A Chegada de Louise Banks

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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7 min readMay 1, 2020

Por Eduardo Campos

Foto: Divulgação

Do título ouvimos o termo “chegada”. Mas ele não fala apenas de um fato, como acontece quando alguém chega atrasado ao trabalho, mas chega. Essa é aquela chegada que acontece sob o olhar de um chefe, vigilante e inquieto, pedindo a alguém que acuse friamente a presença do tal sujeito em sua chegada. Mas A Chegada — filme de Denis Villeneuve — traz o espírito de uma outra chegada que possui o sentido da intimidade de um achego. Essa intimidade acontece em vários momentos do filme, sobretudo, no terceiro encontro de Louise com os alienígenas, quando ela busca, sem medo, a intimidade do toque, livrando-se de todos os empecilhos, entraves. Mas, afinal, que é uma “chegada”?

A palavra “chegada” vem do verbo latino plicare que diz “dobrar”, “juntar”, “aproximar”. Há duas possibilidades de compreender isso. Quando nas navegações antigas os barcos se aproximavam do porto, os marinheiros começavam a dobrar as velas; e também pode ser uma referência à atividade das plicatrix, aquelas mulheres que, na Roma antiga, trabalhavam dobrando tecidos. Esse verbo, portanto, fala de uma aproximação, do gesto de um dobrar que aproxima, que junta extremidades. Quem assim chega, se achega, aprochega-se; e com essa aproximação se deixa implicar na coisa próxima, podendo trazer à própria vida as dobras de várias implicações…

Quem se achega abraçando, por ex., realiza esse íntimo aprochegar-se. Há uma palavra antiga, pouco usada hoje em dia, que fala de “abraçar”. Mas, mais que a palavra “abraço”, ela explicita, no próprio vocábulo, as plicas que juntam os corpos no abraço, implicando o corpo que se dobra sobre o corpo do outro: “amplexos”. Quem dá am-plexos, dá abraços, como quem coloca dobras/plicas ajustando os corpos na intimidade de uma relação, para a qual, aos poucos, achegam-se, aprochegam-se. Quem dá um amplexo oferece ao outro uma aproximação que implica, confirmando com tal gesto que possui um interesse nessa relação. Nunca deveríamos dar um abraço se não desejamos ter, independentemente do nível de relação, algum interesse na implicação de um achego que se enlaça na intimidade do abraço.

A linguagem — ouçamos aqui a palavra grega logos! — é, de certa forma, essa implicação, é esse tocante abraçar que nos implica, que nos toca e nos toma, apreendendo-nos em suas dobras, plicas, por vezes, complicadas! Na relação com os alunos, por exemplo, um dos papéis do professor é ex-plicar as coisas com-plicadas de uma lição. Mas não somente isso: cabe ao professor, ao perceber que o aluno está com o pensamento totalmente esclarecido pela explicação, colocar nele novas plicas, as dobras de novas questões que possam implicar, de novo, o aluno na própria vida.

Essa experiência da linguagem toca abraçando, envolvendo, implicando, falando, antes mesmo que possamos refletir sobre o seu falar, seu dizer. Mas, para que ouçamos essa estranha linguagem tocante, é preciso que tenhamos a mesma disposição de abertura abraçante, abrindo braços que se dobram para acolher a linguagem que nos fala. Só assim ouvimos bem a linguagem que fala, mas que fala apenas àquele que tem ouvidos para ouvi-la, àquele que sabe retirar os paramentos para poder tocar um toque harmônico, recíproco, pele a pele, como no toque corajoso de Louise, tocando na interface com o estranho. Ela só pôde fazer isso porque não tinha certezas, convicções em torno de uma linguagem correta. O outro enquanto outro só aparece na fragilidade dessa incerteza.

O toque de Louise é de outra ordem. Roland Barthes viu esse toque como ninguém, quando descreveu em um de seus Fragmentos de um discurso amoroso, intitulado “A conversa”, a seguinte experiência da linguagem:

A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contato: de um lado, toda uma atividade do discurso que vem, discretamente, indiretamente, colocar em evidência um significado único que é “eu te desejo”, e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o comentário ao qual submeto a relação.

No filme, o abraço é um exercício de loucura, porque acolhe a vida como ela é. E não apenas a vida do outro, mas também a vida que somos. Aliás, para acolher com graça a vida do outro é preciso, antes, acolher com graça a própria vida: o outro que somos de nós mesmos. Essa é a condição sem a qual não se abraça nenhum alheio, nenhum alien: o outro do outro. Sem esse abraço prévio em nós mesmos não podemos abraçar, não podemos tocar o outro, no máximo, nele, esbarramos. Abraçar amorosamente é acolher amorosamente a vida. Foi isso o que vimos no filme. Quem é, no filme, esse alienígena, essa origem estranha, o estranho, o outro: o logos que se achega e chama?

A vida, por ex., a vida que somos, às vezes, ela nos é familiar, mas, noutras vezes, em muitas outras vezes, nos é bem estranha. Essa não familiaridade, essa não amizade, poderíamos até dizer: inimizade da vida com a gente, mostra-se como na adversidade de uma batalha com um inimigo que nos desafia, nos provoca, nos insulta, nos fere. É como se esse inimigo chamado vida, a vida na qual estamos, nos desse, em meio à sua chegada, “um soco no estômago”. Não é à toa que Clarice diz: “A vida é um soco no estômago”. Mas essa linguagem implicante é sempre um presente ainda que nos pareça inimiga. A linguagem, na verdade, não é nem uma coisa nem outra, ela apenas é. A linguagem fala como quem dá um presente. Quem tiver ouvidos para ouvir, ouça!

Há um difícil verbo, que vimos e ouvimos no filme, que nos interpela e apela em meio à dor e alegria, na forma de um estranho encontro com o alien, com esse estranho que é a vida — esse outro que deseja achegar-se bem próximo, aprochegar-se tocando, abraçando. Que verbo é esse que aparece no achego da fala de Louise? Acolher. Logos vem do verbo legein e pode ser traduzido de várias formas imprecisas: “verbo”, “linguagem”, etc. Mas, segundo a sua forma grega mais antiga, ele diz: “colher”, “recolher”, “juntar”. Trata-se de um verbo que, no filme, está dimensionado por uma grande aceitação, que sabe acolher dor e prazer, alegria e tristeza. Essa acolhida que sabe afirmar tragicamente a vida diz respeito a um conceito central no pensamento de Nietzsche. Em um aforismo da Gaia ciência, intitulado “O maior dos pesos”, Nietzsche diz:

E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: “Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terá de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem — e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente — e você com ela, partícula de poeira!”. — Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?‟, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela?

Quem é mesmo, no filme, o alienígena, esse de origem estranha, o estranho, o “demônio”, o outro que se achega na conversa? Ele é todo estranho que nos chama para um achego nem sempre aconchegante. O eterno retorno da vida é a chegada insistente e impertinente de um estranho que quer ser acolhido — acolhido com coragem e doçura.

Eduardo Campos

Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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