CARNAVAL MIDIÁTICO — Que festa é essa?

Fernando Saol
Instandarte
Published in
5 min readMay 16, 2019

Começamos hoje uma série de textos sobre o carnaval carioca das escolas de samba e sua exploração midiática. Mas antes de nos aprofundarmos, precisamos conhecer um pouco dessa festa!

Para começar a explicar o Carnaval, precisamos entendê-lo melhor. Não é uma das festas mais organizadas e nem por isso deixa de ter expressivo sucesso. Talvez esteja aí, a fórmula de sua popularização: a bagunça. Não a bagunça banal, a bagunça comum, de coisas desarrumadas. Mas a bagunça social. Nessa festa podemos inverter papéis, criticar sem ser criticado, fazer uso de ideias absurdas, que durante a festa não são tratadas como tal. A rotina diária se transforma durante quatro, cinco, sete dias.

Não discutimos aqui

Homens travestidos de mulheres, Mulheres travestidas de homens, brancos pintados de negros, negros pintados de brancos, pobres com roupas de ricos, ricos vestidos de mendigos, crianças sem medo de monstros, adultos brincando como crianças. Nossas vontades suprimidas durante um ano inteiro são extravasadas no período onde a carne nada vale. A festa é antiga, seu sentido foi modificado durante os séculos, sua divindade negada e sua profanidade aumentada. Até nessa questão tudo se inverte. A festa nascida divina tem revogada sua santidade.

Como toda festa, existe quem reprove, mas o fato é que provavelmente nunca deixará de existir. É a válvula de escape de toda uma sociedade, seja no Brasil, seja na Europa, seja em qualquer outra parte do mundo. A festa é pagã, mas quem a coloca no calendário cristão é a Igreja Católica. O Antropólogo Roberto DaMatta caracteriza como ninguém, essa incrível festa:

Mas como definir o Carnaval? Seria exagero dizer, é uma ocasião em que a vida diária deixa de ser operativa e, por causa disso, um momento extraordinário é inventado. Ou seja: como toda festa, o Carnaval cria uma situação em que certas coisas são possíveis e outras devem ser evitadas. Não posso realizar um Carnaval com tristeza, do mesmo modo que não posso ter um funeral com alegria. Certas ocasiões sociais requerem determinados sentimentos para que possam ocorrer como tais. Tragédias são definidas como eventos tristes e tudo que nelas ocorre de cômico deve ser inibido ou simplesmente ignorado. Carnavais e comédias, ao contrário, são episódios em que o triste e o trágico é que devem ser banidos do evento, como as roupas do rei que estava nu e não podia ser visto como tal…

(DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro, Rocco: 1986. p.61)

Essa inversão de mundo, da sociedade engessada, é que a festa nos presenteia com o mais curioso. DaMatta faz uma bela analogia sobre o uniforme, da vida diária, e da fantasia, do Carnaval:

Sabemos que o uniforme (como todas as vestes normais do mundo diário) cria a ordem. O uniforme é uma roupa que ‘uniformiza’, isto é, faz com que todos fiquem iguais, sujeitos a uma mesma ordenação ou princípio de governo. Mas a fantasia permite a invenção e a troca de posições (…) a palavra ‘fantasia’ tem duplo sentido. É algo que se pode pensar acordado, o sonho que se tem quando a rotina mais nos escraviza e revolta; e também a roupa que só se usa no carnaval

(…). Assim, ela permite que possamos ser tudo o que queríamos, mas que a ‘vida’ não permitiu. Com ela — e jamais com uniforme -, conseguimos uma espécie de compromisso entre o que realmente somos e o que gostaríamos de ser. O uniforme achata, ordena e hierarquiza. A fantasia liberta, desconstrói, abre caminho e promove a passagem para outros lugares e espaços sociais. (…) É a fantasia que permite passar de ninguém a alguém, de marginal do mercado de trabalho a figura mitológica de uma história absolutamente essencial para a criação do momento mágico do Carnaval. Se no mundo diário estamos todos limitados pelo dinheiro que se ganha (ou não se ganha…), pelas leis da sociedade, do mercado, da casa e da família, no Carnaval e na fantasia temos a possibilidade do disfarce e da liberação.

(DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro, Rocco: 1986. p.63)

A impossibilidade é negada durante o Carnaval.

Não necessariamente é preciso de dinheiro para brincar o Carnaval. Sua popularização logo foi beneficiada pela sua falta de regras. A única regra, talvez, seja a alegria. A possibilidade de externar seu descontentamento com os assuntos da época acabaram dando uma nova caracterização à festa. No Brasil, o Carnaval foi usado para criticar a Escravatura no tempo do Império, o FMI, o Imperialismo norte-americano e os pacotes econômicos nos anos 1980, ou até mesmo as mazelas sociais. Por outro lado, governos usaram o Carnaval para alongar seus tentáculos comunicacionais, aproveitando a característica popular do festejo. Recentemente, empresas privadas abriram seus olhos sobre essa questão. Interesses financeiros recheados de promoção cultural. Esses últimos casos se referem às Escolas de Samba do Rio de Janeiro.

Carnaval, pois, é inversão porque é competição numa sociedade marcada pela hierarquia. É movimento numa sociedade que tem horror à mobilidade, sobretudo à mobilidade que permite trocar efetivamente de posição social. É exibição numa ordem social marcada pelo falso recato de ‘quem conhece o seu lugar’ — algo sempre usado para o mais forte controlar o mais fraco em todas as situações.

(DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro, Rocco: 1986. p.67)

Usar o Carnaval para se passar uma mensagem se tornou comum. Mas até hoje, ainda resiste nas comunidades das Escolas de Samba, o sentimento mais original da festa, que a transformou numa manifestação popular.

Por isso tudo, o Carnaval é a possibilidade utópica de mudar de lugar, de trocar de posição na estrutura social. De realmente inverter o mundo em direção à alegria, à abundância, à liberdade e, sobretudo, à igualdade de todos perante a sociedade. Pena que tudo isso só sirva para revelar o seu justo e exato oposto…

(DAMATTA, Roberto. O que faz o Brasil, Brasil? Rio de Janeiro, Rocco: 1986. p.67)

As escolas de samba, que nasceram no Rio de Janeiro, ganharam as ruas de várias cidades do Brasil

Isto posto, falaremos sobre essa função comunicacional que por vezes, suplanta o sentimento original do Carnaval carioca. Antes, porém, é preciso conhecer os principais movimentos populares do Carnaval no Rio de Janeiro que influenciaram as Escolas de Samba, o surgimento do samba e das próprias Escolas de Samba, nosso principal objeto de estudo. Para esse breve resumo histórico, utilizaremos três obras de pesquisadores ligados ao Carnaval carioca. O primeiro é 100 anos de Carnaval no Rio de Janeiro, de Haroldo Costa, o segundo é As Escolas de Samba do Rio de Janeiro, de Sérgio Cabral e por fim, utilizaremos o Livro de Ouro do Carnaval Brasileiro, de Felipe Ferreira.

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