Representação LGBT em “Corpo elétrico”: relações afetivo-sexuais para além do familismo

Thiago Cazarim
7 min readJan 28, 2019

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Em 2017, durante o curto período em que morei na cidade de Belo Horizonte, acabei assistindo o filme Corpo elétrico do cineasta belorizontino Marcelo Caetano por indicação de um amigo da cidade. Deve ter sido em setembro ou outubro daquele ano, mas isso não importa muito. O que vale é que algo nesse filme me tocou muito, e muito para além da “representatividade” LGBT que o filme retratava.

Corpo elétrico tem por fio narrativo a rotina de Elias (Kelner Macêdo), um jovem gay nordestino e trabalhador de uma confecção. Há matizes importantes: Elias é branco, de classe média-baixa, ocupa uma posição de pequenos destaque dentro da estrutura hierárquica da confecção e não está submetido à precariedade de seus colegas que trabalham constantemente com movimentos repetitivos e perigosos nas máquinas de corte de tecidos e de costura. De toda forma, Corpo elétrico mostra que a vida de Elias se encontra com a de muitos dos que trabalham ali: na migração, na experiência de ser gay e, o que me interessa e toca particularmente neste filme, a falta de referente familiar presente.

Elias dá a entender, em diversos momentos, que não possui vínculos com os pais no Nordeste, em paralelo ao fato de levar uma vida sexual e afetiva com diversos parceiros — alguns frequentes, outros ocasionais. Isto poderia significar uma denúncia do abandono familiar a que muitos LGBTs são submetidos, além de representar a tentativa de substituir laços familiares por relações fortuitas e fluidas, em ritmo acelerado de emergência e desaparição. Talvez, mas poderia significar também algo diverso: Elias, para quem a família deixou de constituir uma referência presente, tenta construir uma rede afetiva que não pode ser assimilada por um modelo familista. Gostaria de apostar nesta segunda hipótese de interpretação para pensar a experiência de muitos jovens LGBTs — incluindo a minha.

A tematização da relação entre migração e perda de horizonte familiar me parece um bom início para desenvolver essa ideia. Elias se afasta de suas origens: de seu solo e do seio de sua família. É como perda da origem que sua experiência de jovem LGBT parece se produzir nos 94 minutos de Corpo elétrico. Não em vão, temos uma sensação de constante desenraizamento: o ambiente monótono e desinteressante da confecção, a constante alternância de parceiros sexuais, um relacionamento conjugal que não termina nem se fixa. Elias parece mesmo perder-se e perder qualquer ponto de referência, e a fluidez de suas vivências sexuais e afetivas impedem a fixação num ponto originário muito definido.

Mas esta leitura falha terrivelmente num ponto. Embora a marca da perda da origem me pareça importante para compreender a construção da vida de Elias, ela não deveria ser vista como marca de uma origem que, perdida, constitua obrigatoriamente uma falta. E, mesmo que saibamos que a perda da família como ponto de apoio e referência significa muitas vezes uma precariedade existencial e material que torna inúmeros LGBTs socialmente vulneráveis, a perda da referência familiar talvez nem sempre signifique uma falta totalitária — uma falta que comande todo o destino e as ações daqueles para quem a família deixou de contar como suporte. Precisamente este parece ser o caso de Elias, a quem, se olharmos atentamente a trama de Corpo elétrico, nem mesmo conseguiríamos enquadrar facilmente num conceito de família estendida.

Uma das dificuldades óbvias para definir Elias em termos familistas seria exatamente a ausência de uma relação estável. (A única que ele tem, na verdade, é com as plantas que cultiva na janela de seu apartamento). Mas há uma questão muito delicada, e ao mesmo tempo importante, que diz respeito à economia sexo/afeto na vida desta personagem. Se considerássemos os colegas de trabalho como irmãos substitutos, não levaria muito para pensarmos a relação que Elias passa a ter com Wellington (Lucas Andrade) em alguns momentos seria da ordem do “incesto”, mesmo que numa analogia muito fraca. Assim mesmo, gostaria de aproveitar tal comparação para mostrar como o tipo de relação que Elias trava com diversas personagens desvia do paradigma do incesto, que, em última ordem, significa uma certa forma de correlacionar sexo e afeto no interior de uma comunidade ou grupo.

O incesto não é somente uma forma de tabu pela qual o sexo é uma energia dirigida para o exterior de uma comunidade, mas, num nível mais geral, significa um tipo de veto geracional, mais precisamente, o veto do retorno à origem. O caso de Édipo demonstra isso: o incesto entre os gregos era aberrante não simplesmente uma desordem interna da família, mas só representava tal desordem porque significava uma transgressão do fluxo cósmico do tempo. Manter conjunções carnais com a própria mãe e, pior ainda, fazer com que ela gerasse filhos do próprio filho invertia terrivelmente, tragicamente a ordem correta da vida. O incesto permanecia então como dispositivo que mantinha a ordem do universo intocada, e o fazia impedindo que uma geração retornasse diretamente à cena originária de sua existência.

Porém, o modelo familista não só tem no incesto um veto, mas um mecanismo de reprodução. Se o incesto impede que uma geração inverta o fluxo do tempo recolocando a prole na origem de sua geração, é o incesto também que permite à prole vir a se tornar geradora de filhos. O incesto não é somente a falta de acesso à própria origem, mas também é uma herança que, replicando-se como veto à geração seguinte, torna a atual geradora e sustenta uma mesma ordem de mundo baseada na contenção sexual como forma concreta de impedir que um filho tenha a si mesmo como origem.

Corpo elétrico não me parece jogar no campo do incesto, ou, ao menos, lida com o incesto como limite ao qual se recusa ceder. Seria bastante simplificador dizer que Elias e Wellington, “irmãos” na vida, cometem um incesto. O problema prático é que a fuga de Elias para o Sudeste significa a perda de parâmetros familiares — inclusive da própria ideia de família como estruturante de suas relações afetivas e sexuais.

Apenas para dar um exemplo de como Corpo elétrico não seria pautado por um ideal familista, poderíamos comparar a representação do par sexo/afeto presente em Os sonhadores, de Bernardo Bertolucci. Neste último filme, a atmosfera contestadora e pueril dos acontecimentos de Maio de 1968 na França acabam por desembocar em relações sexuais entre Théo (Louis Garrel), Isabelle (Eva Green) e Matthew (Michel Pitt) — as duas primeiras personagens sendo irmãos. A figura da transgressão é irresistível aqui, mas, ao mesmo tempo, fica evidente que tal transgressão só pode tirar seus efeitos de uma estrutura familista que permanece, de resto, intocada. O ménage à trois de Théo, Isabelle e Matthew, no fundo, mobiliza o incesto como transgressão sem que o horizonte de referência dos dois primeiros tenha deixado de ser sua relação familiar.

Em Corpo elétrico, por outro lado, Elias recusa-se a falar de sua família, recusa-se, mais que isso, a retornar à sua terra e casa de origem. Elias perdeu a família como norte, o que traz consequências de toda ordem, inclusive para uma consideração atenta sobre as relações entre sexo e afeto em sua vida como jovem gay. Elias não quer transgredir a estrutura familiar relacionando-se sexualmente com seus pais ou irmãos. Elias nem mesmo parece interessado em constituir uma família. O que Elias faz, ou o que sua vida é levada a fazer, é criar uma rede de pertencimento que não tem nenhuma dívida para com um ideal de família que cinde experiências afetivas como internas a uma comunidade ou grupo e práticas sexuais como externas.

Por essa razão, o modelo de articulação do par sexo/afeto em que Elias se constrói não é, sob nenhuma hipótese, da ordem do incesto. Nem mesmo enquanto transgressão deste. Primeiro porque as relações que Elias constrói não se baseiam em laços de sangue. Por outro lado, Elias não tem na família um objeto de transgressão, mas tem nela uma origem perdida que não quer recuperar. A família é um negativo contra o qual a comunidade afetivo-sexual de Elias se projeta, sem que pretenda violá-la. Talvez essa seja a distância entre Os sonhadores e Corpo elétrico: no primeiro, a família é um índice a transgredir pelo incesto, enquanto no segundo o incesto, como marca de origem que não se pretende extirpar, por outro lado já não pode comandar o destino de Elias porque a própria família é uma origem que não se quer recuperar. No primeiro, o incesto é uma arkê; no segundo, é um rastro mantido à distância.

Seria interessante tomar o modelo de relações afetivo-sexuais de Elias muito além de uma visão sobre “liberação dos corpos” ou de uma “contestação do moralismo” a respeito da liberdade sexual de homens gays. Penso aqui em minhas experiências como migrante jovem gay que também precisou afastar-se de sua família para construir-se: perder o modelo familiar como referência significou, em grande medida, aprender a compartilhar afetos e prazeres sem tabu, a criar redes de confiança, amizade e parceria para as quais amor, cuidado e gozo não são excludentes nem monopolizáveis por determinadas pessoas. A não-monogamia ou a contante alternância de parceiros sexuais, normalmente condenadas sob o rótulo da “promiscuidade”, muitas vezes ocorrem em redes de relações estáveis de amizade e confiança. Não é estranho que amigos transem, e nem mesmo é fortuito que muitos jovens gays prefiram ter “amigos com benefícios” a relacionamentos conjugais tradicionais. Muitas vezes, não é necessário ter um marido nem um amor romântico para que existam afeto, companheirismo, constância e confiança — inclusive para partilhar o próprio corpo sem que ele esteja amarrado por uma dívida familista qualquer.

Acredito que, se há uma lição a tirar da vida de Elias, é que muitas vezes não é preciso formar uma família para pertencer a uma rede afetiva nem para ter prazer. Radicalizando a ideia de que os modelos de família são plurais, talvez seja importante olhar para experiências não-familiares de jovens LGBTs — muitas delas, experiências nas quais formas variadas de relacionar sexo e afeto têm forjado novos tipos de existência compartilhada.

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Thiago Cazarim

Professor do Instituto Federal de Goiás. Bacharel em Música, Mestre em Filosofia, Doutor em Performances Culturais.