Uma perspectiva ética sobre a Reforma da Previdência

Rafael Rocha
Insper Liber
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8 min readMar 26, 2019

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R.R. Azevedo

No recente debate sobre a Reforma da Previdência é muito comum observarmos um foco quase exclusivo na questão fiscal e nos seus impactos distributivos. A importância desses fatores é inegável considerando a enorme relevância da previdência sobre o gasto fiscal dos governos.[1] Entretanto, ao definirmos a estrutura de um sistema tão importante quanto a previdência não podemos abstrair de importantes premissas éticas inerentes a cada indivíduo, como justiça, igualdade e liberdade. Ao negligenciar tais fatores podemos tornar a questão demasiadamente superficial, nos desconectando da sociedade e ampliando, portanto, sua rejeição. Com intuito de motivar e aprofundar tal questão, esse artigo aborda alguns dos principais prismas éticos.

O primeiro sistema de aposentadoria público do Estado moderno foi o sistema de repartição, criado no final do século XIX pelo chanceler alemão Otto von Bismarck. Nesse sistema, os recursos dos mais jovens são utilizados diretamente para complementar a renda dos aposentados.

A origem do sistema de repartição remonta um conjunto de mudanças, sobretudo demográficas, iniciadas ainda no final do século XIX com o aumento na expectativa de vida da população. A título de exemplo, em 1890 a expectativa de vida do Reino Unido finalmente chegou aos 45 anos[2]. Nesse contexto, as pessoas precisavam aumentar a poupança para financiar um futuro cada vez mais distante.

Além do fator demográfico, a origem do sistema de repartição se insere em um contexto caracterizado pelo surgimento de novos valores éticos embasados pelos filósofos contratualistas do século XVIII, como Hobbes e Rousseau. Nesse contexto surge a ideia do Estado moderno como provedor do Direito Positivo através de um contrato social.

O Direito Positivo consistiria em um conjunto de benefícios que deveriam ser providos pelo Estado. Assim, estendendo a visão de Hobbes em sua principal obra, Leviatã, seria papel do Estado prover à população segurança e ordem social, o que sob uma perspectiva rousseauniana de igualdade e de proteção aos menos favorecidos incluiria a manutenção de um nível mínimo de renda durante a aposentadoria, motivando a criação desse sistema por Bismark.

Essa visão de justiça redistributiva encontrou um certo eco em Aristóteles. Contudo, esse filósofo considerava ainda o mérito de cada indivíduo com base em seu papel na sociedade, um conceito de ordem natural que se enfraqueceu no ocidente, mas ainda presente no pensamento liberal.

Acentuada pela pressão marxista — que colocou o valor ético da igualdade e proteção social em outro patamar — o modelo por repartição foi estendido para vários países, sendo instituído no Brasil na constituição de 1934 por Getúlio Vargas. Esse modelo foi hegemônico durante boa parte do século XX. Com uma população ainda majoritariamente jovem era possível financiar uma generosa aposentaria aos mais velhos com um baixo custo aos mais jovens, mantendo muitas vezes, um superávit orçamentário para o Estado.

Um século após a implantação da previdência pública, ela parecia ter se tornado um Direito Positivo consolidado, especialmente no consciente coletivo da população. A situação demográfica era tão favorável que passava a (errônea) impressão de que os mais jovens financiavam a própria aposentadoria.

Todavia, os ventos demográficos mudaram. A queda da taxa de natalidade e mortalidade em diversos países fez com que no final do século XX houvessem cada vez menos jovens para sustentar uma camada crescente de idosos. Com isso, o sistema se tornou caro e incapaz de honrar suas benesses. Foi a partir dessa traumática necessidade de ruptura que nasceu o debate sobre a reforma da previdência.

Primeiramente, é importante ressaltar que defender a manutenção do sistema por repartição sem nenhuma reforma não é uma questão ética, mas sim demagogia e ignorância. A total falência do Estado, resultado dessa escolha, tem diversos impactos econômicos que afetam negativamente a vida de todos, independentemente do prisma ético. Portanto, a discussão deveria ser focado nos prós e contras das propostas emergentes. Algumas das principais propostas são apresentadas a seguir. Considerando as profundas implicações econômicas de cada sistema, a análise se restringe ao âmbito ético de cada proposta.

A primeira opção seria a chamada reforma paramétrica, que consiste no aumento da contribuição dos mais novos, redução dos benefícios previdenciários, aumento na idade mínima de aposentadoria e um nivelando das regras dos diversos grupos dentro do sistema. Além de ser meramente paliativa — dado a tendência de continuidade do envelhecimento populacional — ela causa uma grande insatisfação.

O problema é que após quase um século em uso, as pessoas se acostumaram com os benefícios previdenciários, que foram vistos como uma conquista coletiva permanente. No momento em que o Direito Positivo previdenciário entra no imaginário popular como uma conquista, qualquer mudança passa a ser vista como uma injustiça ou até um retrocesso.

Além disso, a visão rousseauniana de igualdade e de proteção aos menos favorecidos deixaria de estar presente após essa reforma, pois tanto os mais velhos (que teriam uma proteção cada vez menor) quanto os mais novos (que pagariam uma contribuição maior) ficariam sobrecarregados.

A visão de injustiça da reforma só consegue ser parcialmente atenuada pelo nivelamento das regras dentro do sistema, que impactaria principalmente a generosa previdência dos militares, dos agricultores e dos servidores públicos. Entretanto, uma parcela significativa da sociedade possui uma visão favorável a alguns grupos especiais, como militares, policiais, médicos e professores. Há uma crença de que profissionais em ocupações ditas virtuosas (um proto-homem magnâmio aristotélico) merecem mais benefícios, o que aumentaria a sensação de injustiça dessa reforma.

Portanto, uma reforma paramétrica não parece uma boa opção: ela é vista em geral como injusta, é ineficiente do ponto de vista econômico (pois distorce a acumulação de poupança e a oferta de trabalho) e sequer é capaz de resolver o problema por completo. Não é por menos que a reforma proposta pelo ex-presidente Temer recebeu tantas críticas.

Uma segunda opção seria a eliminação do sistema de pensão, pagando todos os idosos e deixando as próximas gerações se autofinanciarem através da Previdência privada ou através de ajuda familiar. Esta é uma reforma cara pois o Governo teria que pagar todas as obrigações previdenciárias por um tempo sem receber o financiamento dos mais jovens. Porém, ela resolveria o problema orçamentário do Governo por completo no médio prazo.

Contudo, para os contratualistas, especialmente de uma linha mais rousseauniana, essa reforma tem implicações negativas pois deixa as pessoas de baixa renda expostas a uma velhice de baixa qualidade. Por outro lado, essa reforma tende a ter um forte suporte dos indivíduos mais liberais que dão um maior peso aos Direito Naturais.

Os Direitos Naturais, tais como definidos pelos Gregos antigos, São Tomás de Aquino entre muitos outros, são um conjunto de normas que — pela razão, natureza ou até mesmo uma divindade — estabelecem o que é justo, de forma universal. Dessa forma, ao contrário dos Direitos Positivos, os Direitos Naturais não sofreriam alterações ao longo da história e do desenvolvimento da sociedade, independentemente de legislações ou do Estado.

Partindo dessa visão, as pessoas teriam o direito de buscar a felicidade, de preservar a própria vida ou, numa perspectiva ética rothbardiana, teriam o direito de propriedade respeitado (não podendo assim serem taxadas). Logo, o único papel do Estado na questão da previdência seria não intervir e deixar os indivíduos encontrarem a melhor forma para se auto-segurarem, ou seja, não haveria espaço para nenhuma forma de previdência pública.

Entretanto, a despeito de algum suporte, esse modelo não partilha de ampla adesão. Uma vasta literatura envolvendo psicologia e poupança tem demonstrado que os consumidores tem limitada capacidade de acumular recursos através de poupança voluntária devido a hábitos e outras questões comportamentais, como miopia perante riscos orçamentários futuros.[3]

Dessa forma, devido ao alto custo da reforma, o baixo peso dado a questões de igualdade e as evidências contrárias à capacidade dos indivíduos planejarem sua poupança para uma expectativa de vida futura mais longa, essa reforma tende a ter pouco apoio.

Finalmente, temos a opção pela implementação do regime de capitalização. Nesse sistema, os indivíduos são forçados a poupar, assim como no regime de repartição. Todavia os recursos são destinados a uma conta individual e não transferidos diretamente aos aposentados. Por um lado, essa reforma, assim como a eliminação do sistema, tem um alto custo de transição, porém soluciona da mesma forma o problema orçamentário no médio prazo. Além disso, esse regime é eficiente do ponto de vista econômico e pode contornar os problemas comportamentais relacionados a poupança.

Do ponto de vista ético, para os liberais com valores mais próximos aos Direitos Naturais, o regime de capitalização é preferível ao sistema de repartição (mas inferior a ausência de um sistema de pensão). Isso pois, embora compulsório, esse regime implica o retorno dos recursos diretamente aos consumidores, respeitando em certo sentido seus direitos de propriedade.

Por outro lado, esse sistema desagrada indivíduos com preferências a um sistema que promova mais igualdade. Porém, há ainda uma opção de incluir na reforma uma renda universal mínima, o que poderia atenuar parte das críticas sobre o sistema.

Concluindo, a reforma da previdência é um tema complexo pois não apresenta nenhum regime alternativo perfeito. Por conta do alto impacto orçamentário uma importante análise ética acaba sendo negligenciada. Como o atual regime promoveu — por quase um século — um alto benefício aos idosos a um baixo custo aos mais jovens, ele foi visto por muitos como um Direito Positivo consolidado, tornando qualquer alteração bastante impopular e, portanto, difícil de ser implementada.

Comparando os regimes sob uma perspectiva ética, podemos perceber que indivíduos com maior apreço à liberdade e menor preocupação com fins igualitários tendem a preferir a ausência de regime de previdência pública, enquanto indivíduos com valorações opostas (i.e., mais igualitários e menos preocupados com liberdade) tendem a preferir o antigo e insustentável sistema de repartição. Dentre as opções apresentadas, o regime de capitalização, associado a um mecanismo de renda universal mínima, parece melhor conciliar os diversos valores éticos como igualdade, liberdade e justiça.

Rafael Rocha é doutorando em Economia pelo Insper e membro do Insper Liber.

Referências

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Leonel Vallandro e Gerd Bornheim da versão inglesa de W. D. Ross In: Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1973, v.4.

HOBBES, Thomas. Leviathan sive de Matéria, Forma, et Potestate Civitatis Ecclesiasticae et Civilis. Opera Latina, London, Ed. W. Molesworth, Vol. III, 1966b.

MURRAY, N., Rothbard, A Ética da Liberdade.

PLATÃO. República. Rio de Janeiro: Editora Best Seller, 2002. Tradução de Eurico Corvisieri.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Coleção A Obra Prima de Cada Autor. São Paulo — SP: Editora Martin Claret, 2003.

THALER, R. H. “Psychology and savings policies”. The American Economic Review, 84(2):186–192, 1994.

TOMÁS DE AQUINO, Santo. Summa contra os Gentiles.

[1] A título de exemplo, segundo a OCDE, o gasto total médio dos seus membros foi de 7,5% do PIB em 2015. Entretanto, em alguns países como Itália e Grécia os gastos chegam a mais de 16% do PIB.

[2] http://acervo.publico.pt/multimedia/infografia/a-vida-desde-1820

[3] Por exemplo, Thaler (1994).

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