Beleza e Dessacralização, por Roger Scruton

Instituto Aletheia
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16 min readOct 4, 2020

Em qualquer momento entre 1750 e 1930, se pedíssemos a uma pessoa educada para descrever o objetivo da poesia, da arte ou da música, “beleza” teria sido a resposta. E se você perguntasse qual era o ponto dela, aprenderia que a beleza é um valor, tão importante a seu modo quanto verdade e bondade, e sem dúvidas dificilmente distinguido destes. Filósofos do Iluminismo viram a beleza como um caminho pelo qual os duradouros valores morais e espirituais adquiriam uma forma sensível. E nenhum pintor, músico ou escritor romântico haveria negado que a beleza era o propósito final da sua arte.

Em algum momento após o modernismo, a beleza deixou de receber esses atributos. A arte cada vez mais procurou perturbar ou transgredir certezas morais, e não era a beleza, mas a originalidade — alcançada por qualquer meio e a qualquer custo moral — que ganhava os prêmios. De fato, aí surgiu uma suspeita generalizada da beleza ser a próxima na fila para o kitsch — algo muito doce e inofensivo para o sério artista moderno almejar. Num ensaio seminal — “Avant-Garde and Kitsch”, publicado em Partisan Review em 1939 — o crítico Clement Greenberg contrastou vigorosamente a vanguarda de seu tempo com as pintura figurativa que competia com ela, descartando a última (não apenas Norman Rockwell, mas grandes nomes como Edward Hopper) como derivativa e sem significância duradoura. A vanguarda, para Greenberg, promovia o perturbador e o provocativo em detrimento do tranquilizante e do decorativo, e por isso deveríamos admirá-la.

O valor da arte abstrata, dizia Greenberg, encontrava-se não na beleza, mas na expressão. Essa ênfase na expressão foi um legado do movimento Romântico; agora, porém, juntou-se a ele a convicção de que o artista está fora da sociedade burguesa, definido como opositor a ela, de maneira que a auto-expressão artística é também uma transgressão das normas morais comuns. Encontramos essa postura abertamente adotada na arte da Áustria e da Alemanha entre as guerras — por exemplo, nas pinturas e ilustrações de Georg Grosz, na ópera Lulu de Alban Berg (um retrato afetuoso de uma mulher cujo único objetivo discernível é o caos moral), e nas novelas decadentes de Heinrich Mann. E o culto da transgressão é um dos temas principais da literatura pós-guerra na França — dos escritos de Georges Bataille, Jean Genet e Jean-Paul Sartre ao vazio sombrio do nouveau roman.

Claro, houveram grandes artistas que tentaram resgatar a beleza da notável ruptura da sociedade moderna — como T. S. Eliot tentou recompor em Four Quartets, os fragmentos sobre os quais lamentou em The Waste Land. E houveram outros, particularmente na América, que recusaram ver o sórdido e o transgressivo como a verdade do mundo moderno. Artistas como Hopper, Samuel Barber e Wallace Stevens pensavam ser a transgressão ostensiva mero sentimentalismo, um caminho barato para estimular a audiência e uma traição da tarefa sagrada da arte, que é ampliar a vida como ela é e revelar sua beleza — como Stevens revela a beleza de “An Ordinary Evening in New Haven” e Barber aquela de Knoxville: Summer of 1915. Mas de alguma forma esses grandes afirmadores da vida perderam sua posição na vanguarda da cultura moderna. No que diz respeito aos críticos e à cultura em geral, a busca da beleza estava à margem do empreendimento artístico. Atributos como perturbação e imoralidade, os quais antes significavam falha estética, tornaram-se marcas de sucesso; entrementes a busca da beleza tornou-se um retrocesso da real tarefa da criação artística. Esse processo foi tão normalizado a ponto de vir a ser uma ortodoxia crítica, levando o filósofo Arthur Danto a argumentar recentemente que a beleza é ao mesmo tempo ilusória como objetivo e, de certa maneira, incompatível à missão da arte moderna. A arte adquiriu outro status e outro papel social.

A grande prova dessa mudança está na produção da ópera, que entrega aos cidadãos da cultura pós-moderna uma oportunidade inigualável para vingarem-se da arte do passado e para esconder sua beleza atrás de uma obscena e sórdida máscara. Nós todos supomos que isso acontecerá com Wagner, que “pediu por isso” ao acreditar muito fortemente no papel redentivo da arte. Mas agora isso acontece regularmente com os inocentes fornecedores de beleza, assim que um produtor pós-modernista coloca as mãos em uma de suas obras.

Um exemplo que particularmente me atingiu foi uma produção de 2004 de Die Entführung aus dem Serail, de Mozart, na Komische Oper Berlin (veja “The Abduction of Opera”, verão de 2007). Die Entführung conta a história de Konstanze — náufraga, separada de seu noivo Belmonte e levada para servir no harém do Pasha Selim. Após várias intrigas, Belmonte a resgata, ajudado pela clemência do Pasha — quem, respeitando a castidade de Konstanze e o fiel amor do casal, recusa-se a tomá-la a força. Essa trama implausível permite que Mozart expresse sua convicção iluminista de ser a caridade uma virtude universal, tão real no império muçulmano dos turcos quanto no império cristão do iluminado José II. Mesmo que a visão inocente de Mozart careça de bases históricas, sua crença na realidade do amor desinteressado está expressa e endossada por todos os lados na música. Die Entführung promove uma ideia moral, e sua melodia partilha a beleza dessa ideia e apresenta-a persuasivamente ao ouvinte.

Na sua produção de Die Entführung, o diretor de palco catalão Calixto Bieito estabelece a ópera num bordel de Berlim, com Selim sendo o cafetão e Konstanze uma das prostitutas. Mesmo durante a mais tenra música, casais copulantes bagunçavam o palco, e toda oportunidade para violência, com ou sem um clímax sexual, era aproveitada. Em certa altura, uma prostituta é gratuitamente torturada e seus mamilos são sanguineamente e realisticamente cortados antes de ser morta. As palavras e a música falam de amor e compaixão, mas sua mensagem é afogada pelas cenas de dessacralização, assassinato e sexo narcisista.

Esse é um exemplo de algo familiar em todos os aspectos da nossa cultura contemporânea. Não é meramente que artistas, diretores, músicos e outros conectados às artes estão fugindo da beleza. Onde quer que a beleza nos espere, surge um desejo de impedir seu apelo, de sufocá-lo com cenas de destruição. Daí as muitas obras de arte contemporânea que sustêm-se sobre escândalos administrados à nossa fé falha na natureza humana — tais como o crucifixo em conserva em urina por Andres Serrano. Daí as cenas de canibalismo, desmembramento e dor sem sentido com as quais o cinema contemporâneo abunda, com diretores como Quentin Tarantino tendo pouco além disso nos seus repertórios emocionais. Daí a invasão da música pop pelo rap, cujas palavras e ritmos falam sobre violência incessante, e que rejeitam melodia, harmonia e todos os outros meios que poderiam fazer uma ponte ao velho mundo da música. E daí os clipes musicais, os quais tornaram-se uma nova forma de arte em si mesmos e são comumente dedicados a concentrar no intervalo de tempo de uma música pop alguma chocante nova conta de caos moral.

Esses fenômenos indicam um hábito de dessacralização no qual a vida não é celebrada pela arte, mas alvejada por ela. Artistas podem agora fazer seus nomes ao construir uma moldura original para exibir o rosto humano e jogar esterco nela. O que faremos com isso e como encontramos nosso caminho de volta àquilo pelo que tantas pessoas anseiam, que é a visão da beleza? Pode soar um tanto sentimental falar de uma “visão da beleza”. Mas o que quero dizer não é alguma imagem sacarina da vida humana, digna de um cartão de natal, mas sim as formas elementares nas quais os ideais e as decências entram no mundo comum e se fazem conhecidos, assim como o amor e a caridade se fazem conhecidos na música de Mozart. Há uma grande escassez de beleza em nosso mundo, uma escassez que nossa arte popular falha em reconhecer e nossa arte séria comumente despreza.

Eu usei a palavra “dessacralização” para descrever a atitude transmitida pela produção de Bieito de Die Entführung e pelos falhos esforços de Serrano em significar alguma coisa. O que exatamente sugere essa palavra? Está conectada, etimológica e semanticamente com sacrilégio e, portanto, com ideias de santidade e do sagrado. Dessacralizar é deteriorar o que poderia, de outra maneira, ter sido separado à esfera das coisas sagradas. Podemos dessacralizar uma igreja, um cemitério, um túmulo, bem como uma imagem santa, um livro santo ou uma santa cerimônia. Podemos dessacralizar um cadáver, uma imagem querida, até mesmo um ser humano — na medida que em que essas coisas contêm (como é o caso) um portento de alguma santidade original. O medo da dessacralização é um elemento vital em todas as religiões. De fato, é isso que a palavra religio originalmente significava: uma cerimônia ou culto designado a proteger algum lugar sagrado de sacrilégio.

No século dezoito, quando a religião organizada e a realeza cerimonial estavam perdendo suas autoridades, quando o espírito democrático estava questionando instituições herdadas, e quando espalhou-se a ideia de que não era Deus, mas o homem, que fazia as leis para o mundo humano, a ideia do sagrado foi eclipsada. Para os pensadores do Iluminismo, parecia pouco mais que uma superstição acreditar que artefatos, edifícios, lugares e cerimônias pudessem possuir um caráter sagrado, sendo todas essas coisas produtos dos projetos humanos. A ideia que o divino revela-se em nosso mundo e procura nossa adoração parecia tanto inverossímil em si mesma como incompatível com a ciência.

Ao mesmo tempo, filósofos como Shaftesbury, Burke, Adam Smith e Kant reconheceram que não vemos o mundo apenas com os olhos da ciência. Há outra postura — uma não de investigação científica, mas de contemplação desinteressada — que direcionamos ao nosso mundo na procura de seu significado. Quando tomamos essa postura, deixamos nossos interesses de lado; não estamos mais nos ocupando com os objetivos e projetos que nos impelem pelo tempo; não estamos mais nos engajando em explicar as coisas ou em aumentar nosso poder. Estamos deixando o mundo apresentar a si mesmo e confortando-nos nessa apresentação. Essa é a origem da experiência da beleza. Pode não haver maneira de contabilizar essa experiência como parte de nossa habitual busca por poder e conhecimento. Pode ser impossível assimilá-la ao uso diário de nossas faculdades. Mas é uma experiência que evidentemente existe e é do mais alto valor àqueles que a recebem.

Quando ocorre essa experiência e qual o seu significado? Aqui está um exemplo: suponha que você está caminhando para casa sob a chuva enquanto seus pensamentos estão ocupados com o trabalho. As ruas e as casas passam despercebidas; as pessoas, igualmente, passam por você; nada invade seus pensamentos salvo seus interesses e ansiedades. Então, de repente, o sol emerge das nuvens e um raio de luz pousa sobre uma velha parede de pedra ao lado da estrada e ali tremula. Você eleva os olhos aos céus onde as nuvens estão partindo-se e um pássaro irrompe numa canção num jardim atrás da parede. Seu coração enche-lhe de alegria e seus pensamentos egoístas são dispersos. O mundo põe-se à sua frente e você contenta-se em apenas contemplá-lo e deixá-lo ser.

Talvez tais experiências sejam mais raras agora do que no século dezoito, quando os poetas e filósofos depararam-se com elas como uma nova alameda para a religião. A pressa e a desordem da vida moderna, as formas alienantes da arquitetura moderna, o barulho e a espoliação da indústria moderna — tais coisas fizeram o puro encontro com a beleza um mais raro, mais frágil e mais imprevisível evento para nós. Não obstante, nós todos sabemos o que é encontrarmo-nos transportados de repente pelas coisas que vemos, do mundo comum dos nossos desejos à esfera iluminada da contemplação. Isso acontece frequentemente durante a juventude, apesar de, então, raramente interpretado. Isso acontece durante a adolescência, quando se presta às nossas ânsias eróticas. E acontece moderadamente na vida adulta, secretamente moldando nossos projetos de vida, apresentando-nos uma imagem de harmonia que buscamos através de férias, da construção de casas e dos nossos sonhos privados.

Aqui está outro exemplo: é uma ocasião especial quando a família reúne-se para um jantar cerimonial. Você põe a mesa com um limpo pano bordado, arruma os pratos, copos, pães num cesto e alguns jarros de água e vinho. Você faz isso amorosamente, deleitando-se na aparência, empenhando-se por um efeito de limpeza, simplicidade, simetria e aconchego. A mesa tornou-se um símbolo de regresso ao lar, dos braços estendidos da mãe universal convidando suas crianças a entrarem. E toda essa abundância de significado e bom ânimo está de alguma maneira contida na aparência da mesa. Isso também é uma experiência da beleza, uma que encontramos, numa ou noutra versão, todos os dias. Nós somos criaturas carentes e nossa maior necessidade é por um lar — onde encontramos proteção e amor. Nós alcançamos esse lar através de representações do nosso próprio pertencimento, não sozinhos, mas em conjunto com outros. Todos as nossas tentativas para fazer nossos arredores parecerem adequados — através da decoração, da organização, da criação — são tentativas de dar as boas-vindas a nós mesmos e àqueles que amamos.

Esse segundo exemplo sugere que nossa necessidade humana pela beleza não é apenas uma adição redundante à lista de apetites humanos. Não é algo que poderíamos ter em falta e ainda sermos completos como pessoas. É uma necessidade que surge de nossa condição metafísica como indivíduos livres procurando nosso lugar num mundo objetivo. Podemos vagar por este mundo alienados, rancorosos, cheios de suspeita e desconfiança. Ou podemos encontrar nossa casa aqui, encontrando descanso na harmonia com os outros e com nós mesmos. A experiência da beleza nos guia ao longo desse segundo caminho: nos diz que estamos em casa no mundo, que o mundo já está ordenado em nossas percepções como um lugar adequado para a vida de seres como nós.

Olhe para qualquer pintura de um dos grandes pintores de paisagens — Poussin, Guardi, Turner, Corot, Cézanne — e você verá aquela ideia de beleza celebrada e afixada em imagens. A arte da pintura de paisagem, surgindo no século dezessete, perseverando até o nosso tempo, é devota a moralizar a natureza e mostrar o lugar da liberdade humana no esquema das coisas. Não é que pintores de paisagens tornem-se cegos ao sofrimento ou à vastidão e ameaça do universo do qual ocupamos tão pequeno canto. Longe disso. Pintores de paisagens mostram-nos morte e decadência no próprio coração das coisas: a luz nas suas colinas é uma luz devanescente; as paredes de estuque das casas de Guardi estão remendadas e desmoronando. Mas suas imagens apontam para a alegria que está incipiente na decadência e para o eterno implicado no efêmero. Elas são imagens do lar.

Não é de surpreender que a ideia de beleza tenha intrigado filósofos. A experiência da beleza é tão vívida, tão imediata, tão pessoal, que dificilmente parece pertencer à ordem natural como a ciência a observa. Todavia a beleza refulge sobre nós vinda das coisas comuns. É ela uma característica do mundo ou uma invenção da imaginação? Está a contar-nos algo real e verdadeiro que requer apenas essa experiência para ser reconhecido? Ou é meramente um momento elevado de sensação, de nenhuma significância além do prazer da pessoa que a experimenta? Essas questões são de grande urgência para nós, já que vivemos numa época em que a beleza foi eclipsada: uma sombra negra de zombaria e alienação rastejou pela superfície uma vez radiante do nosso mundo, como a sombra da terra sobre a lua. Onde procuramos por beleza frequentemente encontramos escuridão e dessacralização.

O hábito atual de dessacralizar a beleza sugere que as pessoas estão tão conscientes como sempre da presença de coisas sagradas. A dessacralização é um tipo de defesa contra o sagrado, uma tentativa de destruir seus clamores. Na presença de coisas sagradas, nossas vidas são julgadas, e para escapar ao julgamento, destruímos aquilo que parece nos acusar.

Os cristãos herdaram de Santo Agostinho e de Platão a visão deste mundo transitório como um ícone de outra e imutável ordem. Eles entendem o sagrado como uma revelação, no aqui e agora, do senso eterno do nosso ser. Mas a experiência do sagrado não está confinada aos cristãos. Ela é, de acordo com muitos filósofos e antropologistas, um universal humano. Em geral, propósitos transitórios organizam nossas vidas: as preocupações diárias de razão econômica, a busca em pequena escala de poder e conforto, a necessidade de lazer e prazer. Pouco disso é memorável ou comovente para nós. De vez em quando, no entanto, somos sacudidos para fora de nossa complacência e nos sentimos na presença de algo imensamente mais significante que nossos interesses e desejos vigentes. Sentimos a realidade de algo precioso e misterioso, que chega até nós com uma afirmação que é, em certo sentido, de outro mundo. Isso acontece na presença da morte, especialmente da morte de um ente querido. Nós olhamos com espanto para o corpo humano que a vida abandonou. Isso não mais é uma pessoa, mas os “restos mortais” de uma pessoa. E esse pensamento nos enche de um senso do misterioso. Nós relutamos tocar o corpo morto; nós não o vemos, em certo sentido, como parte do nosso mundo, mas quase como um visitante de alguma outra esfera.

Essa experiência, um paradigma do nosso encontro com o sagrado, pede-nos um tipo de reconhecimento cerimonial. O corpo morto é objeto de rituais e atos de purificação, pensados não apenas para mandar seu ex-ocupante alegremente à outra vida — pois essas práticas são feitas até por aqueles que não creem no pós-vida — mas para superar a estranheza, a qualidade sobrenatural, da morta forma humana. O corpo está sendo reunido a este mundo pelos rituais que, ao mesmo tempo, reconhecem que ele também aparta-se dele. Os rituais, colocando em outros termos, consagram o corpo e então purificam-no de seu miasma. Pela mesma razão, o corpo pode ser dessacralizado — e esse é certamente um dos atos primários de dessacralização, aquele ao qual as pessoas foram dadas desde tempos imemoriais, como quando Aquiles arrastou o corpo de Heitor em triunfo ao redor das muralhas de Tróia.

A presença de uma reivindicação transcendental surpreende-nos para fora de nossas preocupações diárias em outras ocasiões, também. Em particular, há a experiência de apaixonar-se. Essa, também, é um universal humano, uma experiência do tipo mais estranho. O rosto e o corpo do amado estão imbuídos na mais intensa vida. Mas num aspecto crucial, eles são como o corpo de alguém morto: parecem não pertencer ao mundo empírico. O amado olha para o amante, como Beatrice olhou para Dante, de um ponto além do curso temporal da coisas. O objeto amado demanda que nós o celebremos, que nos aproximemos com uma reverência quase ritualística. E irradia daqueles olhos e membros e palavras uma espécie de plenitude de espírito que torna tudo novo.

Poetas tem investido milhares de palavras nessa experiência, a qual nenhuma palavra parece captar. Ela abasteceu o sentido do sagrado através das eras, lembrando a pessoas tão diversas quanto Platão e Calvino, Virgílio e Baudelaire, que o desejo sexual não é o simples apetite que testemunhamos em animais, mas a matéria-prima de uma ânsia que não tem satisfação fácil ou mundana, exigindo de nós nada menos que uma mudança de vida.

Muito da feiúra cultivada em nosso mundo hoje remete às duas experiências que destaquei. O corpo nos sofrimentos da morte; o corpo nos sofrimentos do sexo — essas coisas facilmente nos fascinam. Nos fascinam pela dessacralização da forma humana, mostrando o corpo humano como um mero objeto entre os objetos, o espírito humano eclipsado e ineficaz e o ser humano vencido por forças externas, e não como um sujeito livre vinculado pela lei moral. E é sobre essas coisas que a arte de nosso tempo parece se concentrar, oferecendo-nos não apenas pornografia sexual, mas uma pornografia da violência que reduz o ser humano a um pedaço de carne sofredora feita lamentável, desamparada e nojenta.

Todos nós desejamos fugir das demandas da existência responsável, na qual tratamos uns aos outros como dignos de reverência e respeito. Todos somos tentados pela ideia da carne e pelo desejo de refazer o ser humano como pura carne — um autômato, obediente a desejos mecânicos. Para ceder a essa tentação, no entanto, devemos primeiramente remover o principal obstáculo a ela: a natureza consagrada da forma humana. Devemos macular as experiências — tais como morte e sexo — que de outra maneira chamam-nos para longe das tentações, em direção à vida mais elevada do sacrifício. Essa dessacralização intencionada é também uma negação do amor — uma tentativa de reconstruir o mundo como se o amor não fosse mais uma parte dele. E essa é, com certeza, a característica mais importante da cultura pós-moderna: é uma cultura sem amor, determinada a retratar o mundo humano como não amável. O moderno diretor de palco que pilha as obras de Mozart está tentando arrancar o amor de seus corações, para que assim se confirme sua própria visão do mundo como um lugar onde apenas prazer e dor são reais.

Isso sugere um remédio simples, que é resistir à tentação. Em vez de profanar a forma humana, devemos aprender novamente a reverenciá-la. Pois não há absolutamente nada a ganhar com os insultos lançados contra a beleza por aqueles — como Calixto Bieito — que não suportam encará-la de frente. Sim, podemos neutralizar os elevados ideais de Mozart, colocando sua música em segundo plano para que se torne mera acompanhante de um carnaval desumano de sexo e morte. Mas o que aprendemos com isso? O que ganhamos em termos de desenvolvimento emocional, espiritual, intelectual ou moral? Nada que não seja ansiedade. Deveríamos tirar uma lição desse tipo de dessacralização: ao tentar nos mostrar que nossos ideais humanos são sem valor, mostram a si mesmos como sem valor. E quando algo mostra-se inútil, é hora de jogá-lo fora.

Portanto, é evidente que a cultura da transgressão nada alcança, salvo a perda na qual deleita-se: a perda da beleza como valor e objetivo. Mas por que é a beleza um valor? É uma ideia antiga que a verdade, a bondade e a beleza não podem, em última instância, entrar em conflito. Talvez a degeneração da beleza em kitsch venha justamente da perda pós-moderna da veracidade e da perda de direção moral. Essa é a mensagem dos primeiros modernistas tais como Eliot, Barber e Stevens, e é uma mensagem que precisamos ouvir.

Para montar um contra-ataque completo ao hábito de dessacralização, precisamos redescobrir a afirmação e a verdade da vida sem as quais a beleza artística não pode ser realizada. Essa não é uma tarefa fácil. Se olharmos para os verdadeiros apóstolos da beleza em nossos dias — penso em compositores como Henri Dutilleux e Olivier Messiaen, em poetas como Derek Walcott e Charles Tomlinson, em prosadores como Italo Calvino e Aleksandr Solzhenitsyn — somos imediatamente atingidos pelo imenso trabalho duro, pelo isolamento estudioso e pela atenção aos detalhes que caracterizam seu ofício. Na arte, a beleza precisa ser conquistada, mas o trabalho se torna mais difícil à medida que o ruído da dessacralização — amplificado agora pela Internet — abafa as vozes tranquilas que murmuram no coração das coisas.

Uma resposta é procurar pela beleza em suas demais formas cotidianas — a beleza de ruas estabelecidas e rostos alegres, de objetos naturais e paisagens geniais. É possível jogar sujeira nessas coisas também, e é a marca de um artista de segunda classe escolher tal caminho para captar a nossa atenção — a via negativa da dessacralização. Mas também é possível retornar às coisas comuns no mesmo espírito de Wallace Stevens e Samuel Barber — mostrar que estamos em casa com elas e que elas magnificam e sustentam nossa vida. Tal é o caminho coberto que os primeiros modernistas clarearam para nós — a via positiva da beleza. Ainda não há razão para pensar que devemos abandoná-la.

por Roger Scruton

tradução de Vitor Beuren

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