As dores de quem faz Seleção

Lili Fonseca
InPeople

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Esse texto é dedicado às profissionais incríveis de Seleção que conheci ao longo da minha vida.

Essa semana tive que pedir para sair de um projeto já na reta final. Quem me conhece sabe que, independentemente das condições, desistir não é uma opção e se essa não foi a primeira vez em mais de 10 anos de carreira, deve ter sido a segunda ou terceira, no máximo.

Esse projeto especificamente mexeu em lugares muito delicados do meu emocional, misturando experiências passadas com o reviver de sensações muito ruins. Tudo isso foi identificado, conversado e tratado na minha terapia. O ganho de consciência da dor é um passo importante, mas saber o que está acontecendo não nos obriga a passar por isso como máquinas. E acreditem, eu tentei.

Tentei tanto que fui quase até o fim desse projeto impassível, sem deixar ninguém perceber que havia algo MUITO errado e ainda tocando outros 9 projetos entre processos seletivos, treinamentos e aulas. Só resolvi parar e expor a situação quando o copo havia transbordado para todos os outros aspectos da minha vida.

Curiosamente não foi a sobrecarga de trabalho que me derrubou, mas poderia ter sido.

A vida nos bastidores dos processos seletivos é quase como uma novela. Tudo é feito para que nada atrapalhe a produção do capítulo do dia, não importam os empecilhos. E quanto algo dá muito ruim com um ator/atriz, a substituição é feita sem alarde, com uma explicação breve que não aprofunde o assunto. E a vida segue.

Apesar dessa analogia cruel da novela, não quero ser ácida hoje. Não quero buscar culpados, até porque acho que todos os agentes envolvidos têm uma parte de responsabilidade e suas justificativas dentro desse sistema.

As pessoas aceitam projetos e empregos em seleção porque tem contas para pagar, as empresas e áreas de RH aceitam esse fluxo porque precisam manter suas estruturas funcionando, precisam contratar pessoas e alimentar o mercado que não para.

Mas, como falei lá em cima, o ganho de consciência é um passo importante. Pessoas são afastadas e passam por problemas de saúde mental em todas as áreas, mas em seleção os problemas se repetem todos os anos nos mesmos ciclos. Isso não pode virar paisagem.

E já que resolvi falar do assunto, vou trazer alguns exemplos reais caso você não seja da área. Não são situações que me contaram, são histórias que eu vi acontecer:

· Uma consultora, após várias cidades, entrou em crise de pânico durante um processo seletivo em outra cidade e não conseguiu sair do quarto do hotel para conduzir uma dinâmica.

· Diversas consultoras adiando cirurgias, consultas e procedimentos de saúde por causa do cronograma dos projetos, como por exemplo: “Preciso muito arrancar o siso, mas agora não tem como. Vou tomando remédios para a dor e no final do ano eu extraio.”

· Uma headhunter que fez uma entrevista comigo das 20h até 22h30, sendo que eu era a quinta entrevista do dia e isso era rotineiro.

· Conversas em grupos de consultoras no WhatsApp perguntando quem havia conseguido escovar os dentes naquele dia, dada a falta de tempo.

· Cronogramas de projeto tão apertados que demandam 2 ou 3 dinâmicas presenciais com entrevista individual no mesmo dia e apenas uma consultora conduzindo, muitas vezes por semanas e incluindo viagens para realizar o processo em várias localidades.

· Incontáveis consultoras de processos seletivos massivos sendo afastadas no pico dos projetos por crises de ansiedade ou burnout.

O mais cruel dessas situações é que em absolutamente TODOS os casos, na hora que a seleção começa ou nas reuniões com o cliente, a postura dessas profissionais é impecável.

E aqui vale ressaltar um dado importantíssimo:

Quase 100% dos profissionais dessa área são mulheres. Muitas vezes também são mães. E ainda assim dão conta. Cuidam da casa, dos filhos, do cronograma, do cliente, dos dados do projeto, dos milhares de candidatos e ainda sorriem quando o cliente pede um dado complexo no meio da semana como se fosse só buscar um café e não fosse preciso fazer um levantamento complexo no sistema ou em planilhas de Excel.

Vocês são incríveis. Esse texto é para vocês.

E também é para questionar: por que aceitamos tudo isso? Por que não conseguimos dizer mais “nãos”? Por que nos permitimos viver no absoluto limite de tudo em nome do trabalho?

No final das contas acho que esse texto é na verdade para mim mesma. Todo texto começa como uma conversa entre o escritor e ele mesmo, não?

Mas antes que se torne pessoal demais — como já se tornou — quero retomar a reflexão prática do assunto.

Se você é profissional de seleção, reflita de que maneira os próximos ciclos podem ser realizados de uma maneira mais saudável.

Se você é uma consultoria de RH planeje novos modelos de trabalho com seus clientes, busque a antecipação dos projetos e estabeleça limites. Cuide dos seus. Ou melhor, das suas.

E se você contrata empresas de seleção, saiba que você tem um espaço enorme para mudar esse cenário.

ENORME.

Tão grande que aqui vão três dicas diretas e práticas:

- Planeje processos seletivos, principalmente posições massivas como estágio e trainee, com muita antecedência para permitir que as consultorias construam cronogramas confortáveis. Provisione o tempo de discussão e fechamento da proposta antes do planejamento inicial do projeto para não atropelar as decisões iniciais — você sabe que a área de Compras tem seus próprios prazos. Planeje 2 a 3 meses de planejamento antes do tempo de execução/operação, que pode variar de 3–6 meses dependendo do volume e quantidade de etapas. Provisione também um tempo de fechamento pós-processo.

- Questione a carga horária de trabalho dos profissionais envolvidos. Veja se é coerente com o cronograma apresentado e se não for, peça mudanças. A ânsia em atender o cliente com velocidade é o que ocasiona cronogramas nada saudáveis, por isso você tem todo o direito de questionar e fazer um combinado melhor para ambas as partes.

- Não terceirize seu prazo impossível para as consultorias como se fossem máquinas. Você está contratando pessoas para prestar um serviço para você. Se você não consegue fazer combinados mais saudáveis dentro da sua empresa, não jogue essa culpa para fora.

Por fim, se você está passando por um momento próximo a uma das situações que eu citei, receba um abraço virtual meu e fique à vontade para me escrever. Seguimos juntas nesse barco até navegarmos por mares mais calmos.

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Lili Fonseca
InPeople

Questionando o modus operandi de Comunicação, Desenvolvimento e Gestão de Pessoas do jeito que são feitos até hoje.