Os nomes da Rosa: Entrevista com Rosa Luz

Thiago Cazarim
Instituto LGBT+
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7 min readJul 18, 2018
Reprodução/NLUCON

Close entrecortado por luzes, fragmentos de imagem que multiplicam um corpo. Fantasmagoria: persona multiplicada imageticamente cuja voz segue quase sem descanso sobre o contínuo da base rítmica. Corpo ao mesmo tempo cindido, inscrito e retomado pela linha vertical tatuada entre a garganta e o ventre. Coluna vertebral vertida das costas para a frente, para o fronte, como o mundo invertido em que vivemos, e que, por isso mesmo, é necessário inverter de outro modo pelas artes. Como revelado ao entrevistador: “meu trabalho é a arte da oralidade. Através da oralidade utilizo a técnica artística que for. Travesti periférica tratada como lixo em certos lugares e como rainha em outros. Procuro a descolonização dos nossos corpos”.

Esses múltiplos des/encontros entre voz, identidade e som que permeiam a canção Afrotrapfunk parecem também atravessar as demais produções da multiartista brasiliense Rosa Luz. “Sou uma mulher artista afrolatina. Sangue negro e indígena correm minhas veias”, nos diz, apenas para em seguida afirmar: “Estou apenas tentando existir sem estereotipar minha existência. Na minha mente, sempre penso: ‘Poderia ser a Rosa Luz puta, ou a Rosa Luz traficante, ou a Rosa Luz bandida’”. Poder ser isso e aquilo, isso ou aquilo, isso, aquilo e mais. Muitos nomes para descrever a miríade de identidades que, ainda assim, não podem captar uma das identidades que Rosa, a Luz, reclama com maior força: a de “pomba-gira”, figura “de caminhos abertos”.

Nas malhas desses registros de si, “existem várias identidades que habitam o nome Rosa Luz. Algumas dessas identidades são projeções que o outro tem sobre mim. Isso se dá pelo fato de eu ter bastantes seguidores que frequentemente acompanham recortes e fragmentos da minha existência”. Caminhos abertos, então: em quais destes nomes, como corpos mediúnicos, manifesta-se Rosa Som, Rosa Afrotrapfunk, Rosa Rap? Caminhos abertos, multiplicados: impossível definir.

Figura de encruzilhada, onde a espiritualidade das ciganas e pombas-gira se entrelaça com a de figuras marginais. “E não me estranhem: não acho nenhuma dessas atividades menos dignas ou assustadoras, pois a vida toda convivi com os mano e as mina do corre, então o rolê é outro”. Concordo com essa Rosa, mesmo não sabendo qual exatamente fala aí. Mas o rolê da arte é mesmo outro, afinal, a arte é o rolê em que o mundo inteiro pode ser outro, no qual “o virtual acaba sendo um reflexo do real”, mas no qual o real também aparece como promessa do virtual esteticamente produzido.

Arte, esse “desejo de ser outro” postulado pelo dramaturgo Nikolai Evreinov, não é somente um desejo. Fazer música, nas encruzilhadas das opressões e da resistência, se converte em lance inesperado numa partida de cartas marcadas — ocasião de tomar a própria voz como fonte de poder:

“Thiago Cazarim: Um dos aspectos relatados por homens e mulheres trans em seus processos de transição de gênero diz respeito especificamente às mudanças ocorridas em suas vozes. Creio que isto se relacione de alguma forma com os impasses da chamada passabilidade, mas gostaria de saber se essa mudança vocal também não constitui também uma ocasião de construção da própria identidade pessoal e artística. Indo direto ao ponto: o que a rapper Rosa Luz pensa sobre o processo de emergência de sua própria voz?

Rosa Luz: Acho que cada um tem o direito de poder mudar a própria voz, caso seja a vontade, independente dessa pessoa ser cis ou trans. Sobre minha voz: eu costumava odiar ela. Ou melhor: a sociedade fez com que eu odiasse a minha própria voz, mas através do Rap e do poder dos graves aprendi a me relacionar de outra maneira com a minha voz. No momento não tenho problemas com ela. Minha voz é meu poder, minha magia negra.

Thiago Cazarim: Em seus trabalhos musicais, o uso da voz é predominantemente o canto falado, aliás, típico do rap. Essa ‘presença da fala’ (como diz o pesquisador Marcelo Segreto sobre o trabalho do grupo Racionais MC’s) é intencional? Há alguma reflexão ou experimentação sua sendo gestada para exploração de outros recursos vocais (canto ‘melódico’, gritos, sussurros etc.)?

Rosa Luz: Não sou cantora, mas faço rap. Uma coisa não anula a outra, mas não sou cantora. Nesse sentido, sinto que alguns processos criativos se assimilam ao processo criativo do cantor, outros não. Em alguns momentos da construção do meu EP passei por processos de criação na música envolvendo o eletrônico, a métrica, o flow, o looping. Por outro lado, às vezes só tenho vontade de vomitar a letra na cara da sociedade. Tem música que pra mim é mais sobre a performance (alguns músicos se contorcendo por dentro, mas faz parte), outras músicas para mim são mais sobre as ideias, e no momento estou tentando encontrar o equilíbrio: pois venho de uma criação artística onde o improviso sempre foi chave essencial para agora trabalhar com o ensaio, a repetição. Tem sido massa e muito chapante.”

Tomar posse da própria voz, não sendo apenas um desejo de transmutar-se, também não é apenas um cálculo numa disputa. É o grau, o barato, a onda que bate na marola de ser uma-e-outras:

“Thiago Cazarim: Como você definiria seu estilo musical?

Rosa Luz: São uns rap meio chapante com umas ideias meio lombradas.”

Desejo, cálculo e transe. Impulso, esperteza e torpor. Tomar consciência chapando o coco. Fritando limites linguísticos e geográficos de identidade, como em Brazilian bitch. Rosa Luz, a certa altura, parece convidar para ultrapassar o primado da identidade: “realize that my rimas transcenderam meu estado consciente independentemente da nação”. Desidentificar-se a ponto de esquecer a própria língua — “je ne sais pas português”. Em Sanguinária, por outro lado, ouvimos Rosa (Luz, Light ou Lumière?) cantofalar o desejo de “ter uma vida digna com afeto e alegria,/imprimir identidade nessa vida”, em eco a Brazilian Bitch: “sigo cantando com os mano e as mina que respeita minha identidade”. Mas em Brazilian bitch, uma esquiva desvia do conforto provisório com as políticas de identidade — afinal, “Rosa Luz: I’m everything”. E é o mesmo tom de incômodo que vemos no vídeo Quanto custa sua dignidade?, em que Rosa descreve o processo de retificação de seu registro civil. Em dois momentos do depoimento, Rosa diz, sardônica: “minha dignidade custou 45 reais […] A nossa dignidade custa um valor X ou Y ou Z que a gente tem que pagar porque, se não for isso, a gente vai ser sempre tratada de uma maneira desconexa nessa sociedade, o que é bem foda”. Ao final do mesmo vídeo, a ambiguidade da identidade aparece enquanto Rosa segura sua nova carteira de identidade para a câmera: “Essa é a minha crítica, mas eu tô muito feliz porque finalmente eu me sinto uma pessoa digna de existir”.

Esse lugar difícil, instável, na verdade mostra que nem a identidade nem sua ausência são isentas de violências. Identidades que custam 45 reais em alguma medida conferem a sujeitos a mesma banalidade de identidades inexistentes. Mas é nesse lugar intermediário entre a identidade e a não-identidade — de gênero, de lugar, de língua — que Rosa Luz afirma querer construir sua identidade afrolatina:

“Thiago Cazarim: Ano passado [2017], o Festival Latinidades completou 10 anos de realização em Brasília. O festival se tornou um importante espaço de formação cultural e política e expressão artística a partir da afirmação de afrolatinidades, articulando luta feminista com a diáspora negra na América Latina. Como esse campo alimenta e é alimentado por seu trabalho? Como você vê este espaço?

Rosa Luz: O discurso feminista e a diáspora negra na América Latina são questões que perpassam minha existência de maneira direta ou indireta, e um grande exemplo disso é o próprio festival Latinidades, a qual tive oportunidade de me apresentar cantando letras que envolvem negritude, a luta pela igualdade de gênero e a necessidade de descolonizarmos nossos corpos e reafirmarmos nossas identidades afrolatinas.”

Descolonização de seu corpo, esquecendo a própria língua e origem nacional, falando línguas e ocupando terras de colonizadores (como é o caso da flânerie-diáspora de Brazilian bitch), revertendo-as contra imperativos e persistências coloniais. Esquecimento e perda (afirmativos) em meio ao caleidoscópio da des/identidade que contesta os esquecimentos comandados e perdas infligidas (violências que tentam subalternizar). Esquecimento contra esquecimento, perda contra perda, para no fim mostrar que o rap, como lugar de memória e identidade, não é apenas um lugar desejado, forjado e de imersão. Assumir musicalmente a própria voz é assumir também o limite do que se pode lembrar e projetar publicamente de si:

“Thiago Cazarim: Atualmente, muitos ativistas têm pautado a ideia de que grupos subalternizados devem poder fazer ouvir sua voz. Isto tem um sentido político muito importante, mas gostaria de saber como a art(iv)ista Rosa Luz gostaria de que sua voz — num sentido sonoro e musical — fosse apreciada artisticamente. Você poderia comentar a respeito?

Rosa Luz: No momento não tenho me importado muito com a crítica especializada de arte, nem com os ‘apreciadores’ das galerias. Minhas ideias no rap são diretas, não tenho nenhuma palavra pra esconder. É um grito pra uns, é cuspe na cara para outros. Então, apenas gostaria que a branquitude ficasse caladinha e escutasse as ideias que vocês vão saber do que estou falando.”

Ambiguidade nova, a da voz que fala e cala. Ambiguidade ainda materialidade de suas ideias diretas, viscerais (grito, cuspe). A voz orgânica do corpo descolonizado; as ideias diretas, sem intermediários: assim como no ziguezague entre identidade e não-identidade, a ironia aqui também deixa sua marca — na voz orgânica e nas ideias diretas já midiatizadas e mediadas. Inclusive com as ferramentas dos adversários (o Estado, a colonização, a branquitude) — embora com a astúcia que apenas os sobreviventes possuem. Astúcia de não ter um nome apenas, mas, se necessário, rejeitar todos os nomes. Ou então (astúcia novamente) escolher, dentre tantos possíveis e indesejados, qual deve ser o nome de Rosa.

Perfil:

Nome completo e idade: Rosa Maria Souza Alves, 22*

Local de nascimento: 18.07.1995, Gama — DF

Atuação artística: Residência Artística Tanteo (Reino Unido), Sofar Sounds Brasília, Festival Latinidades, Festival Favela Sounds, exposição Limiar de Lugar Algum — Museu Nacional da República, Exposição Não Podemos Construir o que não podemos Imaginar Primeiro — MIS/Paço das Artes (SP).

*Informações de janeiro de 2018.

Thiago Cazarim é professor do Instituto Federal de Goiás, bacharel em Música, mestre em Filosofia e doutorando doutorando no Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Performances Culturais (Faculdade de Ciências Sociais/UFG), no qual estudo rap e performatividade. Investiga políticas e poéticas culturais e anda mais amargurada que Odete Roitman em final de novela.

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Thiago Cazarim
Instituto LGBT+

Professor do Instituto Federal de Goiás. Bacharel em Música, Mestre em Filosofia, Doutor em Performances Culturais.