A fé do Romualdo

Valdemar Figueredo
Instituto Mosaico
Published in
3 min readAug 11, 2017

Na fila da cesta básica, muita gente pede comida pela primeira vez na vida

Fotografia: Estefan Radovicz / Agência O Dia

Às 4h da matina, começa a se formar uma fila na Travessa do Paço, bem no Centro do Rio. O pessoal que praticamente acampa ali não está em busca de emprego. Todos têm seu cargo, obtido à custa de concurso público. Também não estão interessados em programas oficiais de distribuição de renda, já que têm seus rendimentos — ou deveriam tê-los. Aqueles homens e mulheres, em sua maioria acima da meia-idade, são servidores, aposentados e pensionistas do Estado do Rio de Janeiro. Eles enfrentam cinco ou seis horas de pé ou sentados na calçada para receber as cestas básicas distribuídas pelo Movimento Unificado dos Servidores Públicos do Estado (Muspe), que capitaneia uma arrecadação permanente de gêneros alimentícios para os sem-salário.

Na fila, ouvem-se relatos de dificuldades e dramas pessoais. A maioria dos servidores que acorre mensalmente ao Muspe não recebe seus vencimentos ou proventos desde maio. Do 13º do ano passado, nem sinal — e já ninguém mais se atreve a fazer planos para o abono de Natal deste ano, cuja primeira parcela deveria sair agora, em agosto. O que recebem são pequenas parcelas de 500 ou 700 reais, em intervalos de até vinte dias, porque a instituição à qual são vinculados há décadas alega não ter recursos para remunerá-los conforme determina a lei. É que o Estado do Rio vem sendo saqueado e mal administrado há sucessivos governos e o mandatário atual (aquele do spa em Penedo) alega que o caixa secou. Um dos saqueadores já é criminoso condenado e está preso. Na fila diária das cestas básicas, alguém diz “bem feito” porque Cabral está sofrendo na cadeia pública de Benfica. É o furor impotente de quem teve roubada a própria dignidade.

Pedir comida para sobreviver é uma realidade para cerca de 15 mil pessoas em situação de rua no Rio de Janeiro. Ali mesmo, no Centro, a gente vê centenas delas na Cinelândia, na Lapa, no Boulevard Olímpico (ah, o Boulevard, que há um ano fervilhava de gente na empolgação da Rio-2016). Mas o que vilipendia os funcionários públicos da fila da Travessa do Paço é ter de fazê-lo pela primeira vez na vida porque bandidos do Palácio Guanabara se apoderaram do que, por direito, lhes pertence.

No elevador do prédio que abriga o Muspe, após resolver uma questão profissional, encontro o seu Romualdo. Ele está com sua cesta básica, recebida mediante a apresentação do contracheque — providência necessária para evitar que espertalhões se aproveitem da penúria alheia. “Aqui é Brasil, né?”, justifica o encarregado da entrega. Os poucos segundos entre o 13º andar e o térreo são suficientes para que eu fique sabendo que Romualdo trabalha na Secretaria de Estado da Saúde há “trinta e poucos anos”. O barnabé conta que passou Natal e ano novo com os R$ 300 reais que recebeu em dezembro. Com o jeito meio encabulado de quem tem vergonha na cara, o coroa magrinho diz que a situação está feia, de um jeito que ele, aos 63 anos de idade, nunca viu. Todavia, quando o “blin-blon” anuncia o fim do encontro fortuito, ele sorri e conclui: “Mas, Deus é bom, né?”. Ao pessoal da fila na Travessa do Paço, só resta, mesmo, a revolta ou a fé. Romualdo prefere a segunda.

Carlos Fernandes tem 50 anos e é carioca. Jornalista, editor e redator, passou vinte anos na direção das revistas de informação cristã Vinde/Eclésia e Cristianismo Hoje. Hoje, trabalha no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e faz produção editorial e preparação de textos para diversas editoras.

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