelavam que de facto a empresa tem tomado grandes medidas no sentido de prevenir este tipo de problemas, e que estes exemplos são apenas alguns casos minoritários em que não foi possível atuar, indicando, portanto, que os documentos divulgados foram escolhidos a dedo, de modo a pintar uma imagem falsa da realidade. Num comunicado oficial, o Vice-Presidente de Assuntos Globais do Facebook disse que “O que seria verdadeiramente preocupante seria se o Facebook não tivesse feito estes estudos em primeiro lugar.” (Clegg, 2021).

Além disto, o Facebook alega que ponderaram partilhar estes documentos, mas decidiram não o fazer por questões de privacidade e confidencialidade. Mesmo quando o congresso dos E.U.A. requisitou acesso a estes documentos, muito antes da sua divulgação pública, o acesso foi-lhes negado. Mark Zuckerberg (CEO do Facebook) e Adam Mosseri (Diretor do Instagram), em entrevistas ao Wall Street Journal, anteriores à divulgação dos documentos, chegaram a dar testemunhos nos quais recorrem a estudos externos, por serem mais favoráveis à empresa, omitindo estes estudos internos. Outro evento a notar foi a mudança de nome da empresa mãe, de Facebook para META, mudança que ocorreu justamente após a divulgação dos documentos, e se especula que possa estar relacionada com uma tentativa de fuga à opinião pública negativa associada ao Facebook. Relativamente às alegadas medidas de contenção dos problemas levantados, apesar das inúmeras sugestões documentadas de medidas a implementar, apenas uma foi aceite — a remoção da contagem de likes — sendo certo, e também documentado, que os estudos indicam que esta medida teria muito pouco efeito na resolução efetiva do problema, mas antes atuaria positivamente na perceção pública de pais, media e reguladores.

A legislação em vigor

Atualmente, as regulamentações em vigor são, nos E.U.A., a First Ammendment, que é a lei que protege a liberdade de expressão, e a Section 230, que é a lei que protege as plataformas de serem responsáveis pelo conteúdo publicado pelos seus utilizadores. A Federal Trade Commission (FTC) — entidade responsável por regular os mercados e a proteção do consumidor — fica encarregue de quaisquer reformas à Section 230, que se considera por muitos desatualizada. No passado, nenhuma das tentativas de reforma à Section 230 teve sucesso, ou não passou de correções superficiais, por entrarem em conflito com a First Ammendment e, acima de tudo, pela falta de conhecimento técnico e conhecimento de causa dos reguladores. Na União Europeia, atualmente vigora a E-commerce Directive (artigo 14), que é a lei que regula esta atividade, mas conta com 20 anos de idade e, por estar já muito desatualizada, está agora em fase de consulta uma proposta de nova lei — o Digital Services Act — para a qual a Frances Haugen foi ouvida no Parlamento Europeu no passado dia 8 de Novembro. Casey Newton, jornalista e fundador do Platformer, deposita um enorme peso nesta nova proposta, por acreditar que possa ser o elemento definidor de uma nova norma a nível global, e com isso forçar a FTC a implementar finalmente medidas de reforma mais drásticas à Section 230.

O testemunho de Frances Haugen

Testemunho de abertura de Frances Haugen ao Comité do Senado sobre Comércio, Ciência e Transporte no Capitólio, 5 de Outubro de 2021, em Washington, DC. C-SPAN

Na audiência ao senado americano, em Setembro de 2021, Frances Haugen também foi ouvida, onde reiterou que uma simples alteração à Section 230 não será suficiente para corrigir este tipo de situações, e apelou a que qualquer alteração à legislação tenha como princípio o acesso aos estudos e resultados internos destas empresas. Defendeu a importância da transparência total, porque, como disse, sem isso “… é como compor um código da estrada, apenas observando os carros a passar na estrada.”. Disse também que não recomenda a divisão das empresas da família Facebook, uma vez que isso representaria a divisão das equipas em frações mais pequenas e menos capazes de enfrentar os problemas, e propôs que a ação seja antes tomada a nível regulamentar e governamental. Nathaniel Persily, um professor de direito na Stanford Law School, defende que a FTC deve regular a partilha deste tipo de documentos e descreveu exatamente como isto deve ser feito perante o senado.

Mesmo que os lesados destes efeitos não representem a totalidade dos utilizadores, e a origem destes problemas possa residir noutras fontes externas, estes devem ser combatidos a todo e qualquer custo. Estas plataformas não devem nunca servir de ferramenta para qualquer tipo de influência negativa associada à comparação social ou qualquer outra problemática semelhante. Estes estudos, que relembro serem da autoria do próprio Facebook, trazem um rigor empírico aquilo que sempre foi uma suspeita comum, e com isso atribuem-lhe uma urgência sem precedentes. A auto-regulação não funciona em nenhuma indústria, da mesma forma que os bancos não se auto-regulam, e por isso é imperativo que propostas como o Digital Services Act venham definir uma nova base de intolerância para este tipo de problemas do espectro social e psicológico nas plataformas de redes sociais. Se não os podemos culpar pelo conteúdo publicado, devido a leis como a Section 230, então devemos culpabilizá-los por promover este conteúdo prejudicial à nossa saúde mental. Tanto Casey Newton como Tarleton Gillespie, no seu artigo “The Relevance of Algorithms” de 2013, defendem separadamente que, acima de tudo, estas empresas devem ter fortes princípios éticos na base da sua política operacional, desde o primeiro dia de atividade. Estes devem ser princípios de respeito à privacidade e saúde física e mental humanas. Por fim, deixo uma citação de Casey Newton que sumariza de forma muito eficaz a minha posição neste tema:

“Não precisamos de acreditar que as redes sociais são a causa de todos os problemas do mundo, para exigir um relato mais completo do que o Facbook sabe sobre o comportamento dos seus próprios utilizadores.” (Casey Newton)

Série de ensaios produzidos pelos alunos do mestrado em Novos Media e Práticas Web da Universidade NOVA de Lisboa.
NOVA FCSH |Unidade Curricular: Estudos de Plataforma e Social Media

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