A Bíblia do Jeremias

Redação — Mosaico
Instituto Mosaico
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3 min readFeb 10, 2018

Por Carlos Fernandes

Protesto realizado pela ONG Rio de Paz | Foto: Divulgação

Na degeneração social em que se transformou o Rio de Janeiro, ainda há quem consiga pedir a Deus que abençoe o assassino do filho

Sempre ouvi dizer que, quando os bandidos resolvessem ir geral para a rua, aqui no Rio de Janeiro, ninguém conseguiria detê-los. Bem, eles foram. E estão onipresentes. Da esquina de casa ao ônibus, da fila do banco à porta da escola, há criminosos em ação. Meliantes de todos os tamanhos, de todos os jeitos, com variados tipos de armas — do facão de cozinha ao AR-15 –, agem sem controle. Eles atiram. Eles roubam. Eles matam. Eles causam lesões irreparáveis. Estamos, todos, paraplégicos: tanto os infelizes que são atingidos por projéteis que lhes roubam os movimentos, quanto os que já não conseguem se locomover para fora de seu pavor.

Capitulamos. Há um peso estranho no ar; um calor sufocante, que supera o do mais tórrido verão carioca. Uma sensação catatônica de desespero. Angústia silenciosa, que guardamos dentro de nós e não conseguimos mais expressar em palavras, exceto em um ou outro desabafo no Facebook. Essa coisa estranha vai nos corroendo por dentro. Já não há mais expressões de horror diante de mortes estúpidas, brutais; quando muito, uma ou outra palavra de comiseração, na sala de estar, enquanto a TV noticia a morte do Jeremias, de 13 anos. Ele e outras doze crianças, uns 15 policiais e algumas centenas de pessoas assassinadas no Rio, na Baixada Fluminense e nas cidades vizinhas, já vão fazendo do recém-chegado 2018 um ano que promete mais sangue do que o anterior — e olha que 2017 teve o maior número de casos de letalidade violenta nos últimos oito anos na região.

Não importa muito se a bala assassina parte da arma do agente do Estado ou se é disparada pelo criminoso. No inconsciente coletivo do carioca, não há mais diferença entre bandidos e mocinhos. Nos velórios que se sucedem, imagens de gente chorando e clamando por justiça. Contudo, a Justiça parece cada vez mais longe de todos nós. E qual Justiça se pode esperar, enquanto um ministro da mais alta Corte nacional solta bandidos no varejo? Resta a muita gente a esperança de sair da cidade ou, de preferência, do país. Nos últimos seis meses, cinco famílias de minha relação transferiram-se para Portugal, e outras cinco devem fazê-lo até o fim do ano. Eu, que não tenho ascendentes lusitanos e estou cada vez mais distante da aposentadoria (afinal, Temer quer que eu trabalhe até os 65 anos e, portanto, ainda me faltam quatorze), tenho de ficar por aqui, de olho no relógio enquanto o filho não volta e observando, com paúra, cada transeunte que se aproxima.

O Jeremias foi morto em mais um confronto entre policiais e criminosos no Complexo da Maré, uma das quase 760 favelas da cidade olímpica. De família evangélica, o menino frequentava a Assembleia de Deus, denominação de grande presença nas periferias e regiões carentes. Entre a bola e a Bíblia, o garoto se dividia nos sonhos de ser jogador de futebol ou missionário. Se a bala perdida não o achasse, talvez Jeremias se tornasse um pastor. No enterro, a mãe, Wânia, disse que pede a Deus que abençoe o dono do dedo que puxou o gatilho homicida. Na cova rasa do Cemitério da Cacuia, ela colocou a Bíblia do menino ao lado de seu caixão.

Hoje começa o carnaval e, daqui a pouco, saio para uma pequena viagem. Sinceramente, não sei se volto para casa. Se algo me acontecer, vou dar um abraço no Jeremias e perguntar qual era o seu versículo bíblico favorito, para ver se bate com o meu, que é o de Naum 1.7: “O Senhor é bom; ele é fortaleza no dia da angústia e conhece os que nele se refugiam.”

Carlos Fernandes tem 50 anos e é carioca. Jornalista, editor e redator, passou vinte anos na direção das revistas de informação cristã Vinde/Eclésia e Cristianismo Hoje. Hoje, trabalha no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e faz produção editorial e preparação de textos para diversas editoras.

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