A CONCUPISCÊNCIA DO OLHAR MODERNO

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readDec 15, 2017

O “politicamente correto” em questão

Foto: Andrés Campana S., Flicks. Vigias de la Pedrera, Barcelona, Espanha

Como é difícil ser homem nos dias de hoje!… agora mesmo, por exemplo, quando estas linhas são escritas. Mas por quê? Resposta: um grande olho me olha, me vigia, me filma. Não, não é o olho de Deus, do “Salvador do Céu”. Foi-se o tempo!

A beatice cristã transformou-se em uma beatice não menos beata, não menos terrível e concupiscente, qual seja, aquela cujo olho tem nome e sobrenome: o olho acadêmico-midiático-social-democrático-cibernético, um olho também conhecido como: “politicamente correto”.

Esse olho quer controlar, dominar, intro-meter-se com seu olhar despudorado. Por detrás de seu espírito irrepreensível de “bom cristão”, ou de “socialista engajado”, esconde-se a volúpia de um olhar lascivo (Na verdade, dá no mesmo! Ambos, à sua maneira, são afeitos a reprimendas; e quando se cruzam partejam uma forma mais grave: “cristão socialista”).

Seria este texto a confissão do sentimento patente de um pecador pego em flagrante delito? Bem, a evidência em torno de ser “um flagrante”, é claro, nem se discute; mas não é exatamente por isso, na verdade. É um pouco antes disso: diante de tal olhar me ocorre um sentimento de pudor. Contudo, esse pudor sagrado pode saltar para a culpa tão logo não irrompa a coragem da fé saltando para diante, em frente, contra a má-consciência chafurdando-se no pecado.

Chegará o dia em que até suspiraremos com saudades de pecar em paz!

O olho concupiscente do passado tinha ao menos mais facilidade para esquecer, ou seja, perdoar. O olho concupiscente do nosso presente-futuro conhece o pecado, mas não conhece o perdão: as câmeras refrescam sempre a sua memória, não dá nem tempo para um bom esquecimento. E o “ressentimento”, já dizia Nietzsche, é coisa típica de quem tem boa memória ou câmeras espalhadas por aí.

Mas voltemos à tese: “…é difícil ser homem nos dias de hoje!…”. Parece coisa de velho melancólico, sentimental, nostálgico, saudosista, aposentado, jogador de baralho na praça. Será mesmo? Mas que é “ser homem”? Vejamos.

Com a expressão “é difícil ser homem” não quero dizer exatamente que seja difícil pertencer ao gênero masculino. Isto seria pouco, pequeno, menor. Homem aqui tem a mesma dimensão usada pelo grego Diógenes, o cínico, quando saía pelas ruas durante o dia com uma lanterna nas mãos, dizendo: “Procuro um homem”.

Pronto! Acabei de cometer um deslize social-democrático. Para atualizar a formulação de Diógenes, de acordo com os ditames modernosos, deveria ter dito: “Procuro um x.” ou, talvez, “Procuro um humanx.”.

Quem de nós seria capaz de confrontar esse inegável pressuposto democrático? Ninguém. A propósito, “Ninguém” é o nome que Kierkegaard conferia àquele tipo totalmente absorvido pela “multidão”, pela “política”, pelo “público”, ou, como diria Nietzsche, pelo “rebanho”.

Pronto, cometi outro deslize! “Quer dizer que unir-se à multidão, ‘curtir’ o domínio público, não seria algo bom? Mas é tão óbvio que sim?”. De outro modo, quem não faz coro com isso é enquadrado na categoria de “conservador”, “liberal”. O açodamento desse tal olhar concupiscente é moral e cheio de certezas.

Aliás, vale dizer, esse olhar despudorado não é privilégio de um lado político, de uma determinada bandeira, i.e., não é privilégio nem do “reacionário” nem do “revolucionário”, nem da “direita” nem da “esquerda”. “Direita” e “esquerda”, como diz Ortega y Gasset, são modos de uma “hemiplegia moral”, decorrentes de uma grave apoplexia humana que esquece um lado da vida, poderíamos até dizer, é coisa de manco ou perneta (Ai! De novo!…).

Sim, é coisa da nossa época, coisa da “multidão”, um ímpeto que sempre esteve por aí, mas que só agora ganhou musculatura com a hegemonia do pensamento controlador da técnica, da cibernética, ou melhor, com a hegemonia de todo pensamento moderno que nivela e iguala sob um determinado olhar — um olho que promete um dia ver tudo, não deixar escapar nada.

Qual a razão disso? “Melhorar a vida, melhorar o homem, transformar a sociedade, dar maior segurança, reverter os percalços da existência”, blá, blá, blá, ou seja, colocar cabresto na história humana, corrigir cientificamente a vida acusada de ser um erro, haja vista que não podemos mais crer de outra forma.

“Que heresia! Isso não seria amor ao próximo?”, exclama e interroga o “bom cristão”! Infeliz! Ele não pode ver o invisível — mas um espectro ronda a nossa época, ainda mais poderoso e dissimulado. Possui o mesmo olhar concupiscente de toda história humana, mas agora com um agravante: ele detém as lentes de aumento da ciência e o auxílio do falatório da mídia. A mesma mídia que um dia acende uma vela para a “direita” e, em outro dia, uma vela para a “esquerda”; é claro, ela precisa ser agradável em seu papel social. Por isso, da mídia, no fundo, morrem de ciúmes tanto a “direita” quanto a “esquerda”.

O verbo grego múo (raiz de “mística”) diz “fechar os olhos”. Eis aí a concupiscência moderna: ela não pode fechar os olhos; e o não-ver é a única medida para o ver. Por querer ver demais, o olho do espírito moderno é encegueirado, é cego.

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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