A BUSCA DO SEU FILHO E A PRAÇA DE MAIO

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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7 min readDec 3, 2019

Por Carlos Netto

Lições das Mães da Praça de Maio com Nora Cortiñas, 89 anos

Foto: Carlos Netto

Na vida temos uma infinidade de encontros. Alguns deixam marcas pelo seu significado e conteúdo. Procurei Nora Cortiñas, de 89 anos, uma das fundadoras e líderes das Mães da Praça de Maio, por ocasião do trabalho que realizo de apoio à comunidade de Brumadinho (MG). Depois do crime ambiental e das vítimas, algumas ainda desaparecidas, é preciso construir iniciativas que preservem a memória do que aconteceu. Buscar referências é preciso, em especial quando tragédias e crimes se sucedem onde um fato se sobrepõe ao outro e, por vezes, entram na zona do esquecimento de uma nação ainda carente de aprendizado com os erros cometidos na esfera da iniciativas pública e privada.

Após o primeiro contato, Nora, ou “Nonita”, como é carinhosamente tratada, me convidou para presenciar a caminhada que fazem semanalmente ao longo de 35 anos. O sol forte não foi impedimento para que ela liderasse a caminhada que reúne, hoje, grupos que lutam pelos direitos humanos, inclusive líderes eclesiásticos protestantes que repudiam a forma como governos da América Latina usam o púlpito de igrejas como se fossem convenções de seus partidos políticos.

A Associação das Mães da Praça de Maio foi o primeiro grande grupo a se organizar contra violações de direitos humanos. As mães se reuniram, diante da falta de informações sobre os seus filhos desaparecidos, e pressionaram em espaço de alta visibilidade pública. Ao realizarem esses esforços, elas também destacaram as violações de direitos humanos ocorridas e aumentaram a conscientização em escalas locais e internacionais. Seu legado e progresso são referências hoje em diversas partes do mundo em situações semelhantes de desaparecidos em função de ações de grupos ligados ao Estado. Hoje, as mães estão engajadas na luta pelos direitos humanos, políticos e civis na América Latina e em várias regiões do mundo.

O governo militar de Rafael Videla considerou essas mulheres politicamente subversivas. Uma das fundadoras, Azucena Villaflor, juntamente com duas freiras francesas Alice Damon e Léonie Duquet, apoiadoras do movimento, foram sequestradas, torturadas e assassinadas pelo governo militar. Diferente do que ocorreu no Brasil, os responsáveis, como o ex-presidente Videla, foram condenados à prisão perpétua por seus papéis na repressão das Mães da Praça de Maio.

No encontro que tivemos, após a caminhada, falamos sobre a perda absurda e violenta de vidas humanas. “Quando levaram Gustavo, meu filho, minha vida mudou completamente. Fui para rua a buscá-lo e comecei um caminho de aprendizagem e descobrimentos. Vivi o encontro com outras mães e uma luta coletiva pelo direito de ter notícias sobre o meu filho. Isso me negaram. Vi, então, um círculo de amor, com outras mães, que igualmente lutavam por notícias de seus filhos. Na luta fui entendendo melhor meu filho quando falava de justiça, direitos e compromisso com o outro”, disse. É a história de uma mãe pelo direito de ter notícias do filho desaparecido pelas suas crenças.

Olhando do ponto de vista da gestão, vi, diante de mim, uma líder que trouxe 11 princípios que nos ensinam muito. São eles:

I. Diz o que pensa e faz o que diz. “Norita” chama de princípio da credibilidade.

II. Anda sempre “armada” com o seu sorriso, pois vê na força do seu corpo a segurança que busca transmitir na mensagem.

III. Não busca o estrelato ou fabrica uma imagem. É a mesma no público ou no privado.

IV. Circula e constrói em rede, desde a presença na escola do bairro onde mora até em reuniões de mulheres do Curdistão. Conecta grupos por entender que isso amplia conceitos, reflexões e estratégias sobre forma de agir.

V. A foto do seu filho desaparecido fica sempre no seu peito, reforçando o que move sua luta. Foi para rua porque não tinha informação.

VI. Suas ideias possuem sempre humor, pois acredita que a alegria é uma trincheira contra a desilusão.

VII. Luta e escuta. É uma grande ouvidora. Dedica tempo para escutar como repertório necessário para quando falar.

VIII. Se autodenomina militante, mas adverte que é militante do abraço. Acredita que os abraços ativam endorfina e acolhem mais as pessoas.

IX. Sua missão é fazer mais humana a humanidade.

X. Entende que a utopia é uma das funções mais essenciais do ser humano. É a melhor forma de lidar com as adversidades e o desânimo.

XI. Autonomia é o recurso mais fundamental para que possa agir com coerência e sentido

“Norita” gravou mensagem para o Oratório de Natal que realizaremos em Brumadinho, dia 14/12, com concerto realizado pelo músico Marcus Viana e cerca de 100 músicos. Mostraremos, na ocasião, que seres humanos ainda são os melhores presentes para outros seres humanos. Usaremos o símbolo bíblico do ouro, incenso e mirra para contar histórias de pessoas, da própria comunidade, que representam luz, pureza e perfume no consolo de estar ao lado de quem sofre, diante do acontecido. E falamos aqui de sofrimento compartilhado, onde só o toque de uma mão humana pode trazer algum tipo de conforto. “Norita” nos dará sua “benção” como presente de esperança para pessoas que perderam seus familiares e amigos de forma abrupta e violenta.

Registro aqui parte da conversa que tivemos. Momento que guardarei como inspiração para aquilo que fizer. Quando perguntei como foi o primeiro Natal sem o seu filho, Carlos Gustavo, ela se surpreendeu e disse que, após tantos anos, ninguém nunca havia perguntado isso. Me pediu licença e solicitou um assessor que buscasse um livro sobre sua história. Guardarei a dedicatória com carinho. Encontrar pessoas que nos inspiram é um grande presente para que possamos reavaliar nossa postura diante de nós mesmos do outro.

CN: De onde vem tanta força para lutar?

NC: Meu compromisso visceral para luta vem dos familiares que me rodeiam, das pessoas que me querem bem e de todos que lutam pelas bandeiras de nossos filhos. Que essas bandeiras sigam levantadas por todos os que acreditam em uma humanidade melhor. Precisamos seguir lutando. Vejo a luta de outros e isso me faz ir adiante. Não estou sozinha. Nunca estive. A minha força alimenta o outro. E a força do outro alimenta a minha. Tive uma grande perda. Nada substitui o meu filho, mas aprendi muito quando o busquei. E ainda busco. Encontrei os ideais do meu filho.

CN: Quais os seus sonhos para humanidade?

NC: Que não haja fome. Que todas as pessoas, em cada país, tenham uma vida digna e que os seus filhos possam desfrutar de condições dignas. Que não tenham que pedir esmolas e viver dependente de quem muito tem. Precisamos investir na autonomia das pessoas. Isso é liberdade. Um ser livre é mais pleno e capaz de contribuir para uma humanidade com mais justiça e respeito aos direitos humanos. Um ser amedrontado, cerceado e privado dos seus direitos básicos está longe daquilo que um ser humano merece.

CN: Como foi o primeiro Natal sem o seu filho?

NC: Muita tristeza. Extremamente triste. Esperava toda noite notícias. Tinha esperança de ouvir ele batendo na minha porta. Minha expectativa sempre foi que ele aparecesse. Não podia descansar aguardando que isso acontecesse. Nenhuma mãe merece isso. Creio que se as mães se colocassem no lugar das outras, não teríamos situações assim. Uma mãe não pode ser privada de ter informações sobre o seu filho. O Estado é responsável pelo desaparecimento dele. É uma das mais bárbaras formas de tortura. Isso aconteceu e, infelizmente, ainda acontece. Não podemos esquecer sobre o papel do Estado, pois ele é feito de pessoas com suas índoles e caráter. Lutar pela humanização é algo que as mães carregam em si desde que levam um filho em seu ventre. Minha luta não é dirigida somente para mães, mas possui nelas a sensibilidade humana que pode ajudar na conscientização da responsabilidade social que temos.

CN: O que há na sua personalidade comum também ao seu filho?

NC: Carlos Gustavo era um jovem muito prudente para falar. Ele pensava muito antes de dizer algo. Refletia sobre as coisas antes de dize-las. Era muito centrado e apegado em formas de ajudar as pessoas na superação de situações difíceis. Conforme escreveu o brasileiro Paulo Freire: “a cabeça pensa onde os pés pisam.” Carlos Gustavo fez sua opção pelas pessoas com baixas condições econômicas. Seu trabalho era ajuda-las. Ele trabalhava no Instituto Nacional de Estatística e Censos. Tinha informações muito claras sobre a situação econômica e isso movia suas ideias. Quando ele desapareceu, eu não tive, como mãe, informações sobre o meu filho.

CN: Você se surpreendeu com o alcance das Mães da Praça de Maio?

NC: No início foi tudo muito espontâneo e visceral. Iniciamos as Mães nas ruas e adquirimos atenção e consciência das pessoas. Éramos mães lutando por informações sobre os nossos filhos. Havia muita verdade e humanidade ali. Fomos aprendendo umas com as outras como defender nossos filhos, inclusive aqueles que estavam ao nosso lado, presentes, no meio de uma ditadura militar. Muitos pensam naqueles desaparecidos e mortos, mas tínhamos os que estavam vivos. Era uma forma de lutar por eles também. Vencemos o medo e aprendemos sobre o nosso direito de exigir explicações. Algumas pessoas nos olhavam com receio, não queriam nem perguntar a situação de nossos filhos. Para alguns eram criminosos. Pensavam que alguma coisa haviam feito, que tinham algo errado em suas vidas. Éramos como mulheres invisíveis para alguns que passavam na Praça de Maio. Tinha gente com medo de passar na porta de nossas casas. Entendi que isso era o verdadeiro terrorismo de Estado. No entanto, isso só acontecia pelo medo que o Estado gerava. Portanto, precisamos ter atenção com governos que falam pelo Estado gerando medo nas pessoas. Meu filho era um profissional que lidava com estatística e informações sociais. Ele não teve medo. Eu também não poderia ter. Nossas atitudes buscavam também impedir que o medo ganhasse espaço na sociedade.

Carlos Netto

Bacharel em História (UFF), mestre em História Social (UERJ), mestre em Ciência da Informação (UFRJ), Doutor em Psicologia (USP) e Pós-doutorando em Comunicação Social (USP). Pesquisador associado da Universidade de Coimbra, Portugal. Professor da FIA-USP. Coordenador do trabalho voluntário A Arte Abraça Brumadinho. Foi diretor do Banco do Brasil por 7 anos.

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