Crítica Textual: o que é e por que você precisa dela

Instituto Aletheia
Instituto Aletheia
Published in
8 min readJul 30, 2020

por Brandon D. Crowe

traduzido por Natan Cerqueira

  1. Por que precisamos de crítica textual?

Uma das matérias que ensino todo ano cobre o assunto de crítica textual do Novo Testamento. Ao escrever isso, eu sei quão tedioso ela soa. Quando, ao jogar conversa fora, menciono essa aula para alguém, eu quase posso sentir o ar de tédio enchendo a sala. Não surpreende. A maioria não sabe o que é o assunto e aqueles que sabem devem admitir que “crítica textual” não é a frase mais cativante.

No entanto, crítica textual não precisa ser entediante. Um nome mais preciso (e, certamente, mais interessante) seria “o estudo de manuscritos antigos e como obtemos nossas bíblias impressas a partir deles”. Agora, sim, temos algo interessante sobre o qual conversar. Como isso funciona? E exatamente por que precisamos disso? E, mais existencialmente, como isso afeta a confiabilidade da Bíblia?

Sendo mais direto: se queremos ler a Bíblia, então, alguém tem que fazer crítica textual. Essa realidade se aplica de modo mais abrangente também a qualquer livro escrito antes da imprensa moderna, quando começaram as reproduções exatas de obras em larga escala. Antes disso, tudo era copiado à mão, sendo muito mais fácil para que erros ocorressem no processo copista.

Então, quando alguém quer imprimir um livro da antiguidade (como o Novo Testamento Grego), como saber o que imprimir? Onde se acha uma cópia autêntica da Ilíada, de Homero, ou de A Guerra dos Judeus, de Josefo? Essas obras não existem em apenas um manuscrito, mas em vários manuscritos. Para complicar as coisas, nenhum manuscrito concorda exatamente com outro. Embora isso se aplique a todos os livros da antiguidade, para a Bíblia, muito mais coisa está em jogo. Então, se queremos ler hoje o Novo Testamento impresso, alguém tem que fazer crítica textual para poder encontrá-lo, traduzi-lo e imprimi-lo.

2. O que é crítica textual?

Então, o que exatamente é crítica textual? Como a fazer? Isso não significa que estejamos criticando o texto da Escritura. Crítica textual não tem nada inerentemente a ver com criticar a Bíblia. Ao invés disso, crítica textual significa pensar criticamente acerca dos manuscritos e variações nos textos bíblicos encontrado nesses manuscritos, a fim de identificar a leitura original da Bíblia.

Por exemplo, o que fazer quando encontramos diferenças em 1 Coríntios 13:3, nos manuscritos antigos? Alguns manuscritos gregos têm escrito “ainda que entregue o meu próprio corpo para ser queimado” (cf ESV; KJV), mas outros têm “ainda que entregue o meu próprio corpo para me gloriar” (cf CBS, NVI americana).[1] As traduções inglesas diferem porque estão traduzindo palavras gregas diferentes: alguns manuscritos têm a palavra para gloriar e outras incluem alguma forma de queimar. Os termos são semelhantes em grego e ambos fazem sentido no contexto. Mas qual palavra Paulo usou?

Essa é a tarefa da crítica textual, que usa métodos bastante refinados para testar leituras variantes (ou divergentes) que são encontradas nos manuscritos. O objetivo é encontrar a mais antiga — e mais precisa — leitura.

Como isso é feito? Não há apenas um único modo e há debates animados sobre o melhor modo de proceder, mas o método mais proeminente usado por eruditos do Novo Testamento é um processo multifacetado e eclético.

Primeiro, os próprios manuscritos são considerados. Isso é chamado de evidência externa. No exemplo de 1 Coríntios 13, a maioria dos manuscritos inclui alguma forma de queimar. Você pode pensar que encontrar o que a maioria dos manuscritos contém resolveria o assunto, mas não é assim tão simples. Nem todos os manuscritos são igualmente importantes. Algumas vezes, mais não é sempre melhor. A qualidade dos manuscritos importa mais do que a quantidade. Neste caso, a evidência dos manuscritos mais antigos, juntamente com vários manuscritos importantes que se provaram confiáveis de outros modos, apoia gloriar.

Segundo, o método eclético também olha para a evidência interna. Isso inclui o estilo normal de um autor bíblico e os tipos de erros que copistas posteriores comumente cometeram quando copiaram textos. No caso de 1 Coríntios 13:3, Paulo nunca menciona queimar em mais lugar nenhum, mas ele frequentemente fala de gloriar-se. Quando se trata de tendências copistas, podemos perguntar se as duas palavras em questão se parecem (sim, poderiam) e se elas poderiam ser facilmente confundidas por alguém copiando manuscritos (sim, poderiam).

Críticos textuais, portanto, chegam a conclusões ao fazer várias perguntas a fim de determinar qual opção é a mais provável em um dado cenário. Às vezes, não há resposta fácil e, às vezes, isso fica aparente nas diferenças entre traduções. Mas a boa notícia é que críticos textuais gostam de mostrar seu trabalho em edições críticas do Novo Testamento, dando ao leitor tanta informação quanto possível, a fim de que leitores interessados possam tirar suas próprias conclusões.

3. A crítica textual solapa a autoridade da Bíblia?

A crítica textual não solapa a inerrância, mas devemos lembrar que, falando estritamente, a inerrância se aplica aos autógrafos da Bíblia, não a todo e qualquer manuscrito da Bíblia já copiado por copistas, não apostólicos e não inspirados. Aqueles que copiaram a Bíblia na antiguidade eram pessoas como nós. Muitos deles eram copistas muito proficientes, que produziram manuscritos muito precisos. Mas, mesmo assim, nenhuma cópia é perfeita.

O Novo Testamento foi copiado por milhares de pessoas, em milhares de lugares, em dúzias de línguas. Embora isso possa complicar a crítica textual, essa diversidade é também uma bênção, já que não seria possível que uma única pessoa ou facção no mundo antigo pudesse conspirar para produzir uma escritura sem autenticidade. Onde coisas assim foram encontradas no mundo antigo, elas eram reconhecidas e rejeitadas.

4. Crítica textual e confiança no Novo Testamento

A significância das variações textuais do Novo Testamento tem sido frequentemente exagerada. Por exemplo, se alguém contasse o número de variantes em manuscritos do Novo Testamento, esse número seria maior do que o número total de versículos no Novo Testamento.

Isso, contudo, é bastante enganoso, pois não reflete o grau de confiança que deveríamos corretamente ter no Novo Testamento. Uma pergunta melhor não é “quantas variantes há?”, mas “quantos manuscritos temos?”. Onde temos muitos manuscritos, teremos muitas variantes, já que todo manuscrito tem suas próprias peculiaridades e tendências. Mas onde nós temos mais manuscritos, nós também temos um grau maior de certeza do que o texto originalmente dizia, já que temos testemunhas adicionais das quais nos valer. Nesse sentido, pode-se até mesmo dizer que, quanto mais variantes temos, melhor estamos, pois, quanto mais variantes temos, mais testemunhas temos do texto, daí, mais confiantes podemos ser.

A Confissão de Fé de Westminster 1.8 fala do “singular cuidado e providência” de Deus em preservar as Escrituras. Dado o número de cópias que temos do Novo Testamento Grego — mais de 5500 manuscritos em grego, que é muito mais do que qualquer outra obra do mundo antigo — a disciplina de crítica textual fornece ampla corroboração à Confissão de Westminster.

5. Confiança nas questões maiores

A crítica textual é frequentemente tida por entediante porque as questões parecem ser tão pequenas. É verdade que a maioria das diferenças são tão pequenas que elas nem mesmo aparecem nas traduções, mas muitos vêm à crítica textual por causa das questões maiores, como o final estendido do Evangelho de Marcos (Marcos 16:9–20), a mulher apanhada em adultério (João 7:53–8:11) ou a passagem trinitária de 1 João 5:7. Esses exemplos são excepcionais e, como tais, provam a regra de que a maioria esmagadora da maior partes das variantes são menores, mas nós ainda precisamos saber o que fazer com elas.

Usando Marcos 16:9–20 como um exemplo: deveríamos lê-lo como Escritura, já que ele tem sido aceito como tal há tanto tempo? Não deveríamos estimá-lo, já que a maioria das traduções modernas declaram que a passagem não é encontrada nos manuscritos mais antigos? Indo direto ao ponto: deveríamos pegar [venenosas] serpentes (Marcos 16:18)? Fique-se claro que essa é uma questão complicada, uma na qual os leitores podem discordar. Minha visão pessoal é que Marcos intencionalmente termina em 16:8, mas eu não posso fazer a defesa aqui. Ao invés disso, eu quero pontuar algumas poucas e, espero, encorajadoras coisas sobre como, mesmo as questões maiores podem nos trazer de volta à confiança no singular cuidado e providência de Deus.

Primeiro, a maioria das modernas traduções e edições acadêmicas do Novo Testamento Grego claramente mostram, no aparato crítico ou nas notas de rodapé, a evidência a favor e contra incluir determinada passagem. Isso é consistente com a prática de crítica textual, onde o objetivo não é o de esmagar alguma leitura particular ou de conspirar para esconder evidência. A evidência é exibida para que todas a possam ver e avaliar.

Segundo, ninguém poderia inventar ou apagar uma determinada leitura a seu bel prazer. Temos testemunhas demais do Novo Testamento para que qualquer coisa seja incluída ou retirada clandestinamente. Mesmo onde temos perguntas não respondidas, há pouquíssima dúvida quanto às nossas opções.

Terceiro, mesmo nos lugares onde permanecemos na incerteza, nenhuma doutrina significante depende de crítica textual.[2] A Trindade não depende de nenhuma leitura particular de 1 João 5:7, assim como a autoridade de Jesus de perdoar pecados não depende da inclusão da mulher apanhada em adultério. Essas doutrinas estão manifestadamente claras por todo o Novo Testamento.

A crítica textual é um campo amplamente debatido. Indubitavelmente, alguns leitores podem ter opiniões divergentes nesses assuntos. Não obstante, o panorama geral é um de estabilidade textual geral e muito poucos assuntos não resolvidos.

Temos uma riqueza de manuscritos dos quais nos valer e apoiamo-nos sobre os ombros daqueles que passaram suas vidas estudando manuscritos e refinando os métodos de crítica textual. Nossas edições modernas e extremamente precisas do Novo Testamento são possíveis por causa dos labores de muitas pessoas sobre as quais você talvez jamais saiba. Quer você perceba isso ou não, você está provavelmente usando os frutos da crítica textual todo dia.

[1] N. do T.: As principais traduções portuguesas todas apresentam alguma variante de queimar: NVI brasileira, ACF, ACR, ACR 1969, ARA, NAA, NTLH, NVT, BJ, O Livro, Versão Católica, Sociedade Bíblica Britânica, Tradução Brasileira, Almeida 21. O autor esposa a leitura favorecida pela edição da Sociedades Bíblicas Unidas. Para entender por que se opta pela leitura de gloriar, verificar o aparato crítico presente no NTG5 e no NA28.

[2] Ver Andreas J. Köstenberger e Michael J. Kruger, The Heresy of Orthodoxy: How Contemporary Culture’s Fascination with Diversity has Reshaped our Understanding of Early Christianity (Wheaton: Crossway, 2010), cap. 8.

Brandon D. Crowe (Ph.D., Universidade de Edimburgo) é professor associado de Novo Testamento no Westminster Theological Seminary, na Filadélfia, onde ele ensina desde 2009. Ele é o autor de O último Adão: Uma teologia da vida obediente de Jesus nos Evangelhos (no Brasil, publicado pela Editora Monergismo), de The Hope of Israel: The Resurrection of Christ in the Acts of the Apostles (Baker Academic) e Every Day Matters: A Biblical Approach to Productivity (Lexham Press).

--

--