Nossa força em tempos de medo

Felipe Areda
Instituto LGBT+
Published in
9 min readOct 2, 2018

Que não nos esqueçamos que a história é um campo de batalha e da grandeza de nossa força coletiva nessa luta

“A barbária Tese sobre o conserto da história (Capítulo 7)” Fotomontagem, 2017. Ricardo Gauthama.

Nos dias 14, 15 e 16 de setembro de 2018, o Instituto Cultura Arte Memória LGBT+ realizou o 1º Simpósio Memórias LGBT+, em parceria com a Casa de Cultura da América Latina e com o Festival Plena da Secretaria de Cultura do Governo do Distrito Federal. Foram três dias de amorosos encontros intergeracionais em um espaço de partilha para ouvir histórias das nossas LGBT+ mais velhas. O nosso encontro contou com uma conferência do nosso amado João Silvério Trevisan, a qual tive o prazer de introduzir com esta fala de abertura do nosso Simpósio:

A história é um campo de batalha! Esse ensinamento de Walter Benjamin nunca deve ser esquecido. Não estamos seguros! Nossa memória não está segura! Nossos mortos não estão seguros! E digo isso hoje, 14 de setembro de 2018, quando sabemos que nos 256 dias que se passaram desse ano, pelo menos 250 lésbicas, gueis, bissexuais, travestis e transexuais já foram assassinadas no Brasil somente por serem LGBT. Digo isso hoje, 14 de setembro de 2018, quando se completam seis meses sem resposta do assassinato de Marielle Franco, que foi executada com três tiros na cabeça e um no pescoço por ser um dos rostos de nossa luta. A mensagem é clara, é branca, é burguesa, é militar, é macha, é cisgênero, é capacitista, é hétero, aquele tiro é um aviso para todas nós. Era o rosto de cada um e cada uma dessa sala que aqueles tiros queriam atingir e era a nossa voz coletiva que eles queriam calar.

Estêncil em homenagem a Marielle Franco, produzido por Mari Velasco, Diretora do Instituto LGBT+

Digo isso hoje, quando falar de Marielle ainda enche de lágrimas nossos olhos… Digo isso hoje, quando nossos narizes ainda sentem o cheiro da fuligem da destruição do Museu Nacional…. Digo isso hoje, quando o candidato a presidência da república com maior intenção de votos alcançou a sua popularidade ressonando e impulsionando o ataque ao nosso direito de existir… A história é um campo de batalha! E nessa guerra, não estamos seguros.

Peço desculpas por começar por iniciar essa fala nos fazendo sentir inseguros. Mas é um passo essencial para que consigamos olharmos nos olhos, tocar em quem está do nosso lado e enfrentar o desafio de construir mecanismos para nossa segurança. Não uma insegurança ingênua, mas uma segurança alerta, daqueles que conhecem os perigos e sabem principalmente da concretude da força que tem para enfrenta-los!

Hoje, dia 14 de setembro de 2018, iniciamos nosso primeiro Simpósio Memórias LGBT+. Propomos esse encontro justamente para que pensássemos e sentíssemos as memórias, como alimento, acalanto e estratégia nesses tempos tão inseguros.

Carlos Augusto, fundador do Núcleo de Surdos do Estruturação, traduzido por Michel Platini e Indiara Ferraz na roda “Gestos de desejo: memórias LGBT+ surdas no Distrito Federal”

Afinal, a maior parte de nós, LGBT+, nascemos em ambientes predominantemente cisgêneros e heterossexuais, sem acesso a representações positivas sobre nossos desejos, afetos, corpos, identidades e relações. Eu gosto muito de fazer oficinas de memória com adolescentes LGBT+ e, ao iniciar todas elas, sempre peço para que me digam qual é a pessoa LGBT+ mais velha que elas conhecem pessoalmente. Ainda hoje, a maior parte delas não consegue dar muitos exemplos. Temos chamado esse contexto de “desamparo cultural”. A maior parte das LGBT+ precisa construir um campo de referência para subjetividade contra seus laços sociais mais básicos — sua família, sua escola e sua comunidade comunidade. Precisamos estruturar tardiamente uma herança utilizável a partir de fragmentos.

João Silvério Trevisan partilhando sua trajetória de busca de situar na história brasileira e dos desafios de construção de um futuro de liberdade.

Quando fundamos o Instituto Cultura Arte Memória LGBT+ foi porque acreditamos que Cultura, Arte e Memória são alimentos essenciais para nutrir nossas subjetividades e para semear o terreno de cultivo de nossas comunidades. Pensamos: como seria para uma adolescente lésbica de 16 anos que, as vezes já se sentiu como a única lésbica do mundo, saber que, com também 16 anos, Cassandra Rios publicou em 1948 o livro “Volúpia do Pecado” e foi durante décadas a autora mais lida do país. Como seria para um menino trans adolescente conhecer o livro “A Queda para o Alto” que foi um best-seller nos anos 80, contando a trajetória de Anderson Herzer, adolescente trans que enfrentou com suas poesias o poder e as narrativas de uma das mais perversas instituições da Ditadura Militar, a Febem? Nós temos uma memória e temos o direito a ela.

Carla Nell e Cris Andrade contam suas histórias de vida na roda de memória “ Por uma História Travesti: recordações (trans)formadoras da Capital”

No dia 03 de dezembro de 2018, inauguraremos, aqui dentro da Casa de Cultura da América Latina (através de uma parceria linda do Instituto com o CAL), uma biblioteca e um espaço de dança dedicados à memória LGBT. A escolha do dia não é em vão, nesse dia se completarão 31 anos da morte do Darcy Penteado. Darcy, uma das primeiras figuras públicas a saírem do armário no Brasil… Darcy, que inaugurou a arte homoerótica nacional com uma exposição em 1948… Darcy, que recebeu em sua casa Winston Leyland, editor da Gay Sunshine Press em 1977, e promoveu o encontro entre aqueles que se tornariam os criadores do Lampião da Esquina… Darcy, que era um boy magia lindíssimo (e temos nudes dele para provar)! Darcy, cuja família não permitiu que homenageássemos o Instituto com o nome dele, para não ver sua memória ser vinculada a cultura LGBT+. É esse Darcy que tem orientado nosso sonho. Mais do que isso, vivemos o sonho de fomentar a cultura LGBT fazendo Darcy vivo em nossos gestos. Eu nasci no mesmo ano que Darcy faleceu e tenho orgulho de sentir sua vida pulsando nos meus sonhos.

Darcy, quando inaugurarmos este espaço no dia da sua morte não é para sentirmos o pesar de perde-lo, mas — pelo contrário — para afirmamos a sua vida e sua existência eterna na nossa comunidade. Afinal as bichas mais velhas de minha comunidade me ensinaram: bicha não morre, bicha vira purpurina! E eternidade, como me ensinou Zé Celso, vem de ether, a substância imaterial da vida que significa “fazer brilhar”.

Nós aprendemos desde cedo a blasfemar contra as narrativas da morte e do esquecimento. Se no ocidente nos ensinam a não falar de nossos mortos e homenagear-los com nosso silêncio, as culturas afrodiaspóricas brasileiras nos ensinaram que não se morre em comunidade. Que nossas ancestrais atravessam navios com a gente, que enfrentam a escravização ao nosso lado e continuam a partilhar de nossas comidas, danças e festas.

O poeta Pedro Ivo, Makota Daniele e Tata Francisco Ngunz’tala na roda de memória “O Arco-íris de Ângoro, Bessem e Oxumarê: quando LGBT+ dançam no Sagrado”

É pensando nesse ensinamento, que esse simpósio torna-se hoje um terreiro, um terreiro de memória. Um local de invocação e incorporação. Um local onde a força das nossas ancestrais torna-se um circulo de proteção e nutrição. Um local, como me ensinou Leila Míccolis, onde passamos a construir um “eu plural”, poético e patético. E sim, precisamos cada vez mais da poiesis (a força do criar do futuro, como me ensinou Waldo Motta) e de pathos (a força da afetação que permite a comunicação e o contágio, como me ensinou os meninos da minha escola que me xingavam de afetado!)

Alexandre Ribondi, Marcos Bagno e Humberto Pedrancini, pioneiros da produção cultural LGBT+ de Brasília, contam suas histórias na roda “Beijo Livre: Quando nossos Beijos ocuparam a Cidade”

E pela força do afeto e da poesia que invoco nossa memória. Para que nesse caminho de insegurança não nos sintamos sozinhas e sozinhos. Porque no nosso corpo vive o corpo imortal de Luis Martinez Correia que 102 facadas não conseguiram assassinar, vive a poesia de Anderson Herzer que a Febem não conseguiu calar, vive a potência sensual de Cassandra Rios que a Ditadura militar não conseguiu censurar, vive a voz da Marielle Franco que nenhuma bala do rosto será capaz de calar. Estamos armadas com as navalhas de Madame Satã, com as pinceladas de Jorge Guinle Filho, com o bordado de Leonilson, com os berros de Cassia Eller! Somos filhas e filhos da audácia de Laura de Vison, do humor desafiador de Vera Verão, da dança contestadora de Lacraia e da criação de Claudia Wonder. Claudia me ensinou que nossas diferenças são como pungentes flores que racham os asfaltos. Nessa terra de branco e concreto, de distâncias e ordem, que sejamos como figueiras que quebram as ruas de Brasília sem se preocupar com projetos, planos e ordenamentos territoriais. Que sejamos como ipês que florescem na seca para lembrar que a beleza nunca morre, que a chuva sempre vem e que as cigarras sempre cantam!

Alessandra Lopes e Melissa Navarro na roda de memória “ DF 044: eixos de revolução”

Chamamos esse evento de simpósio, porque sua origem vem de uma palavra grega que quer dizer “beber junto”. Nada tem a ver com a formalidade ascética do debate acadêmico, mas com o espaço de erotização de pensamento onde a embriaguez acompanha a criação. Como Zé Celso me ensinou, temos que aprender a des-bater ao invés de debater, desmantelando os mecanismos da violência com nosso erotismo. Lembramos que também o vinho representa a própria partilha da Paixão. A Paixão de Cristo mesmo, que transformou água em vinho para que festejássemos, e que transformou o vinho em seu sangue para que possamos bebê-lo e tê-lo vivo em nós.

A água, o vinho e o chapéu do João Silvério Trevisan, autografando a quarta edição de “Devassos no Paraíso”.

Como falei em paixão e, já para saudar meu amado João Silvério Trevisan, que me tirou do desamparo cultural com sua escrita. Digo que ele me ensinou a força dessa palavra em seu conto de 1976 “Testamento de Jônatas Deixado a Davi”.

“Eu não sabia então que Cristo era um sentimento e que naquela semana tal sentimento se exarcebava. A partir desse Cristo que percorria nossas veias, tudo era amado. Sentíamos-nos amados uns pelos outros e amávamos a todos, nos movimentos litúrgicos e nos cantos, assim como no gesto noturno de escovar os dentes e na sensação voluptuosa de nossos corpos tocados pelo tecido dos pijamas. Naquela semana, a sensibilidade crescia tão alto que nosso amor percorria outros canais e atingia uma nova dimensão, de modo que podíamos violar o mistério. O Cristo da Paixão era inesperado, porque nos arrastava para o desconhecido.”

Trecho do conto “Testamento de Jônatas deixado a Davi”, João Silvério Trevisan (1976)

Paixão é a força que nos torna vulneráveis. Que nos arrasta para o desconhecido. Que nos faz nos mover nesse mundo inseguro com entrega e coragem. Que nos aproxima e nos conecta, fazendo o poder da vida fluir em nosso sangue. Na paixão, o outro vira a minha força e a minha força vira a força do outro.

João Silvério Trevisan fazendo brotar força e coragem em nós.

Que esse vinho transforme nossa jornada nesses tempos de insegurança em uma dança apaixonada, invocando nossas ancestrais nesse terreiro e fazendo de nossas memórias alimentos para a criação de mundos poéticos e afetados.

Luara Leão (Banda Soror) e Ludmila Gaudad (Banda Estamira) na roda de memória “Berros Bis: memórias bissexuais no rock brasiliense”

Sim, temos medo. Afinal, quem tem cu, tem medo. Ou melhor, quem dá o cu, tem medo. Mas nada é mais poderoso do que aqueles e aquelas que, no meio do medo, descobrem a sua força e sua coragem. Se eu fosse eles, eu teria MUITO medo da gente!

Evoé!

Felipe Areda é antropólogo, educador social e tem se dedicado a investigar o pensamento LGBT+ brasileiro e as teorias da cultura LGBT+. É fundador e presidente do conselho diretor do Instituto Cultura Arte Memória LGBT+. Nascido no cerrado brasiliense, ama tortuosidades e árvores que florescerem na seca.

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Felipe Areda
Instituto LGBT+

Felipe Areda é afetado, como bem definiu os meninos que o xingavam na infância.