Getúlio, a Portela e o nascimento da Identidade Nacional

Fernando Saol
Instandarte
Published in
7 min readMay 20, 2019

Como ditador catapultou o samba para o Brasil inteiro, por meio de uma estratégia nacionalista

Desde seu surgimento, as Escolas de Samba do Rio de Janeiro já prendiam a atenção da população carioca. Por reunir o que a festa oferecia de melhor, logo se tornaram importantes instituições culturais. No começo, por representarem comunidades carentes, tinham a desconfiança das elites da cidade, mas logo foram descobertas por elas também. A Praça Onze, local tradicional de apresentação dessas agremiações, era o palco ideal, justamente pelo o que simbolizava. Chamada de Pequena África, era onde o Samba encontrava seu ponto de partida. Mikhail Bakhtin, em sua obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento, ilustra muito bem o papel da praça pública. Papel esse, que foi muito bem aproveitado pelas Escolas de Samba.

A praça pública era o ponto de convergência de tudo que não era oficial, de certa forma gozava de um direito de “exterritorialidade” no mundo da ordem e da ideologia oficiais, e o povo aí tinha sempre a última palavra. Claro, esses aspectos só se revelavam inteiramente nos dias de festa

( BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento — o contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília, Ed. Hucitec, 2008. p.132)

Bakhtin divide as manifestações culturais populares em três grupos: Ritos e Espetáculos, Obras cômicas verbais e um terceiro grupo organizado em formas e Gêneros do vocabulário familiar. O carnaval se enquadraria no primeiro grupo. Bakhtin considerava o Carnaval como um rito público no qual os costumes das classes nobres e religiosas eram parodiados. A forma jocosa de retratar as elites da sociedade não faz do carnaval um tipo de arte e sim uma realidade subvertida provisória. O carnaval, de certa maneira, desestruturava o mundo em questão, pois tornava possível a inversão de papéis e valores. O povo deixava de lado seu papel de espectador da realidade e virava, mesmo que por alguns dias, o protagonista do espetáculo. O carnaval agiria como agente transformador da realidade. Bakhtin diz que essas festas:

ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não- oficial, exterior à Igreja e ao Estado.

( BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento — o contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília, Ed. Hucitec, 2008. p.4–5)

Por ter essa função libertadora, os desfiles das Escolas de Samba no Rio de Janeiro cada vez mais se tornavam populares. E logo o Poder Público viu na festa, a chance de se valer dessa forte popularidade. E as Escolas de Samba, em contrapartida, também se aproveitaram disso, pois era uma maneira de se fortalecer como instituição cultural. Getúlio Vargas foi o primeiro a enxergar nas Escolas de Samba um importante meio de difusão de seu projeto nacionalista. Com isso, seu projeto perderia o cunho oficial e seria tratado como um anseio do povo, por meio de sua manifestação popular.

Getúlio Vargas organizou a competição. As regras da competição obedeciam as vontades políticas do ditador.

Foi o ditador que oficializou na década de 1930 as escolas de samba, incluindo as regras de competição para o Carnaval, como a seleção de temas históricos para os enredos e as fantasias. Em troca de verba pública, as agremiações retratariam temas nacionais (e construtivos). E tudo constava no regulamento geral da competição, das União das Escolas de Samba.

Curiosamente, todas as Escolas de Samba que foram campeãs no período em que Getúlio Vargas estava no poder, ganharam com enredos nacionalistas. O objetivo era atingido em ambos os lados. As Escolas se popularizavam e Getúlio via nascer o sentimento nacionalista nos brasileiros, já que o samba atingia níveis nacionais.

O processo de popularização do samba era iminente, mas certamente a política de Vargas contribuiu para a sua consolidação no panorama nacional

( BENEVIDES, André. Projeto Nacionalista de Getúlio Vargas se beneficiou do samba)

Bakhtin explica a causa do sucesso dessa parceria, no qual Getúlio Vargas se beneficiou:

A linguagem familiar, que formava quase uma língua especial, inutilizável em outro lugar, nitidamente diferenciada da usada pela Igreja, pela corte, tribunais, instituições públicas, pela literatura oficial, da língua falada pelas classes dominantes (…) Nos dias de festa, sobretudo durante o carnaval, o vocabulário da praça pública se insinuava por toda parte (…)

( BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento — o contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília, Ed. Hucitec, 2008. p.133)

E qual o perfil das pessoas que frequentavam a Praça Onze durante o carnaval? Em sua maioria pessoas marginalizadas, de ascendência escrava, negros e mestiços que tinham dificuldade de assumir a identidade nacional. E pensando assim, Getúlio Vargas conseguiu atingir essa camada da população que não era atingida por seus programas de rádio ou suas publicações na imprensa oficial. Falando a “língua familiar” às essas camadas, Getúlio Vargas se aproximou delas e pode difundir sua ideologia. As Escolas de Samba desempenhavam o papel de relevante importância comunicacional. A Portela foi uma das escolas que mais lucraram em dar apoio ao projeto nacionalista.

Em 1943, com o enredo Brasil, terra da liberdade, a Escola levou para disputa um samba que apoiava a entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial.

Brasil, terra de liberdade
Brasil, nunca usou de falsidade
Hoje estamos em guerra
Em defesa de nossa terra

Se a Pátria me chama eu vou
Serei mais um defensor
Irei para a linha de frente
Travar um duelo
Em defesa do meu pendão
Verde e amarelo
Embora eu tenha que ser
Sentinela perdida
Honrarei minha pátria querida

( Samba composto por Nilson e Alvaiade, usado na conquista do campeonato de 1943)

E nos anos seguintes, os temas nacionalistas se seguiram, e junto com eles, os títulos. Só na década de 1940, a Portela conquistou sete campeonatos seguidos e um vice-campeonato. O nacionalismo de Getúlio Vargas fazia das Escolas de Samba campeãs. O samba de 1944 é bastante curioso, quase uma continuação do ano anterior.

Somos todos brasileiros
E por ti queremos servir
O clarim já tocou: reunir!
Adeus minha querida que já vou partir

Em defesa do nosso país
Verde, amarelo, branco e azul
Cor de anil é o meu Brasil
Ó meu torrão abençoado
Os teus filhos adorados
Seguiremos prá fronteira
Prá defender a vida inteira
Nossa querida bandeira

( Samba composto por Zé Barriga Dura e Nilton Batatinha, usado na conquista do campeonato de 1944)

Uma das táticas de Getúlio Vargas para se aproximar do povo brasileiro eram os discursos. As rádios transmitiam as falas exaltadas e super-nacionalistas, muitas das vezes, de eventos públicos. O estádio de São Januário, pertencente ao Clube de Regatas Vasco da Gama, foi palco de muitos desses pronunciamentos, que sempre ocorriam antes de um grande evento. Em 1945, por exemplo, um grande discurso foi realizada antes dos desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, dentro de São Januário. Como não poderia ser diferente, um enredo nacionalista levou o campeonato daquele ano, considerado pelos jornais da época como o desfile mais patriótico.

Ó meu Brasil glorioso
És belo, és forte, um colosso
É rico pela natureza
Eu nunca vi tanta beleza
Foi denominado terra de Santa Cruz

Ó pátria amada, terra adorada, terra de luz
Nessas mal traçadas rimas
Quero homenagear
Este meu torrão natal
És rico, és belo, és forte
E por isso és varonil
Ó pátria amada, terra adorada, viva o Brasil

( Samba composto por Boaventura dos Santos, o Ventura, usado na conquista do campeonato de 1945)

Curiosamente, quando a Portela deixou de tratar do tema que a levou ao hepta campeonato do desfile das Escolas de Samba do Carnaval carioca e levou um enredo sobre a Princesa Isabel à avenida, em 1948, ficou em 3º lugar. Após a queda de Getúlio Vargas, as Escolas de Samba continuaram com sua vertente nacionalista, porém outras temáticas ganhavam a Avenida. Os enredos sobre período colonial e Família Real ganhavam cada vez mais espaço. Vale à pena lembrar a visão de Bakhtin sobre o Carnaval:

essas comemorações ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior à Igreja e ao Estado

( BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento — o contexto de François Rabelais. São Paulo-Brasília, Ed. Hucitec, 2008. p.4–5)

Bakhtin chega a classificar o Carnaval como “grotesco”, por se tratar de uma comemoração que ia ao caminho inverso da situação normal da sociedade. Por isso, os temas de nobreza e de Família Real* se tornarem tão populares, rivalizando com os temas nacionalistas. Os negros, mestiços e as pessoas marginalizadas viam a oportunidade de trocar seu papel na sociedade durante os desfiles, com temas sobre a história Real (da nobreza da família imperial) que era retratada e seduzia os desfilantes. A história negra e indígena demorou mais um pouco para cair no gosto popular. Mas isso é assunto para outra postagem…

Cada vez mais a sociedade virava os olhos para os desfiles das Escolas de Samba. Ainda bem!

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