A inominável tortura da arte (ou: A proposopeia e a presepada)

Thiago Cazarim
Instituto LGBT+
Published in
7 min readSep 27, 2018
Fotos por @ronaldocreative

“Since education about contemporary art is abysmal in this country, most citizens — well-educated liberals included — know very little about many forms of the art discussed above. Moreover, tastes differ. Some liberals like morally correct liberal art and find it uplifting; others hate it as being crass. Some simply like art to be beautiful or pleasurable. But only a small minority of liberals are educated as to most of the forms of contemporary art listed above. As a result, most liberals do not know or care enough to defend it from conservative attack.”

[Uma vez que a formação a respeito da arte contemporânea é terrível neste país, muitos cidadãos — incluindo progressistas bem formados — sabem muito pouco sobre muitas das formas de arte discutidas anteriormente. Alguns liberais gostam de arte moralmente correta e a acham edificante; outros a odeiam como se fosse grosseira. Alguns simplesmente desejam que a arte seja bela ou prazerosa. Mas apenas uma pequena minoria de progressistas tem formação sobre a maioria das formas de arte contemporânea listadas acima. Consequentemente, muitos progressistas não sabem ou não se importam o suficiente em defendê-la de ataques conservadores.]

George Lakoff, “Moral politics: how liberals and conservatives think”, p. 237–238.

Em 25 de setembro de 2018, por meio de sua conta no Twitter, o vereador Carlos Bolsonaro (PSL-RJ) compartilhou a seguinte imagem:

Reprodução (redes sociais)

No dia seguinte, uma enxurrada de críticas e repúdios contra a publicação do referido Bolsofilho tomou conta da internet, sob a alegação de que se deu uma apologia da tortura. Por um lado, a correta e inquestionável necessidade de contestar qualquer mínima defesa da tortura demoliu a retórica inabalável do clã Bolsonaro de que Jair, o pai da famiglia, jamais pregou ódio contra pessoas LGBT. Por outro lado, a forma como parcela esmagadora da mídia e setores progressistas reagiram à postagem revelou, mais uma vez, a delicada situação das artes no Brasil na medida em que alegações de que a imagem, e não simplesmente o vereador-Bolsonaro, fazia apologia da tortura.

O imbróglio é digno de nota e possui diversas camadas a serem exploradas. A primeira delas diz respeito a um truque dissimulado pelo Bolsofilho. Na verdade, a imagem veiculada por ele é reapropriação de uma imagem (ao que tudo indica) originalmente criada por um usuário do Instagram identificado como Ronaldo Creative. A imagem original parece ter sido produzida com o objetivo de denunciar situações de tortura sofridas por pessoas LGBT e ajudar a encorpar o movimento #EleNão, que convocou grandes atos de rua no Brasil em oposição à candidatura presidencial de Jair Bolsonaro:

Reprodução (redes sociais)

Vê-se facilmente que tipo de intervenção Bolsojúnior propagou. Com uma criatividade mais óbvia que as “entradas” que Carlos ostenta na cabeça, sem profundidade criativa além de inserir uma caixa de texto com alguns parcos dizeres, o responsável pela modificação da imagem acima transforma um protesto contra violência em… Em quê? Aqui começa o problema.

A atualização (via intervenção textual num suporte imagético) da imagem do perfil Ronaldo Creative, que o Estadão informa ter sido primeiramente disseminada pelo usuário @DIREITAPVH, pode ser lida como uma “descontextualização” ou, como prefiro, uma contextualização de uma imagem. Não se trata de um jogo inocente de ressignificação, como já deve ter ficado evidente; afinal, uma denúncia é desqualificada, desidratada, esvaziada completamente para dar vazão a um discurso conservador sobre a violência contra grupos vulneráveis. Estamos lidando, portanto, com uma ideia de linguagem e de significação que é da ordem do uso, da aplicação, da prática, da dinâmica da circulação e apropriação dos textos. A semântica do texto não é senão o resultado de uma pragmática — ainda que, no caso concreto em questão, seja uma pragmática nefasta.

Se o sentido é resultado de um contexto de uso, vale notar também que aquilo que chamamos de contexto pode ou não estar limitado a um uso particular de um enunciado ou englobar uma série de usos e enunciados. Considerando o histórico notório, inequívoco, de pronunciamentos homofóbicos e violentos da famiglia Bolsonaro, faz sentido interpretar a “releitura” postada pelo vereador como apologia da tortura contra pessoas LGBT. Mas, atrelada à mesma série de discursos que prega abertamente a restrição de liberdades e seguranças para LGBTs, há outra série de discursos, mais genérica (embora igualmente danosa), comum aos Bolsonaros: aquela que trabalha no registro do envergonhamento e da culpabilização de LGBTs por problemas familiares e sociais. Nesse caso, o sentido dos dizeres “Sobre pais que choram no chuveiro!” pode fazer a tortura apresentada na fotografia ser lida tanto quanto uma punição concreta devida quanto a apresentação genérica do conflito interno de pais com suas homofobias enquanto culpa de pessoas que são as reais vítimas de violência e sofrimento.

Mesmo para um sujeito raso como Carlos Bolsonaro — na verdade, qualquer um dos Bolsonaros — , a veiculação de uma imagem, sua contextualização, dificilmente resulta em monossemia. É evidente que os dois sentidos aqui expostos não se excluem; aliás, tratando de quem se trata, os dois sentidos se requerem, eles partilham de um lugar comum que é o lugar-comum dos estigmas homofóbicos. Mas é importante ter em vista que o próprio calhorda tem noção da ambiguidade de sua publicação e que, pior ainda, sabe que pode jogar com a ambivalência de sentidos da imagem que divulgou. Bolsonaro sabe que pode trabalhar seus enunciados violentos como ironias — e sabe que disso porque dá a ver que o sentido é sempre passível de escapar ou “ser escapado” por uma contextualização nova que evite cristalizá-lo. Não em vão, após a péssima repercussão de seu post, Carlos Bolsonaro tuitou o seguinte: “Novamente inventam como se eu tivesse divulgado uma foto dizendo que quem escreve a hashtag #elenao mereceria alguma maldade. Não, canalhas! Foi apenas a replicação da foto de alguém que considera isso uma arte. Me agradeçam por divulgar e não mintam como sempre! Segue a verdade: [compartilhamento da imagem original de Ronaldo Creative]”.

Certamente, o recuo visa duplamente blindar o discurso eleitoreiro de que Jair Bolsonaro não odeia gays e evitar um processo criminal por apologia da tortura. O cinismo, o oportunismo e a perversidade do dito cujo são flagrantes, mas é flagrante também que o mesmo procedimento de contextualização crítica do post de Bolsonaro resulte numa criminalização de um manifesto imagético. Em parte, isso foi fomentado pela forma de repercussão da imprensa. O alarde contra a arte foi criado por uma forma de contextualização genérica da imagem original que, tanto quanto a apropriação canalha de Carlos Bolsonaro, esvazia o sentido de denúncia inicialmente proposto. Algumas manchetes não deixam dúvidas quanto a isso:

Estadão: “Filho de Bolsonaro divulga foto com simulação de tortura em rede social”

Veja: “Carlos Bolsonaro posta imagem de ativista que simula tortura”

Correio Braziliense: “Carlos Bolsonaro é envolvido em polêmica com foto alusiva à tortura”

A celeuma se instaura porque a imagem faz ver uma cena de tortura. A imagem, pelo puro ato de se fazer vista e de dar a ver algo, subitamente é convertida de vítima de um abuso em personagem e autora de um crime:

Reprodução (Twitter)

Essa contextualização prosopopaica da imagem tem por efeito imediato e paradoxal a criação de si como mídia cujo sentido está além de qualquer contextualização. A imagem, feita personagem criminosa, agora possui sentido em si, ela porta em si mesma, por si mesma, a mensagem apologética da tortura. O conteúdo imagético, submetido ao regime do genérico, contextualizado como que fora de qualquer contexto, passa a fazer da imagem crime e criminosa. Apresentar uma simulação de tortura, mais que uma peça numa engrenagem cínica, é em si mesmo algo criminoso.

Não é preciso utilizar este raciocínio para relativizar a ação de Carlos Bolsonaro. Contextualizado, avaliado pela série de enunciados que compõem sua persona pública, o tweet não dá margem para especulações sobre más interpretações ou reações exageradas. Não há exagero em repudiar duramente um sujeito homofóbico que se vale de uma campanha progressista para veicular valores retrógrados e violentos. Porém, esse repúdio não pode se dar às custas daquilo que sustenta toda arte: sua polissemia, seu poder de dar a ver (ouvir, ler etc.) sem produzir consequências diretas no mundo. Há um grau de reserva que torna possível que uma imagem simule uma tortura sem precisar realizar ou resultar em uma real. Dar a ver uma tortura simulada, ficcional, não é crime, embora incitar a realizá-la ou efetivamente praticá-la o sejam.

Esse é um ponto crucial. A agenda dos Bolsonaros não se baseia apenas na violência aberta, mas também em formas de violência mais sutis, embora igualmente nefastas. Carlos Bolsonaro é um sujeito tanto capaz de defender que pais apliquem surras em filhos supostamente gays para “endireitá-los” quanto aquele que usa genericamente imagens artísticas para promover seu conservadorismo. É esse genérico violento, que demoniza a arte e a envia ao campo do proscrito — inclusive do criminalmente proscrito — que está na base de todas as investidas dos Bolsonaros contra a expressão artística. Quando tuíta que “alguém […] considera isso como arte”, Bolsonaro literalmente trata a arte no genérico, como “isso”, como algo que nem nome tem. Bolsonaro faz apologia da tortura, mas também violenta a arte desqualificando-a como sem nome. Como inominável.

Contextualizando a arte genericamente, enviando-a ao campo do que deve ser proscrito, o projeto político dos Bolsonaros pode vir a progredir. Resta pensar se são apenas eles e seus simpatizantes os possíveis responsáveis pelo avanço das pautas que defendem.

Thiago Cazarim é professor do Instituto Federal de Goiás, bacharel em Música, mestre em Filosofia e doutorando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais (Faculdade de Ciências Sociais/UFG). Como pesquisador e crítico cultural investiga políticas e poéticas culturais contemporâneas. Tem tentado se afastar das polêmicas da moda e de textões de facebook, mas a urgência do mundo não deixa.

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Thiago Cazarim
Instituto LGBT+

Professor do Instituto Federal de Goiás. Bacharel em Música, Mestre em Filosofia, Doutor em Performances Culturais.