Fernando Saol
Instandarte
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6 min readMay 18, 2019

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Era Domingo de dia das mães, 11 de maio de 1969, quando os moradores da Praia do Pinto, no coração da Zona Sul do Rio de Janeiro, assistiam impotentes as chamas de um terrível incêndio. A ditadura militar já era uma realidade dura e cruel, com suas ações sem prévio aviso ou entendimento.

Um ano antes, o Governo Federal iniciaria uma verdadeira cruzada junto com o Governo do Estado da Guanabara contra à favelas cariocas localizadas na área turística da cidade. Foi criada uma Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana, a CHISAM, que executaria o maior plano de remoção de moradores de favelas. Em pouco mais de 5 anos, quase 200 mil pessoas foram realocadas para bairros da Zona Norte e Oeste do Rio de Janeiro, extinguindo assim pouco mais de 60 comunidades na Zona Sul e Centro. Em alguns casos, os moradores “aceitavam” a remoção, com a promessa de que ganhariam uma casa própria, num bairro planejado e com saneamento básico, com acesso à serviços básicos de cidadania, nos chamados Conjuntos Habitacionais. Cidade Alta e Cidade de Deus são exemplos desses locais que receberiam esses moradores.

A Praia do Pinto e os Independentes do Leblon

A Praia do Pinto surgiu como uma vila de pescadores e operários que trabalhavam na construção do Jóquei Club, na Zona Sul do Rio de Janeiro. Existem registros do local datados da década de 1910. Com o passar dos anos e a valorização natural dos bairros ao entorno, a Praia do Pinto começou a despertar o interesse de investidores imobiliários. Como acontecia em várias regiões da cidade, nascia ali, em 1946, uma escola de samba: o G.R.E.S. Independentes do Leblon, que nasceu azul e amarelo. Os cinco primeiros desfiles foram disputados no Primeiro Grupo das Escolas de Samba, com resultados sempre de meio de tabela. Mas isso pouco importava, a escola estava entre as grandes e levava aos moradores da favela alegria que no resto do ano faltava. Curiosamente, em 1954 a agremiação defendeu o enredo “Urbanização das Favelas”, no equivalente Segundo Grupo daquele ano. Depois de 1952, a escola só desfilaria entre as grandes escolas novamente no Carnaval de 1968, sendo rebaixada.

09º Lugar entre 10 escolas

Em 1969, já no Grupo 2, a escola não desfilaria por causa de problemas técnicos da organização dos desfiles. O carnaval de 1969 já era um sinal de tempos sombrios na Praia do Pinto. A Independentes não desfilara e as remoções para um bairro novo já havia se iniciado. A resistência dos moradores era nítida, pois ninguém queria sair de onde morava para começar uma vida nova numa área distante do Centro da Cidade, sem os mesmos atrativos da região. Os jornais da época acompanhavam aquela que seria a primeira remoção integral de uma favela da cidade. A Operação Praia do Pinto encontrava dificuldades mas não era interrompida. A população do Rio acompanhava as notícias daquilo que parecia uma verdadeira novela:

Paulo Tibúrcio, como a maioria dos vizinhos a serem removidos, é um dos que vivem em nível um pouco mais alto que os outros habitantes da favela. os primeiros escolhidos moram na parte alta, onde não há inundações. (…) Ele pede um copo de ‘alcatrão com 4 caipirinha’ e bebe. Depois, constata que está na parte baixa da favela, onde os barracões são mínimos, feitos de pedaços de tábua velha. O ambiente parece ser o máximo da promiscuidade e tudo cheira a lama podre.‘Esse pessoal daqui é infeliz. Vivem como porcos. Mas vai lá e pergunta se eles querem sair daqui? A gente não sai por medo; eles por ignorância

(“Negrão de Lima abre em Cordovil conjunto da Cidade Alta” Jornal do Brasil, 29 /03/1969)

A Cidade Alta seria inaugurada no dia 28 de março de 1969. Poucos dias depois, um incêndio “acidental” lamberia a favela. O que impressiona nesse episódio foi a total omissão do poder público. Lideranças comunitárias “desapareceram”, serviços de apoio ignoraram pedidos de socorro e alguns meses depois do ocorrido, prédios e condomínios financiados por militares ocupariam o local onde anteriormente moravam 2 mil famílias. O processo de higienização social, de uma maneira ou de outra, estava concluído, com um balanço de 32 feridos e “nenhum” morto, contrariando versões de moradores da favela.

E transferidos para o Conjunto Habitacional da Cidade Alta

os 7.000 moradores da Praia do Pinto (favela localizada num terreno plano privilegiado, bem no centro do bairro grã-fino do Leblon) recusaram-se, espontaneamente, a sair da favela e ser transferidos. Durante aquela noite, um incêndio “acidental” alastrou-se pela favela: apesar de muitos moradores e vizinhos alarmados terem chamado os bombeiros, estes, evidentemente cumprindo ordens, não apareceram. Pela manhã, quase tudo tinha sido arrasado. Muitas famílias não conseguiram salvar nem seus parcos haveres, e os líderes da “resistência passiva” desapareceram completamente, deixando suas famílias em desespero. No local, construíram-se prédios de apartamentos financiados pelos militares.

Estes fatos contrastam vivamente com a experiência de muitas favelas, no período anterior à tomada do poder pelos militares.

( PERLMAN, Janice. O mito da marginalidade. Favelas e política no Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976. 377 p.)

A Independentes do Leblon também não desfilaria no carnaval de 1970, por motivos óbvios. Sua bandeira foi enrolada após o desfile de 1971. Sem quadra nem comunidade, não tinha mais razão para existir com aquela denominação.

A Cidade Alta e os Independentes de Cordovil

O ano de 1972 reservava uma nova esperança para os ex-moradores da Praia do Pinto. Os Independentes “riscavam” o Leblon da bandeira e assumiriam uma nova identidade, junto com integrantes da extinta Aprendizes da Gávea (escola formada por moradores do Parque Proletário da Gávea, favela também removida para a Cidade Alta). Incorporando o bairro de Cordovil ao nome e mantendo as cores tradicionais, a escola, como todos os moradores transferidos, renasceria e manteria sua caminhada nos grupos de baixo, como uma verdadeira homenagem à história de seus componentes, de resistência e de luta. Ninguém removeria o samba das veias daquelas pessoas, mesmo com tantas adversidades.

A escola não desfilaria novamente no Primeiro Grupo das Escolas de Samba, porém não passaria despercebida a sua história. Com poucos recursos financeiros, uma aposta bastante comum das escolas menores é homenagear grandes personalidades. Martinho da Vila, Alcione, Solano Trindade, Neguinho da Beija-flor, Burle Marx e Jorge Amado são algumas dos nomes de peso que viraram enredo em Cordovil. O samba em homenagem ao paisagista é um dos mais agradáveis da escola. Não que seja um primor. Talvez nesse quesito venha a sua fama também. O Dragão da Leopoldina nunca levou grandes obras para a avenida, porém eram sambas valentes e com trechos inspirados.

Na época, o Grupo 2A equivalia ao Terceiro Grupo.

Curiosamente, o Dragão só conquistou um título em seus 51 anos de atividade. Foi em 1985, com um sugestivo “Sangue, suor e lágrimas”. O primeiro lugar no que hoje seria o terceiro grupo fez acabar a cerveja em Cordovil. Um troféu merecido. Infelizmente, não temos nenhum registro dessa façanha

Outra passagem curiosa da escola foi no ano de 1991, pelo Grupo A do Carnaval Carioca. Um enredo sobre os profissionais da noite do Rio de Janeiro. O samba é o nosso preferido, pela tamanha ousadia e originalidade merece muito uma chance de ser contemplado.

Com esse enredo por pouco a escola não foi rebaixada. O desfile deve ter sido divertido e pitoresco, ainda encontraremos testemunhas para falar sobre sua apresentação em 1991. E acredite, caro leitor, foi no Dragão da Leopoldina que o até então radialista Anthony Garotinho foi homenageado. Num dos sambas mais “trash” de todos os tempos, e incrivelmente extenso, a escola conseguiu um 14º lugar no Grupo A de 1994, entre 16 escolas. A escola enrolaria sua bandeira depois do desfile de 1997, com o enredo “Pega na Mentira”. Esperamos que um dia a escola retorne, como retornaram a Unidos de Padre Miguel e Unidos de Bangu.

Até lá, ficam as memórias.

Enredo “Ela, Ele e Eles — Os possuidores da noite”

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