O Batismo Herético

Philip Schaff

Absalão Marques
Instituto Aletheia
6 min readJun 19, 2020

--

LITERATURA

Sobre o Batismo Herético, cf. Eusébio: H. E. VII, 3–5; Cipriano: Epist. LXX-LXXVI; Os Atos dos Concílios de Cartago, 255 e 256 A.D., e o folheto anônimo, De Rebaptismate, entre as obras de Cipriano, e em Routh: Reliquiæ Sacræ, vol. V, 283–328.

Hefele: Conciliengeschichte, I, 117–132 (2ª ed.)

G. E. Steitz: Ketzertaufe, em Herzog, edição revisada, VII, 652–661.

O batismo herético foi, no século III, um assunto de violenta controvérsia, importante também por sua relação com a questão da autoridade da Sé Romana.

Cipriano, cujas Epístolas proporcionam a mais clara informação sobre este assunto, seguia Tertuliano [1] ao rejeitar o batismo realizado por hereges como sendo um arremedo inoperante do batismo, exigindo que todos os hereges que se dirigiam à Igreja Católica fossem batizados (ele não diria rebatizados). Sua posição aqui devia-se à sua exclusividade própria da Alta Igreja e ao seu horror ao cisma. Uma vez que a Una Igreja Católica é o único repositório de toda a graça, não pode haver perdão de pecados, nem regeneração ou transmissão do Espírito, nem salvação, e, portanto, nem sacramentos válidos, fora do seu seio. Até então, tinha a consistência lógica ao seu lado. Todavia, por outro lado, ele se afastava da visão objetiva da igreja, como fizeram mais tarde os donatistas, fazendo a eficácia do sacramento depender da santidade subjetiva do sacerdote. “Como pode consagrar a água”, indaga ele, “aquele que é, ele mesmo, profano, e não tem o Espírito Santo?” Ele foi seguido pela igreja do Norte da África, que, em vários concílios em Cartago nos anos 255–6, rejeitou o batismo herético; e pela igreja da Ásia Menor, que já agia com base nessa visão, e agora, na pessoa do bispo capadócio Firmiliano, um discípulo e admirador do grande Orígenes, defendia-a vigorosamente contra Roma, usando um linguajar que é completamente inconsistente com as reivindicações do papado. [2]

Ícone de São Cipriano, St John the Baptist Orthodox Church, Warren OH

O bispo romano Estêvão (253–257) levantou-se em favor da doutrina contrária, fundamentada na antiga prática de sua igreja. [3] Ele não ofereceu argumento algum; antes, falou com consciência de autoridade, seguindo um instinto católico. Pôs a principal ênfase na natureza objetiva do sacramento, cuja eficácia não dependia nem do sacerdote oficiante nem do receptor, mas unicamente da instituição de Cristo. Por isso ele considerou válido o batismo herético, desde que apenas fosse administrado com a intenção de batizar e na forma correta, a saber, no nome da Trindade ou mesmo de Cristo somente; de modo que os hereges que se dirigiam à Igreja necessitavam apenas da confirmação ou da ratificação do batismo pelo Espírito Santo. “A heresia”, disse ele, “gera filhos e os desampara; e a Igreja assume os filhos desamparados e amamenta-os como se fossem os seus próprios, conquanto ela mesma não os tenha dado à luz”.

A doutrina de Cipriano era a mais consistente do ponto de vista hierárquico; a de Estêvão, do sacramental. A primeira era mais lógica; a segunda, mais prática e caridosa. Uma preservava o princípio da exclusividade da igreja; a outra, o da força objetiva do sacramento, mesmo nos limites da teoria opus operatum. Ambas estavam sob a direção do mesmo espírito eclesial e da mesma aversão aos hereges; mas a doutrina romana, afinal, é uma feliz inconsistência de liberalidade, um avanço quanto ao princípio da exclusividade absoluta, uma concessão involuntária de que o batismo, e com ele, a remissão do pecado e a regeneração, portanto, a salvação, são possíveis fora do Catolicismo Romano. [4]

A controvérsia em si foi conduzida com grande efervescência. Estêvão, mesmo que defendendo a visão liberal, [5] demonstrou a genuína arrogância e intolerância papal. Nem sequer haveria de receber em sua presença os delegados de Cipriano, que lhe trouxeram o decreto do sínodo africano, e chamou a este bispo, que em todos os sentidos sobrepujava Estêvão, e a quem a Igreja Romana hoje venera como um dos seus maiores santos, um falso Cristo e falso apóstolo. [6] Ele rompeu todas as relações com a Igreja Africana, como já havia feito com a Asiática. Porém, Cipriano e Firmiliano, nem um pouco intimidados, vindicaram com grande ousadia, este último também com amarga veemência, sua visão diferente, persistindo nela até à morte. O bispo alexandrino Dionísio empenhou-se por reconciliar os dois partidos, mas com pouco sucesso. A perseguição valeriana, que logo se seguiu, e o martírio de Estêvão (257) e de Cipriano (258), suprimiram esta discórdia interna.

No decorrer do século IV, contudo, a teoria romana gradativamente prevaleceu a outra; recebeu a sanção do Concílio Ecumênico de Niceia em 325; foi adotada no Norte da África durante as controvérsias donatistas, por um Sínodo de Cartago, em 348, defendida pela poderosa dialética de Sto. Agostinho contra os donatistas; e foi, mais tarde, confirmada pelo Concílio de Trento com um anátema sobre a visão contrária.

OBSERVAÇÃO

O Concílio de Trento declara (Sessio Sept., 3 de março de 1547, cânone 4): “Se alguém diz que o batismo, que é dado mesmo pelos hereges em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, com a intenção de fazer o que faz a Igreja, não é o verdadeiro batismo: que seja anátema”. A Igreja Grega semelhantemente proíbe a repetição do batismo que foi realizado em nome da Santíssima Trindade, mas exige imersão trina. Ver a Orthodox Conf. Quaest. CII (Schaff: Creeds, II.372), e o Russian Catechism (II.493), que diz: “O batismo é um nascimento espiritual: um homem nasce uma só vez; portanto, é batizado também uma só vez”. Entretanto, o mesmo Catecismo declara que a “imersão trina” é “a mais essencial na administração do batismo” (II.491).

Baptism, Nicolas Poussin

A Igreja Romana, seguindo o ensino de Sto. Agostinho, baseia na validade do batismo herético e cismático até mesmo uma certa reivindicação legal sobre todas as pessoas batizadas, como que pertencendo virtualmente à sua comunhão, e um direito à conversão forçosa de hereges sob circunstâncias favoráveis. [7] No entanto, visto que pode haver alguma dúvida sobre a forma ortodoxa e a intenção do batismo herético na mente do convertido (e.g. se ele for um unitarista), a mesma igreja permite um rebatismo condicional com a fórmula: “Se tu ainda não és batizado, eu te batizo”, etc.

Os credos evangélicos ligam seu reconhecimento do batismo católico romano, ou de qualquer outro batismo cristão, não à teoria da eficácia objetiva do sacramento, mas a uma concepção mais abrangente e liberal da Igreja. Onde Cristo está, aí estão a Igreja e as verdadeiras ordenanças. Apenas os batistas, entre os protestantes, negam a validade de qualquer outro batismo que não por imersão (neste sentido, assemelhando-se à Igreja Grega), mas estão demasiado longe, por esse motivo, de negar o status cristão de outras denominações, uma vez que o batismo para eles é apenas um sinal (não um meio) da regeneração ou conversão, que precede o rito e é independente dele.

_________________________________

[1] De Bapt. Cap. 15. Cf. também Clemente de Alexandria, Strom. I.375.

[2] Ver p. 162. Alguns teólogos romanos (Molkenkuhr e Tizzani, como são citados por Hefele, p. 121) pensaram que uma Epístola tão irreverente com a de Firmiliano (nº 75 entre as Epístolas de Cipriano) não pode ser histórica, e que toda a história da controvérsia entre o Papa Estêvão e S. Cipriano deve ser uma fabricação! Dogma versus fatos.

[3] Segundo Hipólito (Philosoph.), o rebatismo de hereges era desconhecido antes de Calisto, 218–223 A. D. Cipriano não nega a antiguidade do costume romano, mas pleiteia que a verdade é melhor do que o costume (“quasi consuetudo major sit veritate”), Hefele, I, p. 121. As Epístolas de Estêvão estão perdidas, e precisamos nos inteirar de sua posição em seus oponentes.

[4] A menos que se defenda que a graça batismal, se recebida fora da comunhão católica, é inútil, mas, ao contrário, apenas avulta a culpa (como o conhecimento do pagão) e torna-se disponível apenas pela conversão subjetiva e confirmação regular do herege. Esta era a visão de Agostinho; ver Steitz, l.c., p. 655, segs.

[5] Schaff usa a palavra frequentemente em um sentido menos comum para o uso que se faz hoje — amiúde imbuído de valor político ou pejorativo — , remetendo à liberalidade, isto, a generosidade, indulgência ou largueza que caracteriza o “espírito católico” [N. do T.].

[6] “Pseudochristum, pseudoapostolum, et dolosum operarium”. Firmiliano, Ad Cyp., no final (Ep. 75). Hefele (I.120) chama esta intolerância não cristã de Estêvão, muito brandamente, de “eine grosse Unfreundlichkeit”.

[7] Agostinho, pois, interpretou mal o “Coge intrare”, Lucas 14.22, 23, como se justificando a perseguição (Ep. ad Bonifac., cap. 6). Se o santo bispo de Hipona houvesse previsto as terríveis consequências de sua exegese, tê-la-ia repelido com horror.

Texto extraído e traduzido de History of the Christian Church, vol. II., págs. 262–265.

--

--