Resenha da obra “A Lei”, de Frédéric Bastiat

Gabriel Lupovici Moritz
Insper Liber
Published in
6 min readOct 1, 2019

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Uma obra sobre os homens, suas leis e a corrupção

A o confrontarmos qualquer produção, sobretudo as mais antigas, conhecer o contexto em que ela se insere é fundamental para uma compreensão mais refinada de suas ideias; entender o momento histórico, geográfico e a personalidade do autor permite ao leitor maior proveito do tempo despendido em sua leitura.

A Lei foi publicado no ano de 1850, mesmo ano da morte de Bastiat, na França e posteriormente, a obra acabou sendo reconhecida como uma das mais ricas contribuições do autor ao mundo acadêmico. Na obra, Bastiat discute, entre outros temas, o que seria uma lei, sua função na relação entre dois ou mais indivíduos, suas aplicações e, por fim, como e porque as leis podem e eventualmente são corrompidas.

Em 1798 se iniciou a Revolução Francesa e dois anos antes da publicação da obra, em 1848, a Segunda República havia sido instaurada. Por conta da relativa proximidade temporal entre estes dois eventos e a publicação do livro, entende-se, naturalmente, que ideias pré-socialistas já haviam se disseminado em países da região e, por conta disso, Bastiat pôde emitir suas considerações sobre os efeitos dessas ideias nas sociedades que as adotassem.

Frédéric Bastiat nasceu no ano de 1801, na França e é considerado um importante autor de seu tempo. Isso se deve em especial a duas principais obras que escreveu, sendo a primeira delas, A Lei e a segunda, A Petição dos Fabricantes de Velas [título encurtado]. Bastiat é considerado por muitos como um pré-libertário por conta de algumas das ideias que expõe, especialmente em A Lei; Bastiat certamente serviu como fonte de inspiração para diversos autores que seguem esta linha filosófica atualmente.

O autor que mais influenciou Bastiat foi o inglês John Locke, sobretudo, com relação às suas ideias de direitos naturais do homem, principalmente expostas em sua obra, “Dois Tratados do Governo Civil”. Dentre tantas contribuições feitas por Bastiat, talvez a mais importante seja a antevisão do quão nocivo um governo, ou estado pode se tornar quando a individualidade é sobreposta, e as “vontades” de um suposto coletivo são priorizadas.

As leis passam a ser corrompidas por indivíduos, tais como governantes, que buscam um caminho “mais fácil”, não necessariamente moral, mascarado por um discurso de falsa caridade e suporte aos mais fracos e necessitados da sociedade para que assim, possam atingir o sucesso e riqueza.

Logo nos primeiros capítulos da obra, Bastiat descreve o que seria o homem e o que seriam as características de um homem. Segundo o autor, a existência humana está sustentada por três principais pilares, sendo eles:

“liberdade, individualidade e propriedade”.

Um homem, por definição, é livre para fazer suas próprias escolhas, de acordo com o que achar ético. Tem suas próprias características mais fortes e mais fracas (as faculdades humanas), que diferenciam os homens. E por fim, o homem tem suas propriedades, conquistadas fazendo uso de suas próprias faculdades, alterando a natureza para se adequar às suas necessidades.

Em seguida, Bastiat combate a ideia de que os “direitos naturais”, de John Locke (a vida, a propriedade e a liberdade), só podem ser outorgados aos homens por meio da elaboração de legislação. Ele demonstra que os direitos precedem a criação de qualquer forma de convenção ou positivação, sendo a causa e o que possibilita a criação de normas e não um derivado delas. Assim é possível compreender a forma como Bastiat interpretava o mundo: através de uma perspectiva voltada aos indivíduos, e não à “sociedade” que os comportaria e daria razões para existir. A máxima expressada por Margaret Thatcher, “there is no such thing as society”, estende ainda mais o raciocínio: o mundo é composto por indivíduos que se inter-relacionam, gerando uma ordem espontânea que, por convenção, foi chamada de sociedade, e não o contrário.

Outra importantíssima parte da obra de Bastiat é sua definição do que seria uma Lei; que representaria, em seu nível mais básico e elementar um instrumento de

“organização coletiva do direito individual de legítima defesa”;

ou seja, um acordo entre indivíduos que garanta a cada uma das partes que as demais reconheçam suas propriedades. A Lei garante que as propriedades possam ser defendidas legitimamente de outros indivíduos com más intenções e, a partir de tal definição, novas leis e acordos, tais como alianças, podem vir a ser criados. O importante a ressaltar é que todos devem cumprir o mesmo objetivo, o de legitimar a defesa natural das propriedades dos indivíduos.

Bastiat argumenta que uma organização coletiva centrada na defesa natural das propriedades privadas e não corrompida, se tornaria, em última instância, uma sociedade regida de acordo com as leis de mercado. Seria privilegiado o mérito de cada indivíduo, ou seja, o que cada um foi capaz de polarizar em torno de si, com o uso de suas faculdades humanas. Seguindo esse raciocínio, Bastiat conclui afirmando que os únicos deveres de um estado ou governo seriam: os relacionados a proporcionar segurança, garantindo assim o direito de defesa natural das propriedades de cada indivíduo e o de não intervenção em negócios privados, garantindo assim, que as leis mercadológicas funcionassem apropriadamente.

Nesse contexto, o autor destaca que a lei pode ser corrompida e são descritas duas diferentes formas como isso ocorre, sendo a primeira delas a ambição estúpida e a segunda a falsa filantropia. A ambição estúpida se define por entender as leis como uma forma de dificultar que a espoliação (caminho mais fácil para a melhoria da renda e se tornar bem-sucedido) prevaleça sobre o trabalho, mas, uma vez que a espoliação estivesse de acordo com a lei vigente, a produção seria desincentivada. Chega-se então a segunda forma como uma Lei pode ser corrompida, a falsa filantropia. Ela se define como uma modificação nas leis, ao fazer o estado se tornar “paternalista”, proporcionando riquezas de forma igual a todos os membros da sociedade.

A Lei não corrompida teria justamente a função de impedir que bens fossem transferidos compulsoriamente entre indivíduos, como dito anteriormente. Ela garantiria que o mérito de cada um, com suas faculdades, fosse devidamente recompensado, além de não seguir uma lógica antimercado. Prosseguindo no raciocínio, Bastiat introduz a ideia do espólio legalizado, ou seja, quando há pilhagem, mas esta é garantida ou permitida aos que a realizam por uma lei corrompida.

O autor sugere que, na realidade, o problema com roubos ou pilhagens não necessariamente seriam as “pequenas infrações”, como um batedor de carteiras, mas sim as que permitem a um grupo realizar a pilhagem sem nem mesmo se exporem ao risco, uma vez que agem dentro da lei, por eles corrompida. Bastiat expõe essa diferença, uma vez que o espólio legalizado apresenta um verdadeiro risco à civilização, ao passo que um batedor de carteiras, jamais teria o mesmo poder.

Com o passar dos anos, e a evolução dos estados, de forma que pudessem cada vez mais corromper as leis para gerarem maior retorno aos governantes, as ideias defendidas por Bastiat ficaram cada vez mais explicitas do que quando foram originalmente publicadas, uma vez que as pessoas foram se familiarizando cada vez mais com a ideia do que seria um estado corrompido.

Os principais “herdeiros” das ideias de Bastiat na atualidade são, entre outros, Friedrich Hayek, com seu conceito de sistema político, a Demarquia e Murray Rothbard, fundador do anarcocapitalismo.

Mesmo que o livro de Bastiat tenha sido escrito há quase 170 anos, suas ideias ainda continuam atuais e na maior parte válidas e aplicáveis, uma vez que estão fortemente fundadas e embasadas na forma como nós pensamos e interpretamos o mundo, e em leis naturais de boa convivência, algo que não se alterou tanto, mesmo após quase dois séculos.

Referências:

BASTIAT, Frédéric. A Lei, tradução de Ronaldo da Silva Legey, Terceira edição Editora Instituto Ludwig Von Mises Brasil, 2010

LOCKE, John. Dois Tratados do Governo Civil, tradução de Miguel Morgado, Edições 70/Almedina Editora, 2006.

BASTIAT, Frédéric. Frédéric Bastiat, tradução de Ronaldo da Silva Legey, Segunda edição, Editora Instituto Ludwig Von Mises, 2010

Frédéric Bastiat. Wikipedia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Fr%C3%A9d%C3%A9ric_Bastiat#Obras>. Acesso em: 29 de julho de 2019.

Revoluções de 1848. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Revolu%C3%A7%C3%B5es_de_1848>. Acesso em: 29 de julho de 2019.

Instituto de Formação de Lídere (IFL). “A Lei”: a obra-prima de quase 200 anos que nunca foi tão atual como agora. Infomoney, 15 de abril de 2019 Disponível em: < https://www.infomoney.com.br/blogs/economia-e-politica/ifl-instituto-de-formacao-de-lideres/post/8175968/a-lei-a-obra-prima-de-quase-200-anos-que-nunca-foi-tao-atual-como-agora>. Acesso em: 29 de julho de 2019

Gabriel Lupovici Moritz é estudante de Economia no Insper e membro do Insper Liber

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Gabriel Lupovici Moritz
Insper Liber

Economics undergraduate at Insper, in São Paulo-Brazil