Colagem e Memória LGBT+

Mari Velasco
Instituto LGBT+
Published in
9 min readJun 28, 2018

Acreditava ter passado minha vida fora do armário. Na minha adolescência, não tive conflitos internos ao me perceber atraída por meninas, e meu único grande sofrimento foi a dificuldade de aceitação por parte dos meus pais. Achava que era totalmente out, nunca escondi minha sexualidade no trabalho nem em minha vida social. No entanto, a retomada ao meu desenvolvimento e processo artístico me trouxe um choque tremendo: há anos andava presa no armário de outras pessoas!

Na Universidade, já havia desenvolvido uma pesquisa sobre cinema, homossexualidade e produção de subjetividade, porém percebi que na minha arte não ousava abordar o assunto. Qual a diferença? Quando fazemos arte e expomos, nosso trabalho vai para o mundo, deixa a esfera do privado, fura a nossa bolha. Minha arte, quem sabe, tem o poder de tirar minha família do armário. Aquela tiazinha conservadora que ainda pensa que sou apenas um bicho do mato sem namorado vai acabar sabendo… Fora da minha bolha, não tenho controle algum.

Essa revelação, apesar de parecer óbvia para muitos, fez com que decidisse tomar uma atitude consciente em relação ao conteúdo do meu trabalho artístico. Fazer arte lésbica, gay, sapatão, queer, é falar de identidade, é trazer experiências e narrativas pessoais para o campo da memória coletiva, da memória LGBT+. O privado é sim político, e essa ideia começou a me mover.

Amar Sem Temer, 2017 (Lado A e Lado B)

Quando bateu a crise de meia idade, há cerca de três anos, decidi dar um tempo no meu trabalho burocrático. Fui para Berlim fazer uma residência artística, voltei a pintar, a desenhar, a fazer colagem — algo que a vida de servidora pública havia sufocado quase por completo. No entanto, somente na volta a Brasília, durante minha participação nos laboratórios criativos da Nave, comecei a ter um pensamento mais crítico sobre o que produzia e sobre o que queria realmente expressar. Já bastante mais amadurecida e num momento político que me impulsionava a fazer arte queer, de resistência, decidi me inscrever para uma nova residência artística. Em junho de 2017, fui para Madri ser residente na R.A.R.O.

Nesse momento, explorava cada vez mais a técnica da colagem e da assemblagem, pois trabalhar com reorganização de fragmentos, apropriação e recontextualização servia bem aos meus propósitos. Por meio da incorporação de objetos, documentos e material gráfico, crio novas formas de compreensão, ressignificando, dessa forma, sujeito e história. Meu projeto de residência artística consistiu em utilizar materiais encontrados em paradas LGBT+ para tratar de memória e identidade. O fato de que, em 2017, a “Parada Mundial do Orgulho” (World Pride), seria celebrada em Madri influenciou a escolha da cidade de residência. Madri também era uma cidade onde já havia morado e tido contato com um ativismo LGBT+ bastante forte. Minha intenção era recolher o material encontrado e analisá-lo, deixando que o próprio “lixo” me desse as indicações de como trabalhar. Os objetos estão carregados de sentido, de passado, carregando vestígios de toques, olhares, odores. Também revelam o não dito e o que poderia ter sido.

Anúncio oficial do World Pride Madrid 2017

Duas semanas antes de minha viagem, iniciei minha pesquisa na 21a Parada LGBT de São Paulo, a maior da América Latina e, ouso dizer, do mundo. Junto com Bruna, minha namorada e apoio para todas as horas, participei da manifestação com outro olhar, literalmente. Enquanto todos dançavam e protestavam (tudo assim ao mesmo tempo), nós percorremos a Paulista olhando para o chão, recolhendo o que havia ficado para trás, caído ou esquecido. Folhetos políticos, anúncios de festas pós parada, adesivos, balões estourados, confete, pedaços de banners confeccionados à mão e plumas, muitas plumas. Porém, o que mais nos chamou a atenção foi a publicidade. Grandes marcas haviam se apoderado de nosso arco-íris, e ficou bem claro que o consumo propicia uma falsa ideia de aceitação. Pacotes de Doritos Rainbow eram distribuídos, cabeças circulavam com coroas de arco-íris do Burger King, o Starbucks içava a nossa bandeira e empresas de táxi ofereciam descontos com o código Pride. Juntamos tanto material que foram necessárias algumas voltas ao hotel para esvaziar a sacola e continuar. No final, encontramos uma pequena sandália de plástico deixada para trás, no meio fio, por alguma criança cinderela viada.

Sapatilha encontrada na Parada LGBT+ de São Paulo

Todo esse material foi levado em minha mala para Madri. Cheguei na cidade do dia 28 de junho, há exatamente um ano, no dia mundial de comemoração do Orgulho, e fui para uma manifestação alternativa que iria acontecer em Lavapiés, o “bairro dos imigrantes” que abriga, hoje em dia, muitos coletivos e estabelecimentos LGBT+ que desafiam o mainstream. Essa manifestação se denomina “Orgullo Crítico” e tem um caráter totalmente político. Protestavam, principalmente, contra a comercialização do orgulho e criticavam a manifestação oficial, que consideravam “vendida”. Em sintonia com a ideologia dos participantes, pouquíssimo lixo foi produzido e pouco material recolhi, porém algumas de minhas impressões durante a Parada de São Paulo haviam sido reforçadas. Outro aspecto marcante foi que nessa manifestação as mulheres (lésbicas, bi, trans) estavam muito mais presentes e visíveis.

Orgullo Crítico Madrid 2017

Apesar de a questão do consumo ser evidente para mim, devo dizer que nunca havia tido uma sensação de inclusão como naquela semana em Madri. Não era apenas uma avenida que havia se “tornado gay”, era a cidade inteira. Ônibus haviam sido envelopados com publicidade contra a homofobia, semáforos haviam sido trocados para incluir imagens de casais homoafetivos cruzando as ruas, as escadarias do metrô haviam sido pintadas de arco-íris e, em cada esquina, havia centros culturais e cinemas com mostras sobre diversidade. O Prado, um dos maiores museus do mundo, realizava uma exposição queer. Casais hétero, em grande número, se misturavam a casais LGBT+, de várias partes do mundo, nas festividades e manifestações. Senti um privilégio enorme e muita gratidão por poder estar ali. As histórias pessoais de uma comunidade internacional se uniam para criar um evento histórico.

Plaza Cibeles e Prefeitura de Madrid ao fundo

Logo no início da manifestação oficial, no dia 1 de julho, foi possível juntar muito material, quase todo político, e conversar com participantes. Um senhor de mais de 70 anos distribuía panfletos que consistiam em fotocópias com os dizeres “GAY O.K.”. Grupos BDSM desfilavam, e uma criança interrompia uma encenação de dog play para tirar foto com um homem que usava máscara de cachorro, como se estivesse com o Pluto na Disney. Drag queens competiam no quesito criatividade e originalidade. Estadounidenses protestavam contra o governo Trump, venezuelanos protestavam contra o governo de Maduro. Havia muita diversidade, mas me incomodou e chamou a atenção a pouquíssima visibilidade e presença das mulheres num evento tão grande e internacional. Tudo isso logo deu lugar aos trios elétricos que, tal como em São Paulo, eram ocupados pelas grandes marcas. Voltei a ver as coroas do Burger King, o Starbucks, as empresas de taxi, as marcas de bebidas, a Levis, todas pintadas de arco-íris.

À esquerda, manifestante. À direita, Gay O.K., 2017 (série World Pride 2017)

Comecei o meu trabalho no estúdio La Nevera desejando criar uma obra sobre a questão do consumo. Usando como suporte uma enorme base de madeira de cama de casal que havia encontrado abandonada junto às lixeiras da praça Nelson Mandela, iniciei meu trabalho com colagem, pintura e desenho. Trabalhando sempre com a poética do que é descartado, acabei por fazer uma crítica à questão da aceitação por meio do consumo. Assim, foi surgindo a imagem de um homem gay, branco, de classe média alta, usando jeans apertados da Levis e uma coroa do Burger King enquanto tem uma ejaculação exagerada e desproporcional. Tentei incorporar as marcas por meio de camadas, usando pinceladas agressivas, num processo constante de construção e destruição. Colagem e descolagem.

Pink money, 2017. Plaza Nelson Mandela, Madrid

Minha inspiração surge, em grande em parte, das ruas de grandes centros urbanos, onde vemos, por exemplo, muros onde cartazes são colados uns em cima dos outros, criando blocos de camadas que, eventualmente, são rasgadas e arrancadas, revelando outras que estavam por detrás. Isso, para mim, era uma grande metáfora para a questão LGBT+: arrancar a superfície e revelar, trazer à luz, dar visibilidade, mostrar complexidade, profundidade. Ao trabalhar no estúdio do Basurama, um incrível coletivo de Madrid que trabalha a questão do lixo, tive a oportunidade de, junto com um de seus integrantes, fazer uma visita pelo bairro, analisando o lixo produzido e as intervenções (artísticas ou não) em muros e portas de garagem.

Inspiração: camadas de material gráfico coladas em muro da cidade

Trabalhei bastante com os folhetos e banners políticos, tanto brasileiros quanto espanhóis, que havia acumulado e explorei, como suporte, o uso de papelão de caixas que encontrava nas ruas. Como quase não havia material relacionado a lésbicas e a mulheres em geral, também criei uma obra onde, literalmente, cavei e forcei o aparecimento da palavra “lésbica” em um trabalho com papelão. Na manifestação LGBT+ de Barcelona, onde também estive presente, coletei materiais em catalão e criei uma bandeira trans usando um pedaço de tela que protegia uma área urbana em construção.

Amar Sem Temer, 2017. Galeria Rizoma. Foto: R.A.R.O Madrid

A residência artística culminou em uma exposição na galeria Rizoma, onde tive a oportunidade de expor meus trabalhos e a felicidade em ver o espaço lotado de amigos, artistas, curiosos e moradores do bairro visitando o local e emitindo suas opiniões e impressões. Alguns dias depois da abertura, no mesmo espaço, ofereci uma oficina de colagem na qual foi criada uma obra coletiva com os materiais que havia acumulado e não utilizado em meus trabalhos. Na volta a Brasília, ofereci uma nova oficina na Casa da Cultura da América Latina, pelo Instituto Cultura Arte Memória LGBT+, ainda com sobras do que foi coletado na viagem. Encontramos mais material durante um passeio pelo setor comercial sul — local de grande importância para a memória LGBT+ brasiliense, e adicionamos aos que já havia trazido.

(Eu sou uma) Lésbica, 2017

No final da estada em Madri, uma de minhas obras foi doada para a residência R.A.R.O, e as demais voltaram comigo. No entanto, tive que deixar para trás a obra “Pink Money”, onde fazia uma crítica à aceitação pelo consumo, devido a seu tamanho e peso. Acabei decidindo-me por levá-la de volta à praça Nelson Mandela — núcleo do “Orgullo Crítico” e local onde havia encontrado o suporte utilizado — e realizei, assim, minha primeira intervenção urbana. Novamente com a ajuda da Bruna, fui carregando a enorme obra da galeria à praça — cada uma segurando de uma ponta — e, nesse curto espaço de tempo, tive uma das minhas maiores alegrias. Inúmeros transeuntes paravam para olhar e perguntar sobre o trabalho. Um morador, do alto de um prédio, gritou para chamar nossa atenção e fazer comentários, dividindo conosco sua empolgação pelas artes plásticas.

Crianças que brincavam nas ruas e andavam de bicicleta indagavam sobre a obra e, espontaneamente, nos contavam que também gostavam de pintar e desenhar. Uma delas exclamou para as demais, que brincavam no parquinho: “olhem só, aquele é o quadro da liberdade!”.

Mari Velasco é artista visual, nasceu no Rio de Janeiro, mas adotou a tortuosidade do cerrado brasiliense. Investiga fragmentos da memória, circulações de sentidos e afetos LGBT+ em contextos globais e experimenta a colagem como exercício criativo de inquirição e co-criação da realidade. É diretora do Instituto Cultura Arte Memória LGBT+.

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