Breve Exposição da Visão Positivista Sobre a Filosofia

Instituto Aletheia
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7 min readJun 23, 2020

Introdução

Pouco ou quase nada sabemos sobre a vida de Pitágoras. Sabemos, sim, que foi um dos maiores matemáticos da humanidade, lançando a base para o desenvolvimento científico posterior. No entanto, somente um excerto de sua biografia nos importa.

Pitágoras passou alguns anos estudando no Egito. Com o tempo que lá passou aproveitou para estudar agrimensura e compreender como os egípcios usavam frações para conter o avanço do Rio Nilo.

Quando volta para a Grécia, Pitágoras funda a sua seita, mas leva, junto com ele, todo o arcabouço matemático egípcio e mesopotâmico que aprendera e transforma a Matemática em princípios lógicos e abstratos. Como diz Russell:

“Os geômetras gregos antigos, ao passarem das regras de agrimensura empíricas egípcias para as proposições gerais pelas quais se constatou estarem aquelas regras justificadas, e daí para os axiomas e postulados de Euclides, estavam praticando a filosofia matemática, segundo a definição acima; porém, uma vez atingidos os axiomas e postulados, o seu emprego dedutivo, como encontramos em Euclides, pertencia à matemática no sentido comum.”[1]

Pitágoras não funda a Matemática, mas sua atitude nos apresenta um arsenal de possibilidades para o que discorreremos aqui. Ao fazer isso, o matemático grego transpõe conceitos objetivos físicos para conceitos abstratos. Ao desenvolver axiomas ou postulados — que em alguns momentos chamaremos de “princípios” ou “pressupostos” — , os gregos convertiam o plano prático das ações para o plano abstrato das ideias. O que queremos dizer é: uma fração não é mais somente uma forma de medir as enchentes do Rio Nilo. É agora, contudo, uma forma de abstrair números e desenvolvê-los de forma a relacioná-los para criar outros números. Cumpre, antes de tudo, definir o que seja uma abstração.

Conforme nos diz Mário Ferreira dos Santos:

“A abstração consiste na ação do espírito que considera à parte um elemento (qualidade ou relação) de uma representação ou de uma ideia, pondo especialmente a atenção sobre ele e negligenciando os outros elementos. Também se chama abstração ao resultado desta ação: o que conseguimos abstrair.”[2]

Isto é, uma abstração é uma divisão, uma forma de separar elementos para melhor compreendê-los. O que os antigos gregos promoviam era a abstração do conhecimento humano acumulado até o momento (cumpre observar as múltiplas influências no pensamento platônico). Na abstração, o plano prático é demovido e as ideias aparecem.

Somente nesse ponto podemos entender a Filosofia. Como atividade de abstração da realidade por meio da reflexão, a Filosofia aparece tratando de conceitos que já eram tomados como princípios em outras atividades do conhecimento. Se na Política já se pressupunha a Ética, a Filosofia definirá esta última. Se na Geometria já se tomava como base o espaço, a Filosofia tratará de compreender esse conceito.

O que dizemos aqui é: a Filosofia está sobre todas as ciências por tratar das questões últimas e primeiras, do princípio do conhecimento e do seu fim. O amor pela sabedoria é, na verdade, uma elevada ciência (no sentido puro do termo) que busca entender o que é e como se impõe a realidade, tentando compreender a experiência humana ao abstrair fatos objetivos da própria realidade.

Entretanto, no século XIX, milhares de anos após Pitágoras e Platão, Auguste Comte compila uma nova doutrina que sobrepunha a ordem prática à filosófica.

O Positivismo

O positivismo, como já é por muitos sabido, tem por base a divisão a história das ideias em três estados: teológico, metafísico e positivo. A humanidade, segundo Comte nos diz, passou pelas duas primeiras fases e agora, com o avanço científico, atingia o último. Nesse nos debruçaremos.

Auguste Comte, formulador da doutrina (filosofia) positivista

Ao contrário dos estados teológico e metafísico, no positivo não há a possibilidade de reduzir a realidade e seus fenômenos sociais e naturais a um só princípio (no teológico, Deus; no metafísico, a Natureza). Os fatos da realidade, dizia Comte, são tantos que nos é impossível unifica-los de forma a torna-los um. Isto é, não existe uma convergência natural das ciências. Se no período teológico todos os fenômenos tinham como objeto final Deus, no período positivo esse objeto já não existe e a realidade percorre sua existência por si mesma.

Auguste levanta, então, uma questão crucial na sua filosofia:

“No estado primitivo de nossos conhecimentos, não existe nenhuma divisão regular em nossos trabalhos intelectuais. Todas as ciências são cultivadas simultaneamente pelos mesmos espíritos. Esse modo de organização dos estudos humanos, no início inevitável e mesmo indispensável, como teremos ocasião de constatar mais tarde, altera-se pouco a pouco, na medida em que diversas ordens de concepções se desenvolvem. Por uma lei cuja necessidade é evidente, cada ramo do sistema científico se separa insensivelmente do tronco, desde que cresça suficientemente para comportar uma cultura isolada, isto é, quando chega ao ponto de poder ser a ocupação exclusiva da atividade permanente de algumas inteligências. É a essa repartição de diversas espécies de pesquisas entre diferentes ordens de sábios que devemos, evidentemente, o desenvolvimento tão notável que tomou, enfim, em nossos dias, cada classe distinta dos conhecimentos humanos e que torna manifesta a impossibilidade, entre os modernos, dessa universalidade de pesquisas especiais, tão fácil e tão comum nos tempos antigos. Numa palavra, a divisão do trabalho intelectual, aperfeiçoada progressivamente, é um dos atributos característicos mais importantes da filosofia positiva.”[3]

O ponto é: o conhecimento chegou a um nível tão elevado e ramificado que compendiar e unificar a sabedoria humana é uma tarefa impossível. Surge, então, a Filosofia propriamente dita. Para o positivismo — e, posteriormente, para o neopositivismo ou empirismo lógico também –, a Filosofia teria como única função o sistematizar de ideias científicas, após o trabalho da ciência. Sendo as ciências exatas meramente baseadas nos fenômenos físicos observáveis, a Filosofia também o seria, nascendo assim a negação da metafísica. A sociedade se basearia em si mesma e na experiência dos fatos, o que daria base para a religião da humanidade comtiana. A Filosofia seria o ponto de partida para o florescimento das outras ciências, pois sistematizaria todo o conhecimento anterior acumulado pela sociedade. Para Comte, a Filosofia, como sintetizadora — e, portanto, intermediária — do conhecimento científico, seria a base para a construção e o governo da sociedade. Isto é, a Filosofia teria caráter e objetivo prático. O positivismo desvia, assim, a Filosofia de seu caráter puramente especulativo. Dizemos, então, que a Filosofia Moderna é ANCILLA SCIENTIARUM (em contraposição ao ANCILLA THEOLOGIAE medieval).

O Neopositivismo

No neopositivismo (ou empirismo lógico), os fatos pouco se alteram. Para o neopositivismo, apenas as proposições sintéticas nos informam sobre questões de fato. As proposições analíticas seriam meras tautologias, não ultrapassando o conceito do próprio definiendum (aquilo que se define) Aqui, vale lembrar que juízos sintéticos são aqueles que tratam de fenômenos acidentais (que podem ou não ser), como quando se diz: “este livro é azul”. Ora, por ser livro ele deve ser azul? Absolutamente não. Dessa forma, esse juízo nos apresenta algo novo, que não é próprio do objeto livro, isto é, o predicado não está contido sujeito. Porém, quando afirmamos que “um triângulo é um polígono de três ângulos”, para o empirismo lógico, estamos afirmando nada, pois o predicado já está contido no sujeito. Ou seja, juízos analíticos não passam de convenções linguísticas.

Rudolf Carnap, um dos maiores defensores do neopositivismo

Em suma, para os (neo)positivistas, não há proposições a priori, ou seja, conceitos estabelecidos apesar do fluxo histórico. Conforme nos diz Hans-Hermann Hoppe:

“Exemplos do que eu quero dizer por uma teoria a priori são: É impossível uma matéria estar em dois lugares ao mesmo tempo. Não há dois objetos que possam ocupar o mesmo lugar. Uma linha reta é a linha mais curta entre dois pontos[4]. Com duas linhas retas não se pode cercar um espaço. Um objeto que é completamente vermelho não pode ser completamente verde (azul, amarelo ou de outra cor). Qualquer objeto que pode ser colorido também pode ser ampliado. Qualquer objeto que tem forma também tem tamanho. Se A é uma parte de B e se B é uma parte de C, então A é uma parte de C. “4 = 3 + 1”. “6 = 2 x (33–30)”. Implausivelmente, os empiristas devem denegrir tais proposições considerando-as simples convenções linguísticas e sintáticas sem qualquer conteúdo empírico — i.e., meras tautologias “vazias”. Em contraste com esse ponto de vista — e de acordo com o bom senso –, eu considero tais proposições como afirmações de algumas verdades simples — mas fundamentais — sobre a estrutura da realidade. E, conforme o bom senso, eu considero confusa uma pessoa que queira “testar” essas proposições ou relate “fatos” que as contrariem ou que delas se desviem. A teoria a priori sobrepuja e corrige a experiência (e a lógica se sobrepõe à observação) –e não vice-versa.”[5]

Ou seja, para o empirismo lógico, apenas fatos concretos possuem validade, fatos que podem ser comprovados pela experiência histórica. A Filosofia já não trata de conceitos últimos, mas apenas de uma organização dos resultados científicos. Isso porque, sendo esses conceitos meras tautologias, ou melhor, convenções linguísticas vazias, cumpre à Linguística tratar deles, não a Filosofia.

O positivismo, portanto, inverte a classe dos interesses elevados que Sócrates reordenara em seus debates com os sofistas, cuja visão última era a retórica para a Política e apenas isso[6]. Auguste Comte, ao contrário de Pitágoras, estaria disposto a transformar os conceitos abstratos gregos em regras de agrimensura práticas. Agora, as Ciências ganham um papel central no pensamento humano, tendo a Filosofia, tantas vezes antes exaltada e discutida, por sua mera serva.

por Diego Cândido, editor do Instituto Aletheia

[1] Introdução à Filosofia Matemática, Bertrand Russell.

[2] Filosofia e Cosmovisão, Mário Ferreira dos Santos.

[3] Curso de Filosofia Positiva, Auguste Comte.

[4] Aqui vale a correção ou um adendo aos dizeres de Hoppe: essa proposição apenas é válida para um espaço euclidiano; quando o espaço for deformado, a menor distância não é mais uma reta, mas uma curva geodésica.

[5] Democracia, O Deus que Falhou, Hans-Hermann Hoppe.

[6] Há exceções, de fato. E o próprio Sócrates tinha por admiração certos sofistas, mas não nos cumpre tratar disso nesse momento.

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