Insónia: Norwegian Wood

Insónia
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8 min readMay 2, 2022

Decidi escrever um pouco sobre a primeira e única obra que li até agora do escritor japonês Haruki Murakami. Sou uma pessoa que gosta imenso de falar de cultura e geralmente começo por contar sem partilhar toda a história, um pouco por respeito ao outro que possa querer ler/ver/ouvir a criação cultural de que falo mas também porque penso que algumas obras valem sem o seu conteúdo, simplesmente pela forma que assumem e são sempre essas as que me interessam mais.

Apercebo-me que sempre que falo de livros importantes para mim que já li acabo a contar sempre ou o contexto histórico do Fiesta (The Sun Also Rises) de Ernest Hemingway ou do D. Quixote de Miguel de Cervantes. Toda a criação tem um contexto que, normalmente, atribui um simbolismo mais intenso à mesma e essas duas obras têm esse poder curioso.

Muito resumidamente, na primeira obra Hemingway pediu a opinião de Fitzgerald sobre o livro e este último deu-lhe uma opinião que o outro acabou por seguir quase à linha. Já sobre o D. Quixote há todo um contexto histórico relacionado com o lançamento de um segundo volume não oficial e a vontade do escritor espanhol Cervantes se querer livrar da personagem que lhe fugia do controlo. Ambas as histórias são mais complexas mas também não são o foco deste artigo. São só algumas das árvores nesta floresta literária que vou sempre explorando.

Porquê toda esta introdução? Bem, entender Murakami e compreender Haruki é também dissecar o seu gosto por música e essa mensagem é imediatamente lançada pelo título da obra. Norwegian Wood é o título de uma das inúmeras músicas dos The Beatles, sendo, ao mesmo tempo a canção preferida de Naoko, uma das primeiras atrações românticas de Toru Watanabe, o protagonista que nos acompanha e nos explica a história que lemos. É essa a música que transporta a narrativa e, fundamentalmente, o leitor.

Já sei a próxima pergunta: então e o sumo da obra? Escrever e falar sobre livros é algo que me cativou sempre, seja pelo desafio, seja por eu próprio perceber o que retirei de mais interessante de um livro. Aliado a isso há sempre o receio que quem venha ler acabe por perder toda a surpresa que o livro teve para mim.

Assim digo com uma descrição rápida o que acontece nesta obra para quem queira ler: Watanabe tenta encontrar-se, ao mesmo tempo que tenta encontrar um amor para si. Há muita atração sexual e muita atividade química e psicológica que levam a história quase como se fosse puxada por uma coleira.

Uma das temáticas mais intensas é o suicídio e este está tão presente como o Sol na nossa vida: às vezes acabamos por o enfrentar sem barreiras e noutros casos está no fundo, sem o vermos, mas reconhecendo que está presente. De uma forma é natural visto que o suicídio é a principal causa de morte nos homens entre os 20–44 anos e as mulheres entre os 15–34 anos; no geral, por cada 100 mil habitantes, há 15,3 suicídios (em Portugal esse número é 11,5).

Em suma, Toru encontra-se e acaba também por encontrar o amor. Também este fim é interessante para analisar visto que pode haver aqui um polo norte e um polo sul de interpretações: eu interpretei como Watanabe encontrando o amor; em fóruns online encontrei a possibilidade de interpretar que também o personagem principal deste livro comete suicídio.

Vamos agora arrancar no comboio-bala para contar com toda a rapidez o que acontece. Todo o livro é “resultado” da narração de Toru Watanabe da sua vida, entre os romances com Naoko, Midori e algumas relações mais próximas com outros colegas. A relação de Toru com Naoko foi muito por influência da relação que mantinha com o seu melhor amigo e namorado desta, Kizuki.

O suicídio de Kizuki é uma linha mortal que os une, seja por o quererem recordar, seja por quererem desenterrar a sua figura e o que se passou: haveria algo que podiam ter feito diferente; algo indicava que aquilo podia ter acontecido; e agora?

Naoko é uma pessoa que fica altamente marcada por esta morte e toda a sua pessoa será transfigurada. Toru não fica indiferente, acaba até por reconhecer que como foi a última pessoa que falou com Kizuki provavelmente poderia ter identificado algum sinal para este resultado [nada indicava que podia ter feito algo; não havia uma carta de despedida escrita e durante o jogo de snooker não conversaram nada do tipo].

No entretanto Toru conhece Nagasawa — um amigo inteligentíssimo, com uma namorada dedicada (Hatsumi) mas sempre à procura de mais um romance na noite como se fosse o jogador no livro de Dostoiévski e não conseguisse rejeitar uma oportunidade — e também o Facho — um colega de quarto especial pelo seu gosto por geografia e pelas suas atitudes mais únicas.

Quando Naoko faz 20 anos, Toru vai celebrar com ela e acaba por ter um dos únicos momentos em que Naoko fala abertamente sobre a sua vida. Sem grande estímulo, após 4 horas de conversa, acaba por chorar incontroladamente e Toru abraça-a. Acabam por ir para a cama e só uns tempos depois é que Watanabe fica a saber, por Naoko, que esta era virgem. Esta é uma parte algo cinzenta da obra e o sentimento é refletido pelo que se lê no livro:

Nessa noite, dormi com Naoko. Não sei dizer se fiz bem ou mal. Ainda hoje, passados quase vinte anos, confesso que não tenho a certeza. O mais provável é nunca vir a saber. Naquele momento, porém, não podia fazer outra coisa. Ela mostrava-se extremamente nervosa, pedindo-me que a abraçasse.

Naoko acaba por ir para uma residência em Quioto — Residência Ami — que está isolada da sociedade e pretende restabelecer as pessoas fora das pressões da sociedade. Será uma época intensa para esta visto que é um local em que as pessoas estão confortáveis a preparar e a plantar as suas próprias reservas alimentares. Trata-se, no fundo, de uma comunidade autossustentável em que cada um tenta encontrar o seu ponto mental. Aqui Toru conhece Reiko, uma amiga de Naoko e que mora com esta. Também a história de Reiko é interessante mas, como figura secundária, não a explico aqui. Recomendo a ler porque é uma história também muito bem contada.

Um dia Toru conhece Midori, a 2ª das suas paixões amorosas. Midori é uma figura absolutamente contrária a Naoko: é independente, extrovertida, um símbolo da mulher moderna e lutadora. Nesta altura Midori tem um namorado, mas mesmo a relação com ele é instável e esta começa a desenvolver uma atração por Watanabe.

Midori vive com a irmã numa livraria dos pais e vai sempre tratando do pai, que está num hospital em tratamento contínuo. A mãe já morreu e o crescimento de Midori é muito influenciado por estes fatores.

Fazendo um avanço rápido (até porque o texto já vai longo) o estado de Naoko piora. Começa a ouvir vozes e já não consegue sentar-se para responder às cartas de Toru. Um dia é discutida a possibilidade de esta ir para um hospital especializado de forma a melhorar, situação que acontece. Começam a aparecer sinais de melhoria e um dia Naoko pede para visitar Reiko na residência para recolher algumas coisas que lhe faltam e despedir-se antes de voltar ao hospital.

Durante essa noite fala com Reiko da sua experiência com Toru e é de madrugada que acaba por cometer suicídio. Já tinha tudo planeado e o ato de queimar os diários e as cartas de Toru tinham o objetivo de, segundo ela, “apagar o passado e começar de novo”.

Toda esta história é algo que Toru fica a saber na visita de Reiko à casa deste. Jantam os dois e acabam por se envolver sexualmente. É um tempo de libertação sexual, há que reforçar este ponto, mesmo que o encontro pareça estranho.

O livro termina com uma chamada de Toru a Midori com o reconhecimento de que as linhas do tempo já chegaram a um ponto comum e, finalmente, com a cabeça num ponto mais equilibrado, Watanabe e Midori podem ficar juntos.

Bem sei que esta descrição é muito grande. Há outras histórias que ficam pelo meio e certas atitudes que se justificam melhor com contexto que não foi apresentado aqui. Não estou a fazer a apresentação deste livro à turma mas quis indicar os temas fundamentais que esta obra carrega.

Sempre que acabo por falar da obra descrevo-a como “intensa”. A saúde mental, o suicídio, o crescimento de um adolescente, o estado político e o sexo são temas que se tratam neste livro.

A escrita de Murakami é muito fluida e muito vívida. Haruki usa uma técnica que tenho apreciado imenso em livros que é contar primeiro o fim de um evento para depois contar a viagem até lá. Esta técnica mal feita acaba por criar um cenário em que já jogámos o trunfo e depois esperamos que o resto das nossas cartas esteja à altura do jogo. E com Murakami costuma sempre funcionar.

No início do último capítulo somos informados logo da morte de Naoko e fazemos depois a viagem para esse clímax. Às vezes sabemos sobre algo trágico no meio de uma conversa, como é o caso do suicídio de Naoko, sem haver uma descrição intensa do que foi. A vida funciona muito assim: os tramas acontecem e nós temos só que lidar com eles. Não há uma descrição poética, um teatro composto para se explicar o que aconteceu. Há o acontecimento e o E agora?.

Tenho que apontar que a figura de Watanabe é uma figura algo complexa também para eu apoiar. As figuras femininas são figuras compostas mas parece que acabam por estar ali em prol de Toru. E isso nota-se no facto de que 3 das figuras femininas com quem Toru lida acabam por se envolver sexualmente com este. Serão eventos sem significado romântico? Será sinal da libertação sexual típica da época? É complicado de definir.

Se há algo que vou apontar como excelente sinal desta obra é o papel da música. Está sempre presente, um pouco como na nossa própria vida. Em todo o lado ouvimos música e se há algo que partilhamos entre todos nós é música, o gosto que temos, as experiências que tivemos com músicas, sem falar em concertos e mesmo a música como prenda.

Para quem não for muito de ler livros, há um filme de 2010 sobre a obra que conta muito bem esta história. Há alguma liberdade artística no que toca ao que é contado e qual a ordem mas é perdoada. Está um excelente cenário e uma ótima produção. Tenho é que apontar que a criação original é claramente superior.

Norwegian Wood é uma obra que recomendo com vivacidade. Nem que seja só para ler excertos tão fenomenais como

Pelos vistos, escrever era a forma que eu encontrara para estabelecer ligações entre os vários pedaços da minha vida em vias de se desmoronar.

Por vezes é só a escrever que juntamos os pedaços perdidos da nossa história.

Perdoem-nos a ausência. A vida aparece nos entretantos

Até uma próxima,

Pedro Barreiro

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