A GRAÇA DA ANTIPATIA

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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4 min readAug 6, 2018

Por Eduardo Campos

Foto: Vitaliana Floresta, Flickr

Num certo sentido não há nada mais passional que a antipatia e nada mais indolente, apático, que a simpatia — sim, num certo sentido (É bom que se diga!). Ambas ardem, mas em direções opostas. Ao ser tocada em sua pele sempre exposta, a sim-patia serve rapidamente ao outro ofertando-lhe seu “sim” de secretária resignada, sempre atenta aos caprichos das idiossincrasias alheias. Todo seu corpo expõe apenas a nervura para o sentido da etiqueta e da cordura. Para cada toque voluntarioso, que lhe atinge o corpo pelo lado de fora, desperta-se nela, em sobressalto, uma resposta involuntária, recíproca, automática, condizente com uma ética afetada, cortês e principesca. Mas, dentro de si, uma capa espessa lhe embota o coração à própria paixão. A espessura interna desse embotamento é diretamente proporcional à cordura de seus bons costumes e proporcional ao seu riso aprazível à procura dos olhares das gentes.

Os anti-páticos sofrem a saúde de uma espécie de pele hanseniana. Uma agulhada de simpatia inconformada pode até tentar atingir a superfície rude de sua pele arredia, exigindo de si um pronto retorno em atenção à cortesia de uma determinada afeição que lhe dedicaram. Mas uma face anti-pática é uma paisagem inabalável voltada para fora, derramando-se por dentro como o jorrar de um Vesúvio anímico. Nenhum arroubo vindo de fora é capaz de lhe roçar a pele insensível da etiqueta. Mas não é propositado, intencional, esse modo de ser implacavelmente insensível aos gestos atenciosos do externo. Ele é disperso cada vez mais do corriqueiro modus operandi dos costumes, à medida que imerge metido altaneiramente no autismo de uma tarefa inadiável. Contudo, a indiferença externa da anti-patia pode até aparecer de maneira graciosa. Isso apareceria, por exemplo, na completa excentricidade de um Quixote, ou no concêntrico diálogo da criança brincando absoluta consigo mesma; mas quando repugnante, aparece como a taciturnidade de um casmurro e inveterado servidor público em fim de carreira. O tipo anti-pático é, por dentro e por fora, uma inocência concentrada, largada por inteiro em si, incapaz de agradecer a quem lhe abre a porta cordialmente. Entretanto, no seu caso, ser “mal-educado” esconde uma grande virtude!

Esse quem que lhe abre a porta se refere à identidade de um simpático que está frequentemente magoado com a indiferença externa da “antipatia”. Impaciente então com a não prontidão da resposta recíproca, o simpático “destrói” o antipático difamando-o nos encontros de sua comunidade de simpatizantes. Por isso, estando à parte, o leprosário é o destino mais certo para o cuidado de sua pele hanseniana. O leprosário é o canto inevitável sempre que alguém se encontra contido dentro da ardência do próprio recôndito. O leprosário é o deserto certo da solidão de uma anti-patia vital — sim: vital! É bem verdade que existe aquele típico antipático casmurro que sofre com os efeitos deletérios da não correspondência simpática, e como decorrência da frustração com a sua simpatia malograda, converte-se todo em antipatia, agravando-a no fechamento orgulhoso que concresce da simpatia não correspondida. Evidentemente, não é desse tipo que tratamos aqui, pois esse é apenas um simpático às avessas.

Mas qual é a natureza da vitalidade da anti-patia? Obviamente, como acabamos de dizer, não estamos tratando exatamente da antipatia enquanto sisudez, cara amarrada, carranca, despeito sobranceiro, etc.; além disso exageramos propositadamente no traço altruísta da simpatia para deixar aparecer o seu incômodo consigo mesma, i.e., para deixar aparecer o “seu mau amor” a si mesma, como diz Zaratustra. O simpático costuma entrever na antipatia do antipático um sinal sinistro que indicaria a acusação velada de um erro grave e imemorial. Esse erro que estranhamente sente ter cometido contra alguém se atualiza no rosto aborrecido do antipático. É por essa razão que tenta seduzi-lo com suas cordialidades.

A simpatia pode estar escondendo uma culpa atroz, e seu gestual gentil funcionaria como um doce feitiço que tenciona desfazer a facies aborrecida de um juízo que impiedosamente a invade e perscruta. Sua simpatia é justamente a tentativa desesperada de obter no riso forçado do outro um refrigério provisório para sua própria redenção. E, por essa razão, o simpático pode ser de todos o mais indolente, o mais indiferente a tudo, o mais apático de todos: o mais inimigo. Sua sim-patia é o patético sinal de sua dependência do pathos alheio. Somente o anti-pático é a resistência que se opõe espontaneamente contrariando a expectativa sim-patética desprovida de uma salutar e flamejante ardência. Sua anti-patia é a resistência que o guarda de se perder de si mesmo, de seu próprio pathos, impondo assim ao outro, que é atingido pelos seus golpes anti-páticos, a mesma necessidade vital de forjar sua própria resistência apaixonada.

A aspereza de sua pele, a rudeza de sua alma, a dureza de seu punho, protegem a candura amorável de onde suavemente se destila melíflua lava incandescente, que escorre com vagar da mais pura amizade. Somente ele é verdadeiro amigo, porque somente nele o rosto sério do silêncio é cio.

Eduardo Campos. Doutor em Filosofia (UFRJ), Mestre em Filosofia (UFRJ), Especialista em Filosofia Moderna e Contemporânea (UERJ), Licenciado em Filosofia (UFRJ). Atua como pesquisador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Psicopatologia e Subjetividade (IPUB/UFRJ). Professor do Instituto de Psicologia Fenomenologico-Existencial (IFEN).

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