O Carnaval no Rio de Janeiro

Fernando Saol
Instandarte
Published in
8 min readMay 16, 2019
O carnaval de rua do Rio de Janeiro é conhecido no mundo inteiro

No século XVIII, surgem os primeiros registros da comemoração da festa no Rio de Janeiro, era o Entrudo. Trazido pelos portugueses imigrantes de Açores, Cabo Verde e Madeira, o Entrudo chegou a ser proibido por diversas vezes, pois se tratava de uma manifestação violenta. O início da comemoração da festa data de 1723 e sua decadência se deu por volta de 1885. Os negros participavam das comemorações não como foliões, mas como mão-de-obra. Eram eles que preparavam as “armas” da batalha campal carnavalesca, os limões-de-cheiro, que eram limões recheados com os mais diversos líquidos, como vinho, água com pó-de-mico e até urina.

Debret retratou o Entrudo

Trazido ao Brasil pelos primeiros colonizadores portugueses, o Entrudo acabaria se tornando o grande festejo dos dias de Carnaval e uma verdadeira mania nacional. No início do Século XIX, entretanto, a nova sociedade brasileira começaria a buscar uma festa que substituísse os excessos ‘entrudísticos’, que passavam a ser considerados grosseiros e indignos de um país independente.

( FERREIRA, Felipe. O Livro de ouro do Carnaval brasileiro. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004. p.73)

Paralelamente ao Entrudo, os Zé Pereiras começavam a embalar os foliões cariocas no Carnaval. Sem a violência do festejo concorrente, esses grupos de tambores eram a alternativa pacífica ao Entrudo. Como o Entrudo, também era de origem portuguesa. A estreia do Zé Pereira aconteceu no carnaval de 1846:

O português José Nogueira de Azevedo Paredes (…) saudoso das romarias e festanças lusas, no sábado de carnaval daquele ano, reunido com alguns patrícios e depois de generosos copos de vinho e aguardente, alugou algumas zabumbas e tambores e saíram fazendo algazarra pelas ruas vizinhas. O sucesso foi tamanho que, no ano seguinte, pequenos grupos munidos de tambores e latas saíram às ruas em imitação ao Zé Pereira

( COSTA, Haroldo. 100 anos do Carnaval do Rio de Janeiro. São Paulo, Irmãos Vitale, 2001.p.14)

Zé Pereira

Porém, os Zé Pereiras não eram organizados. Mais uma demonstração da espontaneidade do Carnaval carioca que nascia, era a formação desses grupos carnavalescos. “Qualquer grupo de foliões reunidos e batendo tambores era chamado de Zé Pereira”, conta Felipe Ferreira.

(FERREIRA, Felipe. O Livro de ouro do Carnaval brasileiro. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004. p.211)

Com a entrada do ritmo no Carnaval, por meio dos bumbos dos Zé Pereiras, foi possível a composição da primeira música. Já em 1901, Chiquinha Gonzaga compôs a primeira música carnavalesca, em andamento de marcha, que rapidamente se tornou o grande sucesso do carnaval e cantada até hoje:

“Ô abre — alas!
Que eu quero passar
Eu sou da Lira
Não posso negar!

Ô abre — alas!
Que eu quero passar
Rosa de Ouro
É quem vai ganhar!”

Nessa época o Carnaval já ganhava contornos parecidos como os de hoje. Com a musicalidade, os foliões começavam a se reunir para brincar juntos os carnavais, ao som das marchinhas. As Grandes Sociedades surgiam como a principal atração do carnaval de rua, recheadas de rivalidade. Duas grandes sociedades se destacavam: os Fenianos e os Democráticos. Desfilavam pela Rua do Ouvidor com seus carros alegóricos e faziam a alegria do público presente, com temas recheados de duplo sentido. Porém nem toda Sociedade seguia essa linha. Os Tenentes do Diabo se notabilizaram pelos temas humanitários, sociais e anti-escravagistas, no período da Escravidão, com ações fora do período carnavalesco, demonstrando que o Carnaval poderia ser utilizado como um importante instrumento de mobilização social, sem perder a característica festiva da festa:

Os Tenentes do Diabo, por exemplo, em 1864, deixaram de fazer seu carnaval de rua para aplicar dinheiro na compra da liberdade de 12 escravos. Quintino Bocaiúva, José do Patrocínio, João Clapp e Ferreira de Araújo faziam parte do quadro social dos Tenentes e lá, juntamente com outros abolicionistas realizavam reuniões contra a famigerada escravidão. (…) os libertos participavam dos préstitos, numa demonstração do espírito democrático dos clubes.”

( COSTA, Haroldo. 100 anos do Carnaval do Rio de Janeiro. São Paulo, Irmãos Vitale, 2001.p.22)

Exemplo de Carro alegórico das Grandes Sociedades, como os Tenentes do Diabo

A Abolição foi tema do Carnaval dos Fenianos em 1889, que desfilaram com um tema sobre a Lei Áurea. Os Fenianos, Os Democráticos e Os Tenentes do Diabo dominaram a cena carnavalesca carioca por mais de 130 anos, desfilando na terça-feira gorda, dia das Grandes Sociedades. Curiosamente, possuíam seus próprios veículos de comunicação, os pufes. O Caverna, dos Tenentes, O Fantasma, dos Democráticos e O Faísca, dos Fenianos, eram importantes publicações que tinham o papel de transmitir os anseios populares. Eram distribuídos sempre no período pré-carnavalesco, sendo o Carnaval de 1910, a distribuição dos últimos exemplares.

Junto com as Grandes Sociedades, os Cordões ganhavam força no Carnaval carioca. Em 1902, cerca de 200 Cordões eram licenciados. O crescimento dessa manifestação popular em muito se devia aos periódicos Jornal do Brasil e Gazeta de Notícias, que premiavam os melhores grupos, que diferente das Sociedades, não tinham carros alegóricos e eram formados por foliões desorganizados. O Cordão do Bola Preta, fundado em 31 de dezembro de 1918, é um dos únicos que permanecem até hoje.

O Cordão do Bola Preta desfila arrastando multidões até hoje

A designação Bola Preta nasceu por causa de uma garota tão infernal que aparecia brincando no Largo da Glória e desaparecia sem que ninguém soubesse como e que deixou Kveirinha (fundador do Cordão) louco que a procurava por todos os lados dizendo: é um pierrô com bola preta

( COSTA, Haroldo. 100 anos do Carnaval do Rio de Janeiro. São Paulo, Irmãos Vitale, 2001. p.34)

Tradicionalmente, o Bola Preta abre o Carnaval carioca, no sábado de Zé Pereira. Tinham essa denominação porque os foliões brincavam em cordões que delimitavam a área, separando-os do público que assistia. Era uma maneira mais despojada de se brincar carnaval. Se os Cordões eram os precursores dos Blocos, as Escolas de Samba são crias dos Ranchos. Os Ranchos, que também surgiram nessa época, eram mais organizados que os Cordões, mais populares que as Grandes Sociedades, e com exacerbado lirismo, eram conhecidos como Teatros líricos ambulantes. Rapidamente, os Ranchos caíram nas graças da população carioca e os jornais, seus maiores aliados, como podemos ver nesse trecho aqui:

A imprensa sempre prestigiou os Ranchos, como de resto todas as agremiações carnavalescas. Gazeta de Notícias, O Paíz, A Pátria, A Notícia, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, eram apenas alguns deles. A este último se deve a instituição do Dia dos Ranchos, na segunda-feira de Carnaval. (…) O desfile era realizado em frente À sede do jornal na Avenida Rio Branco, e o povo se acotovelava nas calçadas para aplaudir e incentivar

(COSTA, Haroldo. 100 anos do Carnaval do Rio de Janeiro. São Paulo, Irmãos Vitale, 2001. p.72)

O Ameno Resedá foi o Rancho mais importante, porém só existiu durante 34 anos, entre 1907 e 1941. O Jornal do Brasil estampou em sua capa, no dia 15 de fevereiro de 1941 a seguinte manchete: “Desaparece o Ameno Resedá!”. O Carnaval carioca ainda teve como manifestação os grandes bailes, onde se consagravam as Rainhas do Carnaval, e os concursos de fantasia, que tinha como figuras principais Clóvis Bornay, Isabel Valença e Evandro de Castro e Lima. Enfim, chegam os Blocos. Haroldo Costa define os Blocos como “a explosão mais espontânea do carnaval”. O Bloco, como o próprio nome diz, são reuniões familiares e afetivas feitas para brincar o Carnaval. É muito comum o surgimento de Blocos a partir da reunião de vizinhos de um bairro ou de uma família inteira. O único Bloco que fugia à regra era o “Bloco do Eu Sozinho”, de Júlio Silva:

Nos Carnavais de antigamente ele costumava entrar na redação do jornal no Largo da Carioca, envergando fantasia singela metade fraque, metade metim, um chapéu de tirolês, calça listrada e uma tabuleta indicando que o seu Bloco era o Bloco do Eu Sozinho. Não entrava em Cordões, não freqüentava bailes (…) Com seu pavilhão bem alto, desfilava solitariamente a sua repulsa à multidão, cantando a melodia que era sempre a mesma, há mais de trinta carnavais

(COSTA, Haroldo. 100 anos do Carnaval do Rio de Janeiro. São Paulo, Irmãos Vitale, 2001. p.175)

Os blocos até hoje abrigam a manifestação crítica irreverente e espontânea dos foliões

Além deste Bloco singular, existiam outros tipos, como os de sujos, onde os foliões não seguem uma uniformidade de fantasias, os de embalo, em que milhares de pessoas vestem a mesma fantasia (Cacique de Ramos e Bafo da Onça, por exemplo) e os de enredo, que são embriões de Escolas de Samba. Até hoje os Blocos continuam com força no Carnaval do Rio de Janeiro, “sendo um fator de aglutinação no Carnaval carioca, desmistificando os derrotistas e pessimistas de plantão, que insistem em dizer que o Carnaval de rua morreu.” Após tantas denominações populares, Felipe Ferreira explica assim, a cadeia hierárquica do Carnaval carioca, com uma brilhante explicação sobre os Blocos:

O termo ‘bloco’ seria, por muito tempo, sinônimo de grupo, cordão, clube ou rancho. Somente nas primeiras décadas do século XX, com a organização do que se começava a se estabelecer na folia brasileira, é que se estruturava uma espécie de hierarquia para os grupos carnavalescos na qual os chamados blocos passavam a ser definidos com uma brincadeira situada entre os sofisticados ranchos e os ‘perigosos’ cordões. Juntando a organização e a espontaneidade, os blocos eram desse modo espécies de ranchos mais populares. Em 1916, um artigo do Jornal do Commercio, de 4 de março, destaca o crescimento, naquele ano, da novidade dos blocos, descritos como grupos uniformizados, que ‘não se desmembram’, ou seja, que desfilam coesos. Ainda segundo o artigo, ‘todos os blocos tem denominações mais ou menos espirituosas e pitorescas’, como por exemplo, Manequinhos, Gigolettes, Me deixa bahiano ou Mamãe, vamos deixar disso.

( FERREIRA, Felipe. O Livro de ouro do Carnaval brasileiro. Rio de Janeiro, Ediouro, 2004. p.277)

Dois Blocos famosos do Carnaval carioca, o Cacique de Ramos e o Bafo da Onça, que são Blocos de embalo, atingiram o apogeu na década de 1960. Eternos rivais, curiosamente um nasceu por causa do outro. O Cacique surgiu tendo o Bafo como inspiração. Os dois grupos carnavalescos são berço de grande parte dos compositores de samba na atualidade.

O mar de “peles vermelhas” do Cacique de Ramos
O desfile grandioso do Bafo da Onça tinha até pede passagem

Fato curioso é que esses dois blocos gigantes da cidade eram rivais a ponto de rolar pancadaria generalizada quando se encontravam. Hoje, resistem ao tempo, sem a mesma pompa dos anos 1960, mas com fôlego.

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