Uma casa de shows de transformistas e travestis no Pantanal

Guilherme Rodrigues Passamani
Instituto LGBT+
Published in
5 min readJul 4, 2018
Cláudio em show na boate em Corumbá

A história que eu vou contar aqui é parte de uma pesquisa maior, que resultou em minha tese de doutorado em Ciências Sociais na Unicamp em 2015. A tese problematizou a intersecção entre envelhecimento, memória e condutas homossexuais em duas cidades de pequeno e médio porte (Corumbá, 108 mil habitantes; Ladário 21 mil habitantes) na região do Pantanal de Mato Grosso do Sul, nas cercanias da fronteira com a Bolívia.

O universo de interlocutores foi composto por uma gama variada de pessoas com condutas homossexuais, entre 52 e 82 anos, pertencentes a diferentes camadas sociais. Através de uma metodologia qualitativa, envolvendo a observação de situações, entrevistas semiestruturadas e conversas informais, procurou-se analisar trajetórias, curso da vida, perfil sociológico, entre outras características destes sujeitos.

Entre os principais resultados obtidos está a discussão sobre temporalidades a partir da contraposição entre experiências passadas e presentes; sobre regimes de visibilidade com os quais os sujeitos estão dialogando; e sobre o modo como o curso da vida, particularmente, juventude, envelhecimento e velhice podem ser representados e experienciados em contextos urbanos distantes das grandes cidades.

Conto aqui, especificamente, o que me foi relato por Luma, que em 2013 estava com 53 anos, se considera uma gay e é branca, alta, acima do peso e pertence às classes populares, com ensino médio completo. Durante a juventude, ainda na década dos anos de 1980, junto com um amigo, criaram uma casa de shows de travestis e transformistas na cidade de Corumbá. Luma lá viveu e trabalhou como gerente.

Luma na juventude

Luma fora marinheiro e, ao dar baixa da Marinha, começou a “se montar”, ou, como ela diz, a me vestir de mulher, porque queria me sentir mulher. Junto a outro marinheiro, Claudio, passaram a dividir uma casa e a se envolver com o carnaval e com a decoração de festas. Claudio era dono de uma pequena floricultura, onde depois trabalhou também Santiago (61 anos), outro de meus interlocutores.

Inicialmente, Claudio pensara na casa como uma boate gay[1] e assim ela ainda aparece na memória de alguns interlocutores e pessoas da cidade. No entanto, como conta Luma, a casa não era uma boate gay. Ela se refere ao lugar como uma casa de shows de travestis. Inclusive, ao princípio, não era permitida nem a realização de programas, pois havia uma intenção deliberada dos proprietários de desvincular a casa de shows da prostituição.

Não existia, segundo Luma, travesti em Corumbá. Foram colegas de Campo Grande e Cuiabá que iam à cidade recrutar bichas novinhas para se transformar e viver da prostituição naquelas cidades. O contato com essas travestis mais velhas, de fora, foi criando um imaginário da possibilidade de ser travesti já em Corumbá, mesmo sem ter ido para fora e mesmo sem ter um envolvimento com a prostituição.

O que aparece como imagem das travestis a partir do relato de Luma é algo que se assemelha, talvez, aos crossdresser[2], pois não se assumia full time uma identidade travesti, senão algumas performances pontuais para festas específicas, encontros com outras pessoas com conduta homossexual e pagodes. Nestes momentos, elas colocavam uma roupa mais feminina, um salto alto, maquiada e tudo mais. No entanto, não existia a tradição, ainda, da construção de um peitão, bundão, esta coisa mais agressiva. A gente era mais natural.

As informações sobre a casa de shows afirmam que a casa sempre teve um público muito bom e diversificado. Não eram apenas as pessoas com conduta homossexual que lá estavam. Segundo Luma (57 anos), lá estavam famílias, muitos casais hetero, gente da sociedade. Quando a gente fazia shows de transformistas, na época a gente fazia show de transformismo, a sociedade em peso ia. É como se a presença de pessoas alheias ao mundo gay legitimasse um universo de inteligibilidade e possibilitasse a existência daqueles sujeitos naquele contexto.

Uma menina que se apresentava na casa de shows

Depois de um tempo, a casa foi tomando outros contornos. Como era uma casa grande, lá viviam os donos (Claudio e Luma) e foram começando a viver também algumas das travestis que se apresentavam nas festas, em virtude das dificuldades financeiras enfrentadas. Isso foi, lentamente, inserindo a prostituição na Night Club. Alguns dos homens que frequentavam o local foram fazendo propostas generosas para as meninas durante as noites de semana, quando não havia espetáculo.

Por uma questão de segurança e praticidade, ponderou-se que era melhor que elas ficassem com os homens na casa, onde havia toda uma rede de suporte, a se aventurar pelas ruas, expondo-se a riscos. A prostituição, então, não era o foco, mas começou a ser parte das atividades, especialmente quando a casa estava fechada. Além dos programas com as meninas, também começou a ser oferecido o comércio de bebidas e comidas a fim de que a casa também lucrasse com a presença dos homens que lá estavam.

Muitas das meninas da casa começaram a produzir transformações no corpo, pois chegava com muita força na cidade a era do silicone. O silicone chega em Corumbá em meados dos anos de 1980. A era do silicone marca o afastamento de algumas das meninas da casa, pois começaram a dedicar um tempo bem maior, quase total, para a prostituição, já que os rendimentos eram mais significativos do que os oferecidos pela casa de shows, mesmo com os programas eventuais lá realizados. Estas meninas, então, resolveram partir para carreira solo e deixar para trás a vida mais comunitária que a casa propiciava.

[1] Claudio já é falecido, por isso não tenho acesso a suas informações. Neste sentido, converso sobre Claudio com Luma. Assim, parte de Luma a expressão boate gay, um termo bastante popularizado nos dias atuais. Talvez, na época em que esse empreendimento fosse uma ideia para Claudio, esse nome não fosse o utilizado para representar tal local e tipo de negócio. Como categoria contemporânea, a boate gay pode funcionar como uma projeção atual para se referir a algo assemelhado, mas sem esta nomenclatura, em tempos idos. Agradeço a Julio Simões pelo alerta quanto à utilização desta expressão pela interlocutora.

[2] Sobre esta temática, ver os trabalhos de Anna Paula Vencato (Sapos e Princesas: prazer e segredo entre praticantes de crossdressing no Brasil. São Paulo: AnnaBlume, 2013) e Vitor Grunvald (O que faz uma imagem? Estética e visualidade na prática de crossdressing. In. IX Reunião de Antropologia do Mercosul. Curitiba: Anais eletrônico da IX Reunião de Antropologia do Mercosul, 2011).

Guilherme Passamani é professor adjunto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS) e coordenador do Núcleo de Estudos Néstor Perlongher. É autor dos livros “O arco-íris (des)coberto” (EdUFSM) e “Na batida da concha: sociabilidades juvenis e homossexualidades reservadas no interior do Rio Grande do Sul” (EdUFSM). Investiga homossexualidades masculinas e sua ocupação nos espaços urbanos, memórias e envelhecimento, bem como gênero, sexualidade e marcadores de diferenças na fronteira Brasil/Bolívia.

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Guilherme Rodrigues Passamani
Instituto LGBT+

Professor de Antropologia na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul