Resenha sobre a obra “A Ética da Liberdade”, de Murray N. Rothbard

Uma teoria ética positiva da liberdade pautada na lei natural

Yuri
Insper Liber

--

“A Ética da Liberdade”, de Murray Rothbard, é uma obra de filosofia política que discorre acerca dos fundamentos de uma organização social e jurídica que não fere o direito de propriedade dos indivíduos. O livro, como escrevera o filósofo e economista Hans-Hermann Hoppe, possui um estilo argumentativo axiomático-dedutivo: a partir dos princípios da lei natural, liberdade e racionalidade humana, Rothbard deduz o direito de propriedade humana e aplica-o como modo de resolução de conflitos interpessoais relativos ao conceito de propriedade, tais como criminalidade e legalidade de contratos. Nas três seções finais, o autor critica o caráter coercitivo do Estado, contesta algumas teorias liberais e libertárias e indica estratégias para que libertários, dentro ou fora do mercado político, ajam a fim de aumentar a liberdade individual.

Na primeira parte da obra, “Introdução: Lei Natural”, Rothbard explica que os alicerces de sua teoria estão centrados no conceito de lei natural[1]. Assim como as leis da física e da química — como o fato de que uma molécula formada por dois átomos de hidrogênio e um de oxigênio é, necessariamente, uma molécula de água -, o homem possui uma natureza que é universal e incontingente ao tempo e ao lugar. A natureza da espécie humana, explica Rothbard, não depende, necessariamente, de uma argumentação teológica para ser logicamente válida — ela é, na verdade, estabelecida por uma faculdade objetiva que pode ser empregada por quaisquer homens para descobrir verdades: a razão. Essa afirmação não pressupõe que a razão humana é impassível de erros, mas que ela é um método consistente, que exclui contradições, para se descobrir as leis naturais.

Partindo da ideia de características naturais, ele defende que há uma ética da lei natural que determina o “bem” de cada espécie como aquilo satisfaz o que é melhor para a natureza dessa espécie, incluindo a humana. Diferentemente do conceito de utilidade presente na ciência econômica, no qual as escalas de valores são subjetivas, o “bem” ético é objetivo por pautar-se na natureza dos homens e, por conseguinte, é a base para a determinação das regras do direito. Contudo, a finalidade da dissertação é explanar qual é o direito humano deduzido da lei natural e suas implicações (asserção positiva), e não se o exercício desse direito, em determinadas circunstâncias, é moral ou imoral (asserção normativa).

Na segunda parte do livro, “Uma Teoria da Liberdade”, Rothbard busca deduzir que o direito à propriedade é natural e derivado da razão humana utilizando um exemplo adaptado da história de Robinson Crusoé. Nesta abstração, Crusoé é um homem que, após um náufrago, ficou preso em uma ilha e adquiriu amnésia, esquecendo-se de sua vida e de suas habilidades adquiridas antes de sua chegada ao local.

Quando o personagem se vê na ilha pela primeira vez, ele se depara com alguns “fatos inescapáveis”: sua consciência, seu próprio corpo e o ambiente natural que o cerca. Ele também possui objetivos, como alimentação, hidratação e moradia, mas ele não possui, inicialmente, o conhecimento para atender a essas vontades. Independentemente se essas vontades são ou não essenciais para a sua sobrevivência, ele pode escolher quais (ou qual) delas almeja satisfazer e, após essa decisão, ele terá de descobrir como alcançá-las a partir dos recursos naturais disponíveis para uni-los à sua energia e trabalho e, enfim, contemplar seus desejos.

Neste processo, Crusoé exercita a sua razão — faculdade exclusivamente humana — e, com isso, aprende as leis naturais do mundo que o cerca (como a gravidade). Além disso, ele descobre fatos importantes acerca de seu próprio ser: que ele pode escolher suas ações e usar ou não sua razão no processo decisório — o que implica que ele tem liberdade; e o controle de seu corpo por sua mente — indicando, assim, sua natural autopropriedade.

“[…] o próprio fato de que o conhecimento necessário para a sobrevivência e o progresso do homem não é dado naturalmente a ele nem determinado por acontecimentos externos, o próprio fato de ele precisar usar sua mente para aprender este conhecimento, demonstra que, pela sua própria natureza, ele é livre para usar ou não usar esta razão — i.e., que ele possui livre arbítrio” (ROTHBARD, 2010, p. 88)

Com a constatação da existência da autopropriedade natural de cada indivíduo, Rothbard utiliza um argumento lockeano sobre como o homem apropria-se originalmente de bens e recursos disponíveis na natureza: utilizando seu próprio trabalho e poder de transformação desses recursos. Para o autor austríaco, o trabalho não precisa ser contínuo para a garantia do direito de propriedade ao indivíduo: basta que ele realize uma transformação nos recursos naturais uma única vez para que esses bens se tornem sua propriedade até a sua morte, até que renuncie ao direito de propriedade ou que efetue uma troca voluntária.

“O trabalho de seu corpo e de suas mãos […] são devidamente seus. Tudo o que, pois, ele retira do que o reino da Natureza proveio e deixou, misturou com seu trabalho e juntou a algo que lhe é próprio, torna-se, assim, sua propriedade.” (LOCKE, 1952, p. 24, tradução nossa)

Com a conceituação da ideia de propriedade, a compreensão de termos fundamentais utilizados pelo teórico austríaco se torna mais inteligível. Ele define liberdade como ausência de invasão das propriedades de um indivíduo (incluindo a sua autopropriedade); e afirma, parafraseando James A. Sadowsky, que uma pessoa “A” possui um direito quando é imoral que outrem, sozinho ou em conjunto, não permita, pelo uso de força física ou ameaça, que “A” realize uma determinada atividade. (ROTHBARD, 2010) Ressalta-se, assim, que Rothbard adota uma concepção jurídica de direito negativo[2], pois, para ele, qualquer direito positivo, tal como ao salário mínimo, por não ser naturalmente assegurado culmina na utilização de coerção para garanti-lo, desrespeitando a liberdade e, consequentemente, a propriedade individuais.

A apropriação original, porém, só explica como o direito à propriedade se constitui em situações em que um recurso estava previamente sem proprietário. Em uma organização social, na qual todos (ou ao menos a maioria) dos recursos são de propriedade de alguém, a maneira de adquirir um outro bem é mediante a uma troca voluntária entre os indivíduos, que consiste em uma mudança nos direitos de propriedade do recurso (essa troca não precisa necessariamente envolver dinheiro, como no caso de um presente). Para Rothbard, esse tipo de transação é a única que pode ser considerada legal, porque respeita o direito de propriedade e a liberdade naturais do homem. Entretanto, uma comutação só pode ocorrer entre propriedades alienáveis, o que exclui a possibilidade legal de um indivíduo se vender a outro (escravidão), pois isso implicaria na renúncia da vontade do próprio escravo em relação a si (autopropriedade), algo contrário à própria lei natural humana.

Desse modo, o autor declara que uma sociedade libertária respeitaria a lei natural do homem, em que

“nenhum título de propriedade é ‘distribuído’, onde, em resumo, nenhuma propriedade do homem sobre sua pessoa ou sobre bens tangíveis é molestada, violada ou prejudicada por qualquer outro homem.” (ROTHBARD, 2010, p. 100)

As definições e argumentações anteriores fundamentam a obra de Murray Rothbard que, do capítulo 9 ao capítulo 21, aplica-as de forma analítica em diferentes questões relativas ao direito de propriedade e interações interpessoais. Um dos tópicos mais relevantes abordados refere-se ao conceito de crime, definido como aquilo que incita a violência contra um homem ou sua propriedade. A regra fundamental de uma sociedade libertária, destarte, é que ninguém tem o direito de agredir uma propriedade legítima de outrem. Propriedades ilegítimas, obtidas com a utilização da coerção, podem ser, legalmente, readquiridas pelo proprietário com o uso de violência legítima e proporcional[3] contra o criminoso.

Uma propriedade legítima é facilmente identificável quando ela é adquirida pela apropriação original; surge, porém, uma crítica ordinária ao sistema capitalista: que os capitalistas obtiveram e obtém suas propriedades pela espoliação da classe operária e que, por conseguinte, os títulos de propriedade dos capitalistas são injustos (numa acepção legal). A fim de responder a essa crítica, Rothbard sistematiza sua teoria de propriedade e punição afirmando que, em uma sociedade libertária, a função da punição é a restituição da propriedade àquele que foi lesado. Dessa forma, se o indivíduo ou os indivíduos lesados não são claramente identificáveis, eles não possuem o direito de propriedade, a priori, de um bem ilegítimo de outrem. Isso não significa que aquele que detém uma propriedade ilegítima, caso ele seja o criminoso[4], deve permanecer neste estado — pelo contrário, ele perderá a posse do bem e sofrerá outras punições decorrentes de seu crime. Contudo, neste caso, quando o criminoso perde a posse da propriedade, ela torna-se momentaneamente sem dono e só tornará a ser propriedade de uma pessoa quando alguém realizar o primeiro trabalho ou transformação desse bem, de modo equivalente à apropriação original.

Assim, o autor austríaco rejeita a tese de que uma classe é expropriada por outra — para ele, os crimes de direito de propriedade referem-se a relações específicas entre indivíduos que precisam ser claramente identificáveis para que se use a violência legítima da restituição da propriedade. E mesmo se a propriedade tiver origens ilegítimas, mas o atual possuidor não for o criminoso, ele não pode ser criminalmente punido, pois ele não atentou contra o direito de propriedade de outrem. O quadro sinóptico abaixo sintetiza a teoria de punição rothbardiana.

Fonte: do autor (2019)

Devido à tese de que crime é aquilo que viola o direito de propriedade legítima de um indivíduo, Rothbard é categoricamente contrário à existência do Estado, porque ele afirma que a forma de obtenção de receita estatal ocorre a partir de coerção física (impostos); e que tanto o monopólio da força quanto o poder do Estado sobre o território nacional são alcançados de forma compulsória. Uma sociedade libertária, portanto, não é compatível com a existência de um Estado.

RECEPÇÃO DA OBRA E CONCLUSÃO

“A Ética da Liberdade” dividiu opiniões: houve discordâncias quanto às conclusões de Rothbard acerca de alguns dos casos analisados na obra, especialmente em sua defesa da legalidade do aborto. Contra-argumenta-se, por exemplo, que o aborto é uma violação do direito de autopropriedade do feto, que é um ser humano racional em potencial; além disso, afirma-se que a defesa do aborto de Rothbard contradiz o próprio princípio de proporcionalidade na punição de um crime.

Outras críticas concentram-se na oposição de Rothbard a outras teorias de liberdade (na parte IV da obra) e na própria metodologia adotada, já que muitos contestam os axiomas e a argumentação jusnaturalistas e, por conseguinte, as conclusões obtidas. Contudo, apesar das contestações, a obra, devido ao seu estilo axiomático-dedutivo que evita basear-se em conceitos utilitários ou relativistas, tornou-se célebre nos meios libertários como um dos mais relevantes livros de filosofia política da Escola Austríaca.

SOBRE O AUTOR

Murray Newton Rothbard (1926–1995) foi um economista, historiador e filósofo político estadunidense que pertencia à Escola Austríaca de Economia. Quando estudava na Universidade de Nova York, Rothbard conheceu Ludwig von Mises, passou a frequentar seus seminários e, no desenvolvimento de seus trabalhos de teoria econômica, adotando a praxeologia como método, Rothbard deu continuidade e ampliou o legado de Mises. Além disso, inspirado por autores escolásticos, como Tomás de Aquino, e individualistas, como Lysander Spooner, ele argumentava a favor da economia austríaca tendo como base conceitos éticos e de filosofia política. Hans-Hermann Hoppe, notável discípulo de Rothbard, escrevera que “A Ética da Liberdade” é a segunda maior obra do autor, atrás somente de “Homem, Economia e Estado”.

[1] De acordo com o livro Black’s Law Dictionary:

“JUS NATURALE. The natural law, or law of nature; law, or legal principles, supposed to be discoverable by the light of nature or abstract reasoning, or to be taught by nature to all nations and men alike; or law supposed to govern men and peoples in a state of nature, i. e., in advance of organized governments or enacted laws.” (BLACK, 1968, p. 998)

[2] Uma definição sucinta dos conceitos de direito positivo e direito negativo é:

“Negative rights are claims against others to refrain from certain kinds of actions against you. Positive rights are claims against others to perform some sort of positive action.” (ZWOLINSKI, 2019)

[3] Rothbard defende que a punição e autodefesa de um crime deve ser proporcional à perda de propriedade da vítima. Seria, nas palavras do autor, “grotesco” que um lojista atirasse em um criminoso porque ele roubou um chiclete, por exemplo. Caso esse evento ocorresse, o lojista estaria usando o seu direito de autodefesa desproporcionalmente, tornando-se, assim, um criminoso.

[4] É possível que o detentor de uma propriedade ilegítima não seja o criminoso, como alguém que compra um carro roubado sem ter ciência desse fato.

REFERÊNCIAS

ROTHBARD, M. N. A Ética da Liberdade: 2ª ed. São Paulo: Mises Brasil, 2010.

LOCKE, J. Second Treatise of Government: 1ª ed. Londres: Pearson, 1952.

BLACK, H. C. Black’s Law Dictionary: 4ª ed. St. Paul, West Publishing Co., 1968.

ZWOLINSKI, M. Libertarianism. Internet Encyclopedia of Philosophy, 2019. Disponível em: < https://www.iep.utm.edu/libertar/#SH2ci>. Acesso: 29/07/2019.

Yuri Freitas é estudante de Economia, escritor e membro do Insper Liber.

--

--