Inês Brasil e o bezerro de ouro

Thiago Cazarim
Instituto LGBT+
Published in
7 min readJul 16, 2018

A ironia profunda

Agosto de 2017. Quiproquó do momento: Inês Brasil; Jair Bolsonaro; fotos e vídeo de improviso no aeroporto de Viracopos. Ingredientes clássicos de qualquer treta sazonal de Facebook. Acrescidos, claro, das sentinelas virtuais — aquelas franco-atiradoras do lacre, velocíssimas no gatilho dos caracteres inflamados e memes debochados.

Resultado: Inês Brasil foi expulsa do Vale dos Homossexuais. Seguidamente expulsa do Vale. Por mais que tenha tentado se explicar e, no vídeo gravado com Bolsonaro, seja possível vê-la tentando reverter as posições abjetas do deputado convocando-o para saudar a comunidade LGBT. Por mais que, por ironia, tenha sempre afirmado que, todos sendo filhos de Deus, merecem amor, e não ódio — ironia gritante com as posições obscurantistas de Bolsonaro. Expulsa do Vale, mesmo também vítima de um oportunista que vive de explorar a imagem alheia para fazer crescer a própria. Inês Brasil, expulsa do Vale, apesar de, talvez, nunca ter quisto ou feito nada para pertencer a ele…

O léxico da treta é sempre instrutivo. O Vale: esse Eldorado, terra mítica em que se fala a linguagem dos unicórnios (os gifs) e tobogãs de arco-íris deságuam em rios de purpurina. Uma grande pool party radicalmente seletiva na qual ser, dizer e fazer sempre devem se corresponder. Daí, por exemplo, a insistência no lacre. Lacrar, não apenas como sinônimo de tombar, de afirmar-se como bicha-a-senhora-é-destruidora-mesmo; lacrar como cerrar, fechar, preencher qualquer distância ilícita entre aquilo que se diz, faz e é. Lacrar, intransitivo ou transitivo: alguém lacrou num choque de monstro; as brechas de alguém foram lacradas — definitivamente lacradas — pela lacração alheia.

À tentativa de Inês Brasil pode-se acusar de muitas coisas. De ingenuidade. De inconsistência. De inutilidade. De ineficácia. A única coisa que não se pode imputar a elas — à ação, mas, sobretudo, à Inês Brasil — é um pedido de coerência. Se a tática de tentar constranger Bolsonaro a recuar em seus ataques LGBTfóbicos se mostrou malfadada, deve-se ao menos reconhecer que Inês Brasil opera, e não somente nesse episódio, no registro da ironia. Que, por definição, prescinde de coerência. Prescindem de coerência: Inês Brasil e a ironia. Inês Brasil não é apenas uma celebridade imprevista, uma mulher sofrida cuja imagem foi explorada redobradamente por uma fama internética entre seguidores gays brasileiros. Inês Brasil é a ironia de uma mulher negra, aparentemente sem muito capital cultural, tornando-se ícone cult. É a ironia profunda de um Brasil que em tese nunca deu muito certo — mas que, de rompante, aparece ao vivo falando alemão na TV.

Reprodução/Facebook

serdizerfazer

O lacre lacra. Polemicamente, cerra as distâncias, encerra o debate. Fossiliza. Torna sem intervalo, sem contradição, sem escape. O lacre lacra: fecha hermeticamente.

As guerras internéticas em torno de polêmicas sazonais têm a estrutura do lacre. Ou seja, consistem em converter sujeitos em ícones — avatares, se assim se preferir — classificáveis, vigiáveis, cristalizáveis. Um sujeito no tabuleiro de uma treta adquire, muito facilmente, o estatuto ontológico de uma sinalização de trânsito: só emite um sentido, só possui uma interpretação. Monossemia é o nome de cada polêmica e o andamento de cada minueto dançado inadvertidamente no Facebook.

Monossemia, porém, convoca, sempre, uma monomania. A monomania do Vale, por exemplo, mas não apenas. Em geral, a obsessão de uma nova geração que encontra na internet um espaço de ficcionalizar identidades sem fissuras que, também de forma obsessiva, exigem adesão irrestrita e automática. E a tal ponto que absorve até mesmo quem talvez nunca tenha efetivamente tentado adentrar o local da identificação absoluta com coisa nenhuma. Para essa geração do lacre e da treta facebuquiana, a política (se ainda for lícito usar esse nome) não tem mais a forma da dialética ou da composição de multiplicidades, mas da filiação a fã-clubes.

Inês Brasil algum dia nos pediu o lugar que lhe concedemos? E não apenas ela: Jojo Toddynho e Nego do Borel, ou então as trajetórias de Rogéria e Ney Matogrosso, que, embora não se enquadrem no ideal atual de sujeito militante, surtiram, com seus trabalhos, efeitos que extrapolam em muito suas eventuais declarações anacrônicas. Anacrônicas para nós: pois quando alguma vez exigiram um lugar sem contradições, idêntico a si mesmo, obsessivo com tal identidade Total? Um lugar sem ironia?

Enquanto isso, esperamos a próxima treta sem nos fazermos estas perguntas. Ela virá para nos redimir desse silêncio retumbante e nos permitirá descansar em paz para um mundo sem fissuras no qual a cada ação corresponda um discurso e um caractere de personalidade. Um, e apenas um, bem entendido.

Reprodução/Netflix

O berro do bezerro

E qual não seria, então, a ironia maior, mais abissal de todas, senão a de uma legião que utiliza do expediente de repentina politização de uma celebridade para dissimular a estrutura de “fanatismo” (inevitável, provavelmente) envolvido em qualquer adesão a esses avatares culturais? Subitamente, os fãs se recordam que existe pink money (e quão estúpida é a crença nele), apropriação cultural (de gírias supostamente LGBT como “que tiro foi esse?”), yellow face (vide clipe da MC Loma), violência de gênero e um bando de gente oportunista e fascistoide no mundo. Só parecem mesmo se esquecer que a velocidade com que certas celebridades são alçadas a posições icônicas só não é maior que o sentido de oportunidade da capitalização da cultura por parte de empresários e, sobretudo, da disposição em consumir e aderir da própria recepção desses neo-ícones.

Num mundo em que as divas lacram, é bom sempre retornar ao que as palavras dizem. Diva, em cuja raiz se encontra: deusa; lacre: fechamento duplo (do debate, das fissuras subjetivas). Quando as divas lacram, tornam-se ídolos. Novamente, a palavra diz: para serem adoradas, veneradas, seguidas; ou então perseguidas, odiadas, profanadas; jamais compreendidas ou politicamente dessacralizadas.

O que resta, então, diante desses deuses em frangalhos, desses mitos cheios de buracos lógicos e narrativos, desses hinos que nunca são entoados completamente no tom? Resta pensarmos por que diabos esperamos que a superidentificação imposta, o boicote, o enxame ou o ataque possam ser táticas melhores do que aquelas que nós não desejamos que sejam usadas contra nós. O oportunismo, a espoliação e a falta de aliança política orgânica sempre são perigos contra os quais devemos nos levantar, mas eles tampouco justificam expedientes de conversão (no sentido evangelístico) e adesão a nossas agendas. (Quais mesmo? Pois elas muitas vezes não estão postas à mesa.)

Há dois sintomas que as tretas nos colocam. O primeiro, positivo em certa medida, é de que desfizemos certa aura intocável das celebridades e artistas. Mas essa iconoclastia não funciona sem sua iconofilia complementar. Desfizemos os ídolos para tomá-los como representações de nossas expectativas. Relação narcisista da audiência com o artista que, como tal, não deixa espaço para nenhuma surpresa efetiva. Estamos sempre à espera do Outro como feito à nossa imagem e semelhança.

Resta, por fim, um diagnóstico difícil. Como questionar os ícones que criamos sem pôr em xeque também o processo pelo qual os inventamos? Como deslacrar esses ídolos sem evitar que nossas fissuras sejam expostas no mesmo movimento? Como seria possível articular, quer dizer, politizar um debate sem recair no expediente fácil do lacre? Como lidar com as piores ironias sem recair na pobreza das identificações Totais?

O diagnóstico é difícil, pois toca com brasa quente nossas monomanias mais pertinazes. Monomania da identificação completa entre ser, dizer e fazer. Monomania enquanto monossemia, aquela da palavra sem contexto. Ou então da posição tirana de que um artista deve corresponder, ponto por ponto, a cada uma de nossas expectativas enquanto audiência.

Aqui, novamente, as palavras dizem muito. Tirano é o título grego de Édipo (tirano, e não rei como se consagrou traduzir). Tirania, à diferença do recebimento hereditário do poder, é a relação pela qual alguém sem direito ao trono o toma à força. Legitimidade pelo sangue derramado, embora mostre ser possível alguma subversão da ordem dada do mundo. Quando retiramos os ícones culturais do Vale, que ordem ferimos e instauramos simultaneamente? A que custo? Do parricídio? Do incesto? E, afinal, em nome de quê? Para concretizar qual destino? E, não havendo oráculo capaz de prever o que fazer nesses casos, as perguntas se multiplicam. Queimaremos bezerros de ouro para colocar outros ídolos em seus lugares? Quais então? Os lacradores, que não deixam muito espaço para debate? Ou os lacrados, esvaziados de ironias, contradições, dificuldades, plot twists?

Caralhos me mordam!

Johnny Hooker dizia que Ney Matogrosso teria sido ofensivo ao dizer “gay é o caralho!”. Se, em certo sentido, ser gay não é o caralho, nos pomos a imaginar o que poderia ser então. Talvez haja mais na declaração anacrônica de Ney Matogrosso do que no militante Johnny Hooker. Um Hooker incomodado com o caralho ofensivo. Que canta um Flutua onírico, impressionista, ao lado de uma Liniker feérica.

Ironicíssimo que o homem-lobisomem-com-agá com um discurso tão equivocado esteja nesse lugar mais animal, corporal e sexual do que aquele que, por uma ironia não muito feliz, promete, mas não entrega, um gozo muito melhor. De um lado, o anacronismo que flutua quando recusa a identificação reclamando, para isso, um sonoro, inequívoco e latejante caralho. De outro, um hooker autoafirmativo, embora caralhofóbico; e que, assim, evita, se esquiva, escorrega, flutua praticamente descorporificado. Politicamente desencaralhado, Hooker flutua. Embora, admitamos, não por o faça por um lacre essencial entre o que diz, é e faz, mas somente pela estrutura da treta que o converteu nesse bezerro que passamos a adorar. Bezerro ao qual, como a tantos outros, fazemos pesar todas as arrobas de ouro-de-tolo que eles sequer sonharam um dia possuir.

Reprodução/Kondzilla

Thiago Cazarim é professor do Instituto Federal de Goiás, bacharel em Música, mestre em Filosofia e doutorando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais (Faculdade de Ciências Sociais/UFG). Investiga políticas e poéticas culturais e anda mais amargurada que Odete Roitman em final de novela.

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Thiago Cazarim
Instituto LGBT+

Professor do Instituto Federal de Goiás. Bacharel em Música, Mestre em Filosofia, Doutor em Performances Culturais.