A ÚNICA COISA NECESSÁRIA

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readMar 9, 2019

Por Eduardo Campos

Foto: Katrinne Lopes

Nunca acreditei na frase: “O universo conspira ao meu favor”. Esta expressão corriqueira denota a crença em forças que confluem para realização dos desejos mais íntimos da nossa vontade. Confluem como mimanços que orbitam em torno da nossa subjetividade querente e crente. Mas, por outro lado, sempre acreditei na “plenitude dos tempos”, naquela hora decisiva que os gregos chamavam de kairos. Há, portanto, uma diferença. Naquele, tudo conspira a nosso favor; neste, nós conspiramos a favor de tudo. “Tudo”, aqui, não significa o todo no sentido do “coletivo”, do “universal”. “Tudo” significa a inteireza de toda a nossa vida: da vida que somos e da vida na qual estamos. Conspiramos assim em silêncio, sem o mínimo estrépito, sempre a favor do todo da nossa própria vida. Conspiramos respirando sob uma mesma atmosfera de graça que sutilmente penetra nas ventas do nosso corpo anímico. Nesse respiro sutil conspiramos o mesmo ar, inspirando o mesmo hálito divino, expirando o velho hálito das predileções humanas.

Tudo isso que foi dito até aqui é apenas introito para falar brevemente de uma experiência. Ela aconteceu no último domingo em uma paróquia do Méier, Zona Norte do Rio de Janeiro. Em seu templo, possivelmente centenário, havia poucas pessoas. De início, supus que os bancos vazios ainda seriam ocupados. Mas o toque do organista, realizando o processional, mostrou que minha suposição estava equivocada. Seríamos poucos, apenas 13 pessoas.

Fazia muito, muito calor, e parecia que ventiladores inglórios apenas deslocavam o ar quente pelo ambiente. O reverendo e seus auxiliares adentraram o ambiente, vestindo paramentos que agravavam ainda mais o calor infernal daquela manhã do Rio de Janeiro. Mas o inferno parecia menos quente que o coração aquecido daquela gente. Naquela incandescência da fé o calor do inferno era apenas uma brisa inócua e já vencida. Constatei isso quando, em um momento de grande calor, o reverendo mantinha a cabeça baixa, sereno e meditativo, enquanto atrás dele um dos ventiladores estava desligado. Mas sua detida meditação o distraía da possibilidade de um refresco possível que o ventilador poderia lhe proporcionar. Um dos auxiliares se compadeceu dele, ligando o ventilador, mesmo o reverendo não possuindo qualquer autocompaixão, qualquer preocupação consigo mesmo. Depois do ventilador ligado, ele permaneceu inabalável com a cabeça ainda inclinada, imerso em profundo silêncio sacro.

Noutro momento, ao olhar para cima, percebi que o forro do templo que fazia o acabamento havia sido retirado. Uma armação envelhecida, até então escondida pela forração, estava completamente exposta. Tudo, tudo à mostra! Com efeito, antigos tijolos maciços ficaram igualmente expostos na parte superior das paredes, não pelo capricho advindo da orientação de um arquiteto, mas claramente por pura contingência eclesial. Na verdade, em nenhuma parte havia qualquer forro ou qualquer tipo de forração. Não havia mesmo qualquer tentativa de escondimento. Todo o caráter humano sedimentava um templo exposto para ser contemplado sem culpa. A estrutura decrépita que o forro escondia estava à mostra, da mesma forma que à mostra estava a vida do organista e pianista, a vida como ela é.

O organista fazia parte daquele grupo pouco aceito pela sociedade e nada aceito pelas igrejas. Ele estava de camisa branca, algo transparente, com desenho de flores esparsas que pareciam bordadas. Seus longos cabelos multicoloridos estavam amarrados ao topo da cabeça. Sua saia de cor intensa, sua meia alta e vermelha, seus sapatos anabela apontavam a opção de um passo irremediavelmente dado na direção de um caminho próprio e ineludível. Parecia que tinha colocado a sua melhor roupa para a festa daquele dia santo! Sem os forros da decência religiosa não percebi nele qualquer tentativa ressentida de ir à forra com a religião. Ele apenas existia na graça de quem enfeita suas dores para fazer delas uma obra piedosa e sincera.

Ali, à minha frente, estava um daqueles “ministros de música” que não precisava estar com o comportamento acima de qualquer suspeita, porque, nesse caso, da parte de ninguém havia a desconfiança da vida quando ela é fé. Ali, naquela pequena comunidade, ninguém suspeitava mal. Ali muitas coisas eram diferentes, mas estranhamente todos conspiravam irmanados sob um mesmo hálito divino. O teto exposto sem forro era a nudez do coração que inocentemente somos.

Na homilia, o reverendo falou sobre a passagem bíblica em que Cristo diz sobre “amar o inimigo”. Pronto, o decisivo kairos! Dava-se então na palavra a culminação de toda a conspiração que até então permeava aquela atmosfera. O elemento ar respirado condensou-se na saliva da palavra pastoral, e nos meus olhos a mesma palavra orvalhava. Tudo, todos respiravam o ar daquela oração amorosa. Todos conspiravam a favor daquele sentimento religioso, e nenhum universo conspirava a favor da nossa predileção religiosa. Todo capricho religioso era desfeito inconscientemente sob a máxima de João Batista: “É necessário que Ele cresça e eu diminua”. Aquela comunidade não tinha nada, porque tinha tudo que necessitava: “uma única coisa é necessária”. A única coisa necessária incensava o ar daquela atmosfera.

Nessa experiência não fui mero observador, espectador. Espectar, no meu caso, foi produzir um olhar que captasse o esplendor da grandeza religiosa daquele ínfimo aceno sagrado. Tudo era eloquente! Tudo evangelizava! Tudo falava da vida como ela é na vida quando ela é fé!

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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