Resenha sobre o “Segundo Tratado do Governo Civil” de John Locke

A herança filosófica que fundamentou o individualismo metodológico.

Rodrigo P Padula
Insper Liber

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O livro “Dois Tratados do Governo Civil” de John Locke foi um importante marco histórico para o desenvolvimento do pensamento Liberal. Em um momento em que a visão ontológica medieval estava sendo amplamente questionada, Locke utilizou o racionalismo, o individualismo e o jusnaturalismo antropológico — presentes no início do iluminismo — para a defesa da liberdade dos cidadãos através de um parlamento independente e representativo. É também a obra de filosofia política de maior destaque do autor, que pessoalmente foi bastante multidisciplinar.

O livro foi publicado em 1689 — ano que sucede a Revolução Gloriosa — e rompe com os valores que justificavam a existência de uma monarquia absolutista. Com a instituição da Bill Of Rights logo após a revolução, garantiu-se a independência do Legislativo e a liberdade de expressão de seus membros. Este documento prevê a subordinação de algumas ações do monarca às decisões parlamentares, dentre elas, o aumento de forças militares permanentes. Dessa forma, a Bill of Rights pode ser considerada o rascunho de uma Constituição que seria mais tarde desenvolvida em plenitude no processo revolucionário Americano, como uma Lei tal qual estão submetidos todos: cidadãos, estado e o legislador.

Miguel Morgado, um dos tradutores da obra para o português sucintamente resume John Locke:

“John Locke é uma das figuras maiores da civilização ocidental moderna. Locke é o pensador da subjectividade, dos direitos naturais, da crítica das ideias inatas, da tolerância religiosa, da separação radical entre o Estado e a(s) igreja(s), da liberdade racional, do governo representativo baseado no consentimento popular, da separação dos poderes, da revolução contra a tirania, do direito de propriedade e do direito à acumulo de propriedade, do desenvolvimento econômico e tecnológico assente na capacidade humana na transformação do mundo. Ele é o filósofo da epistemologia, da política, da religião, da educação; o economista, o constitucionalista, o exegeta, o assessor político, o professor universitário e o médico.”

Suas principais influências são Aristóteles, São Tomás de Aquino, Francis Bacon, Jean Bodin, Hugo Grócio, Thomas Hobbes, René Descartes, Robert Filmer, Richard Hooker, John Milton e Algernon Sidney.

Alguns destes serviram de fonte de fundamentação de sua filosofia e de sua filosofia política como Aquino, Aristóteles, Hooker; outros, alvos de críticas, como Hobbes, Robert Filmer e Descartes.

Suas obras principais são “Essay Concerning Human Understanding” (1689), “Two Treatises of Civil Government” (1689), “Epistola de Tolerantia” (1689), “Some Thoughts Concerning Education” (1693) e “The Reasonableness Of Christianity” (1695).

As três obras publicadas no ano de 1689 são de aprofundada importância, já que resumem boa parte do pensamento político e filosófico do autor: a fundamentação do direito natural no indivíduo, sendo assim preexistente e constituinte da sociedade e do estado.

A obra possui duas partes: A primeira busca a refutação e rejeição completa do inatismo (política) e o patriarcalismo, usados para postular um direito divino ao monarca. Aqui Locke dialoga diretamente com Robert Filmer que é lembrado historicamente justamente por sua refutação. O Segundo Tratado, objeto principal da resenha em questão, nas palavras do autor “…é um ensaio sobre a verdadeira origem, extensão e fim do governo civil”.

Norberto Bobbio, resumindo os aspectos mais relevantes do pensamento lockiano, afirma: “Através dos princípios de um direito natural preexistente ao Estado, de um Estado baseado no consenso, de subordinação do poder executivo ao poder legislativo, de um poder limitado, de direito de resistência, Locke expôs as diretrizes fundamentais do Estado liberal.” (Direito e Estado no pensamento de Kant, UNB, 1984. p. 41.)

Locke utiliza, portanto, um trinômio para seu jusnaturalismo: estado natural/contrato social/estado civil e é importante ressaltar que o autor não é completamente inovador ou construtivista, como mais tarde os racionalistas franceses se tornariam, em especial Rousseau.

Ele busca na história e na prudência as ferramentas que constituem seu conceitualismo (ideia que reconhece a existência de conceitos universais como mais do que meras abstrações e lhes atribui uma existência real no interior da mente humana) e empirismo (doutrina que postula que o conhecimento humano deriva direta ou indiretamente — excluindo a matemática e a lógica — da experiência).

Sua posição, e a deste espírito liberal inglês, é elaborada sofisticadamente muitos anos depois por Friedrich Hayek — notável pensador e economista do século XX — em seu livro “Os erros fatais do Socialismo”. Em sua obra, Hayek destaca o suposto “erro”, dos socialistas e de seus precursores, o racionalismo construtivista e a arrogância ligada a esse movimento. Defende então que existe algo que está entre o instinto e a razão, que move a sociedade:

“Aprender a se comportar é antes fonte que resultado da percepção, da razão e do discernimento. O homem não nasce sábio, racional e bom, mas tem de aprender a tornar-se assim. Não foi o nosso intelecto que criou a nossa moralidade; antes, as interações humanas regidas pela nossa moralidade tornaram possível o desenvolvimento da razão e das capacidades a ela associadas. O homem tornou-se inteligente porque havia tradição — aquilo que está entre o instinto e a razão — para que ele aprendesse. Essa tradição, por sua vez não se originou da capacidade de interpretar fator observados racionalmente, mas de hábitos de reação”

Entretanto, não é qualquer tradição que cumpre as exigências da supremacia do indivíduo sobre estado e a sociedade. O Common Law Inglês, o qual Locke é herdeiro, é uma destas tradições, pois possuí documentos históricos — como a Magna Charta, a Petition of Rights, o Habeas Corpus Act e a Bill of Rights — que representam a evolução da ideia de individualidade no direito inglês; a garantia de propriedade e de um processo jurídico justo, limitação do estado e subordinação do monarca ao legislativo. Estes documentos constituíam à época e até hoje a lei dos comuns, dos súditos, dos indivíduos, e serviram de fonte direta para o desenvolvimento do liberalismo anglo-saxão.

A palavra racional em Locke não é empregada num sentido de racionalismo racionalista, mas sim, um modo de agir de acordo com uma tradição que garante a prosperidade e boa convivência, desta maneira, para o autor, a liberdade está condicionada à razão dos indivíduos em agir razoavelmente, e Deus concedeu a estes esta disposição, que fazem uso para formalizar a sociedade política.

É comum ao analisar “O Segundo Tratado” se reportar a concepção hobbesiana de estado de natureza e contrato social, já que é o precursor de Locke nestes temas. Para Hobbes o estado de natureza é marcado por guerra constante, “homo homini lupus” (o homem é o lobo do homem) e “bellum ominium contra omnes” (a guerra de todos contra todos), sendo invariável que o contrato social exija que os homens abdiquem de todos os seus direitos, os centralizando no Estado — que é o mais totalitário dos Estados, pois diz respeito não apenas ao direitos políticos, mas também aos de propriedade e de liberdade religiosa — criando um monstro mitológico, um Leviathan, único capaz de prover a ordem que os homens são incapazes de construir.

Neste sentido, Locke é o primeiro anti-Hobbes ao diferenciar o estado de natureza e o estado de guerra, reconhecendo que, mesmo sem um poder central homens podem viver em consonância e paz, dada a existência milenar do comércio. Também rejeita que exista a necessidade, e é absolutamente contrário, à superação do indivíduo no processo do contrato, na verdade, condiciona a existência de um contrato e ordenamento da sociedade civil à observação de direitos naturais ao homem, anteriores ao estado e anteriores a sociedade, que são a Vida, Liberdade e Propriedade; outro requisito de validade deste contrato é, em certa medida, voluntarismo.

Sobre o processo de passagem do estado de natureza para o contrato, Luís Cabral de Moncada faz a seguinte análise:

“Compreender o poder político é, portanto também deriva-lo da sua origem e reconstituir pela análise abstracta a formação da sociedade, a partir do estado natural do homem, antes deste poder existir. Este estado natural do homem não é todavia para ele [Locke], como aliás era para Hobbes, um estado necessariamente de guerra…mas um estado de perfeita liberdade: a liberdade de os homens dirigirem as suas acções e disporem dos seus bens como entenderem observando simplesmente os limites da lei natural que lhes preceitua, acima de tudo, a sua conservação e a dos outros. Tal estado não exclui certos sentimentos de benevolência entre eles… neste estado todos são livres e iguais, a nenhum pertencendo qualquer poder sobre os demais. Mas este mesmo estado tem também consigo muitos inconvenientes, derivados das paixões humanas, e o remédio para combater é justamente o Estado ou ‘O Governo Civil’”

Se o estado de natureza consegue prover a livre associação e relativa paz, qual seria a necessidade de um contrato para abandonar este estado? O estado de natureza também carrega consigo além da plena disposição das liberdades e dos bens, a plena igualdade com poder de jurisdição recíprocos e assim Locke diz:

“Embora se trate de um estado de liberdade não é, contudo, um estado de licenciosidade”; “Cada um está obrigado a preservar-se e não abandonar voluntariamente seu posto”; “…todos os homens têm o direito de punir os transgressores da lei natural, tanto quanto for necessário para prevenir sua violação”; “… assim no estado de natureza um homem adquire poder sobre o outro, mas não se trata de um poder absoluto ou arbitrário para lidar com um criminoso, quando está à sua mercê, segundo o ardor das paixões ou extravagância ilimitada da sua vontade.”

Neste estado então é previsto o poder individual de matar um homicida e punir quem transgrida a propriedade de outrem: “…cada transgressão pode ser punida até ao grau, e com a severidade, que for suficiente para tornar o crime um mau negócio para o infrator, para lhe dar causa de arrependimento e aterrorizar os outros que tencionem agir de forma semelhante”

Em primeiro lugar diferencia o poder de um magistrado sobre o súdito, o poder de um pai sobre seu filho e o poder de um senhor sobre seu escravo, e em segundo, Locke apresenta a inconveniência deste estado: se todos são iguais para o enforcement da lei natural, há a possibilidade iminente de sentenciar em causa própria, sem a observação justa.

Note, Locke apresenta que a sentença do magistrado e do indivíduo são distantes, já que o magistrado não tem interesse pessoal no desfecho da pena, e, acima disso, que justiça feita com pessoalidade tende a não ser justa. A saída deste estado de injustiça é via um juiz comum a todos, obedecendo regras comuns, sem as quais, a tentativa do arbítrio da paz seria dificultada, levando os envolvidos em conflitos, a um estado eterno de guerra.

A propriedade para Locke inicia-se no momento do uso de trabalho para transformar a propriedade comum a todos, disponível na natureza, em propriedade específica, para seu uso, fora de sua existência natural. Além disso, entende que toda a natureza foi concedida a todos por Deus e, logo, não seria razoável a posse de mais propriedade que se pudesse trabalhar e condena sua destruição (uso indevido). Avançando na obra, defende o acúmulo de propriedade, já que esta passa a ser representada em forma de moeda, um bem não perecível e acumulável.

“O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, podemos dizer, são propriamente dele”; “Deus nada criou para o homem desperdiçar e destruir, ” porém “Os homens tornaram possível esta repartição desigual das posses privadas fora das fronteiras da sociedade, e sem que fosse preciso um pacto; bastou que atribuíssem valor ao ouro e à prata, e que concordassem tacitamente no uso do dinheiro”

O estado civil é então sintetizado sob livre consentimento dos indivíduos para o estabelecimento da sociedade, a formação do governo, a proteção dos direitos de propriedade pelo governo, o controle do executivo pelo legislativo e o controle do governo pela sociedade.

O estado lockeano deve existir, em última análise, para a proteção da propriedade privada (que muitas vezes condensa a ideia de autopropriedade e vida), mas, em caso de transgressão arbitrária destes princípios fundamentais — a sociedade civil retorna ao estado de guerra, como Leonel Itaussu resume, sobre o direito de resistência ao estado previsto por Locke:

“O estado de guerra imposto ao povo pelo governo configura a dissolução do estado civil e o retorno ao estado de natureza, onde a inexistência de um árbitro comum faz de Deus o único juiz, expressão utilizada por Locke para indicar que, esgotadas todas as alternativas, o impasse só pode ser decidido pela força”

Para o autor, a resistência política e física a um governo tirânico não é apenas prevista, mas também um dever moral dos cidadãos, que nunca devem abandonar seus postos de defesa de sua vida, liberdade e propriedade.

Esta é uma posição que garante o título de representante do extremismo Whig, no parlamento inglês.

Impacto

Foi observada a importância histórica e política da obra, mas sua significância transborda estes dois âmbitos, quando notamos que foi a primeira formulação de um individualismo metodológico que permeabilizaria no liberalismo anglo-saxão a sua intransigente defesa do indivíduo.

Uma grande expressão desta herança é a declaração de independência dos Estados Unidos da América, resultado de um evento conhecido como Revolução Americana. Esse movimento foi americano, mas não foi revolucionário nas ideias fundamentais das normas que criaram, antes, foi a evolução das ideias apresentadas no Segundo Tratado do Governo Civil. Canotilho comenta:

“Através da Revolução, os americanos pretenderam reafirmar os Rights na tradição britânica medieval e da Glorious Revolution” “…, entretanto, no corpus da constituição britânica se tinha alojado um tirano — o parlamento soberano que impõe impostos sem representação (taxation without representation).”

Os americanos, portanto, se valeram do trabalho de Locke e da tradição britânica para barrar a omnipotência do legislador, buscando uma lei superior que limitasse o poder do legislador, com princípios base que garantia os cidadãos, que foi formulada nas primeiras palavras da constituição, We the People — o método americano de liberdade.

Depois da obra de Locke, o individualismo passou a ser mais visto como um princípio de ação ética e ético-política, além de conceder a tônica que diferencia o liberalismo francês do inglês.

A Título de exemplo, Rousseau, através da volonté générale como fundamentação do contrato social, institui que ser livre equivale a obedecer a vontade geral da sociedade, que é consequentemente a vontade soberana do Estado. Direito e lei passam a ser o que esta vontade quer e, formalmente quando, e porque quer, pois, a fonte de todo o direito passa a ser esta vontade.

Ao mesmo tempo que parte do indivíduo, colocando-o como o princípio de fundamentação do contrato, Rousseau o massifica e o esmaga com a caneta do legislador, numa espécie de coletivismo imperativista; um pensamento que se torna totalitário e anti-liberal.

CONCLUSÃO

Locke é o ponto de chegada, pois sintetiza uma evolução histórica no pensamento jurídico inglês, e de partida, pois utiliza estas tradições na formalização de um método liberal-individualista, ainda que muito inicial.

Esta obra é o espírito do seu pensamento político em completo, a vida, a garantia da liberdade, a garantia do acúmulo de propriedade, a independência religiosa, a legítima defesa, a revolta à tirania e a limitação do poder.

Locke não apenas faz uma separação do indivíduo da sociedade e do Estado, mas o coloca como a causa geradora de ambos, não o efeito. O indivíduo passa a ser seu próprio garantidor de liberdade e a ferramenta desse processo.

  • Rodrigo Padula é estudante de Comércio Internacional, escritor e membro do Insper Liber.

Referências

MARQUES, M. R. (2007). Introdução ao Direito: Volume 1. Almedina.

LOCKE, John. Dois Tratados do Governo Civil, tradução de Miguel Morgado, Edições 70/Almedina Editora, 2006.

CABRAL DE MONCADA, L. U. Í. S. Filosofia do Direito e do Estado, vol. 1. Parte Histórica, Coimbra Editora, 2ª Edição, Coimbra, 1955.

CANOTILHO, J., & Gomes, D. C. (1998). Teoria da Constituição, 7ª edição. Coimbra-Portugal, Livraria Almedina.

HAYEK, Friedrich August von, 1899–1992 “Os erros fatais do socialismo”/ F.A Hayek; tradução Eduardo Levy — 1.ed — Barueri: Faro Editorial, 2017

MELLO, Leonel Itaussu Almeida. “John Locke e o individualismo liberal.” Os clássicos da política 1.13 (1993): 79–110.

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Rodrigo P Padula
Insper Liber

Brazilian Economics undergraduate. Avid politics student. Poetry enthusiast