Migração de carreira: o impacto da acessibilidade na minha profissão

Ana Gouvêa
Inside PicPay
Published in
7 min readJan 13, 2022

Olha aí o clichê: quem me viu em uma publicação oficial do PicPay, não imagina que, há poucos meses, eu estava completamente sem perspectiva de futuro profissional.

Ilustração de uma mulher ruiva com vestido verde, segurando uma mala com a mão direita e uma bengala na mão esquerda. Ela está na sala de embarque de um aeroporto, em frente as janelas de vidro onde aparecem dois aviões estacionados com os nomes “UX”e “Writing”.

Senta que lá vem história!

Era 2020, eu estava com 43 anos e já não via muita perspectiva de mudança profissional, afinal, sou cega e a gente é ensinado a se forçar a caber na caixinha que sobrar. Esse marasmo não combina comigo, comecei a movimentar minhas energias de mudança, e em um período de 3 meses eu:

  • Descobri a existência do UX Design;
  • Percebi que não tinha dinheiro pra investir nessa formação e…
  • Pah! Fui demitida.

Obrigada, universo, por proporcionar esse fundo de investimento imediato :)

Pegou o contexto, né? Eu vinha de um período de marasmo e falta de perspectiva, corta pra Ana matriculada em 2 cursos de UX e em outros dois de UX Writing. Não basta ter incentivo, a pessoa aqui precisa ser intensa.

Onde a acessibilidade entra nesse rolê?

Foi o que tentei descobrir. Conversei com os instrutores e ambos me garantiram aprendizado e suporte, oba! Fui linda e confiante dando play nas aulas e parecia tudo suuuuuper bem. Até que… uma das primeiras coisas que precisei fazer, logo no início das aulas, foi baixar o Figma. Todo mundo fala maravilhas, tem plugins de acessibilidade, óbvio que é acessível! Bom de verdade? Não. Nem Figma, nem Notion, nem Miro, ou seja, nenhuma das principais ferramentas de trabalho de um UX designer são satisfatoriamente acessíveis. Mas não desanimei, afinal, é UX e aqui a experiência é o foco.

Empolgadíssima, cursos de UX completados com êxito, chegou a hora do tão aguardado momento com a musa Cris Luckner, uma das maiores referências da área de UX Writing no Brasil. A equipe foi super pró-ativa, recebi todo o material em documentos acessíveis e tive apoio de todas as pessoas. Foram dois cursos com ela, maravilhosos, cheirosos, crocantes e perfeitos! Sério, ninguém no mundo estava mais feliz com todas as possibilidades que eu encontrei.

Também encontrei muitos frameworks inacessíveis, ferramentas que dependem de cor para identificar diagnóstico (tipo o Hemingway, super conhecido na comunidade de writers), mas, em contrapartida, me deparei com comunidades que praticamente nos levam pela mão no caminho do aprendizado, como Ladies That UX, Jovens UX&UI e Somos GUIX. Então respirei fundo e continuei indo, mas com passos já não tão seguros.

É a realidade que você quer?

Faltava só apresentar o case fictício para a mentoria de um dos cursos. A etapa de writing ficou comigo, claro, e como vocês devem imaginar eu fiz e refiz 35485 vezes o conteúdo a ser apresentado. Como já sabemos, Figma não é acessível, então meu time exportou o protótipo em PDF para que eu fizesse a auditoria dos textos. Já tentou avaliar um PDF de um protótipo exportado no Figma? Nem tente, não recomendo.

Pedi que uma amiga writer desse aquele confere, vai que eu esqueci de algo e tal, aí ela me manda um áudio que mudou minha vida:

“Ana, tá bacana aqui, mas senti falta da régua lá no quadro de voz”.

- Régua? Que régua?

“Sabe aquela régua que mostra o tanto que uma voz é séria ou divertida, formal ou informal, a régua que SEMPRE aparece quando falamos em tom de voz.”

-Mana, olha só, eu acabei de descobrir que não tinha entendido esse quadro. Vou rever o material, obrigada.

Ela estava falando dessa régua:

Quadro com 5 diferentes réguas que dividem a linguagem entre extremos como: divertida e séria, formal e casual, popular e culta. É utilizado pela nivelar o tom de voz de uma marca.

Foi nesse momento (13h31 de 17 de julho de 2021) que eu tive minhas exatas 3 horas de total desespero, frustração e quase pânico. Chorei com a certeza de que: 1º não haveria amanhã e 2º joguei R$4.000,00 fora.

Imagem com fundo totalmente preto e no centro mostra reticências em branco.

“Reconhece a queda e não desanima”

Sou grandinha o suficiente pra saber que chorar não resolve, então, fui ler algo que fizesse eu lembrar que meus problemas não são tão grandes quanto parecem. Já leu Passarinha, da Kathryn Erskine? Digamos que a história da perda de um irmão, contada por uma criança autista que já perdeu a mãe, foi um antídoto maravilhoso pra minha crise de autopiedade.

Como minha avó já dizia, o travesseiro é bom conselheiro; ou seja, fui dormir. Não sei com o que ou quem eu sonhei, mas acordei parecendo uma cruza de Ivete Sangalo com Pinky & Cérebro, com uma vontade louca de conquistar o mundo na base das good vibes.

Meu ponto de partida foi: o que deu errado? Resposta simples: não há descritivo de imagem nos cursos, sejam eles gravados ou ao vivo. No caso específico da Cris, ela falou do quadro e me perguntou se estava tudo certo, se eu tinha dúvidas. Do fundo do coração, eu jurava que tinha entendido tudo, mas, como ninguém falou em régua (ou métrica, ou qualquer outro indicativo de quantidade), eu sequer cogitei a existência desse elemento.

Outro ponto comum de todos os cursos: não há indicativo de que o conteúdo é acessível ou não, salvo casos em que informam que há legendas ou transcrição de conteúdo. Mas, como já sabemos, mesmo com toda legenda, não há descritivo de imagens, gráficos e afins.

Descoberto o problema, fui tentar entender por que diabos as pessoas não incluem um descritivo simples e, pra minha surpresa, a resposta foi: porque não sabem que precisam descrever.

Outro ponto de virada

Repensando os cursos, vi que o termo “acessibilidade” sempre vem junto com contraste, tamanho de fonte e, quando muito, sugestão de preocupação com daltonismo… Raramente está associado a questões de texto/conteúdo. Isso não é nem a ponta do iceberg, capitão Smith! Aí eu te pergunto: se não há convivência com a diversidade na família, ninguém ensina na escola, ninguém prepara nos cursos de formação, como as pessoas vão aprender sobre esse tema?

Foram quatro meses entre o começo dos estudos e o tombo. Levantei e sacudi a poeira, mas faltava dar a volta por cima. Virei a louca do Web Content Accesibility Guidelines (WCAG), arroz de festa nas lives de Livia Gabos, Talita Pagani e Marcelo Sales (dentre outras pessoas entusiastas e especialistas no tema acessibilidade), e comecei a falar sobre acessibilidade e inclusão no LinkedIn.

Lembra que comentei sobre o apoio da comunidade de Design? Desistir nunca foi uma opção, mas, quando a gente pode desabafar em um ambiente seguro e encontrar apoio de quem já passou por coisa parecida, a dor parece que diminui. Assim como na luta pela acessibilidade, contei com a boa vontade de pessoas que descreveram imagens pra mim, que ajudaram com insights de aplicativos pouco acessíveis pra mostrar em cases e, óbvio, com um grupo de amigos que fez quase que uma mentoria de processo seletivo.

Minha opção foi publicar coisas na prática, ou seja, como o leitor de tela se comporta em um chatbot, na troca de senha do próprio LinkedIn, na store do PicPay… Isso começou a gerar insights nas pessoas, claro, pois elas começaram a entender o impacto das escolhas de Design e de conteúdo na experiência de usuários “fora do padrão”.

Well, não existe template de usuário né gente, bora estourar a bolha do recrutamento pra pesquisas? Fica a dica. 😉

Imagem de uma textura padronizada com vários quadrados em direções opostas, simbolizando pessoas diferentes.

E agora, Ana?

Nesse período eu parei de me candidatar às vagas de UX Writing, sabe por quê? Porque aparentemente todas as vagas ficam em plataformas que não são acessíveis, e de frustração o meu inferno pessoal já estava cheio.

Atualizou o meu contexto aí? Descobri o que queria ser quando crescesse, fiz tudo o que pude pra essa transição de carreira dar certo, dei de cara com portas que só abrem de um jeito (e desse jeito eu não consigo abrir) e resolvi migrar a migração de carreira, de UX para qualquer coisa que tivesse foco em acessibilidade.

Ainda tenho meu “sonho de princesa” de trabalhar com conteúdo, até porque writers são o UI da pessoa cega, mas o foco em acessibilidade é o propósito que me move e me motiva. Era isso que eu sentia falta no emprego anterior, saber que o meu trabalho faria diferença real na vida de alguém, e essa virou minha meta profissional.

Post pra cá, live pra lá, brota na tela de conexões do LinkedIn uma pessoa do PicPay me chamando pra uma oportunidade: MEU DEUS E AGORA? Não vou mentir, a impostora que há em mim deu aquele puxão pra baixo mas, tadinha, mal sabia ela que, na verdade, me direcionou pra um lança-foguetes! Percebi a oportunidade passando igual um rabo de cometa, me agarrei com unhas e dentes e, bom, o resto da história vocês já sabem: parei de xingar no Twitter e passei a trabalhar na educação com foco em acessibilidade pra todas as pessoas.

Mas todas as pessoas MESMO!

#BoraAcessibilizar

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Ana Gouvêa
Inside PicPay

Oi tudo certo? Sou essa criatura curiosa, filofóbica e bibliófila, lépida e fagueira pregando a religião da acessibilidade no coraçãozinho de vocês ❤