A IDEOLOGIA DO RISO: QUANDO A RISADA SE FAZ HUMANA

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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6 min readJul 4, 2019

Por Bruno Rocha

Do que você ri? Com quem você gargalha? É contra quem ou a favor de quê sua risada? Começo com essas perguntas porque, as respostas formuladas a partir dessas questões, tanto no âmbito individual como no social, influenciam diretamente na qualidade das relações sociais que construímos. De maneira breve, gostaria de apresentar algumas reflexões sobre a risada a partir da linguagem da palhaçaria, uma das vertentes cômicas mais antigas que se tem registro.

Foto: Renato Targa, visualhunt.com

Para começar, se faz necessário construir uma nova imagem sobre a palhaçaria e como que ela se estabelece na história. Para que o assunto se torne mais interessante, de forma fraternal e pedagógica, é preciso avançar quanto às propostas comuns de utilização dessa figura cômica, como, por exemplo, Patati-Patatá, palhaços de festa (maquiagens de rosto/esculturas de balão), antigas e atuais produções cinematográficas de “terror”, assim como a associação recorrente que se faz dos políticos corruptos ao nariz vermelho. O objetivo aqui não é menosprezar ou dogmatizar os jeitos de se fazer palhaçaria ou mesmo a utilização do termo, mas marcar que a discussão está partindo de outro ponto.

É certo que a bobeira sempre existiu. Penso que depois de uma bronca, de um tropeço ou de um pum — em todas as culturas — alguém sempre deixou escapar uma gargalhada junto aos que assistiam a situação, principalmente se houvesse alguma estância hierárquica na situação, gatilho imprescindível para despertar o desafio da subversão e desobediência de um momento sério/solene. Ou seja, o ser humano é o ser que sabe que ri, percebe aquilo que é risível e descobre os mecanismos que lhe causam a risada, além de buscar, mesmo que inconscientemente, situações (felicidade) que o agradam nos mais diversos sentidos. Como resume Aristóteles: “O homem é o único animal que ri”.

É por isso que em todas as civilizações, o palhaço, clown, grotesco, truão, bobo, excêntrico etc, se faz presente sem estar necessariamente de maquiagem, nariz vermelho ou mesmo um sapato desajeitado. Basta o medo aparecer, a culpa se apoderar, que a risada é evocada como ponto de escape/alívio; como nos Autos religiosos da idade média, onde o diabo, ao ser representado, vai sempre ser ridicularizado, e o carnaval potencializa essa relação de escárnio e desobediência através do riso popular, que não se dá apenas em relação ao espírito mal, mas sobre a própria religião como um todo, apontando pontos (tristeza-alegria) e contrapontos fundamentais para o desenvolvimento da existência humana.

A religião vai se apoderar dessas lógicas em todos os tempos e lugares. Na cultura ioruba, por exemplo, Egun-gun; entre os índígenas norte-americanos, Heyokas; entre os orientais, Mi-tshe-ring e Rotgs-Ldan; entre indígenas brasileiros, Hotxuá; a maioria desses eram presentes em cultos e rituais, sempre fazendo contraponto ao mal e a morte, sempre em gritos, danças, exageros, risadas e ridiculices. Além das religiões, os impérios antigos sustentavam e ostentavam seus bufões, garantindo aos seus anões, corcundas e mancos a autorização de subverterem ideias com uma sabedoria rápida e sagaz, própria dos que sobrevivem à margem.

Fato é que, o palhaço que conhecemos hoje, veio de uma tradição vasta e complexa dos teatros de feira, saltimbancos, mímicos, da commedia dell’arte e do circo inglês do século XIX, que, a partir dessa vasta e histórica linhagem cômica, resistiu, lutou e se reinventou, dando espaço ao erro empático frente ao preciosismo. É assim que no Brasil, palhaço Polydoro era o “espantaio das negas veias…”; Pompílio e sua risada escandalosa especializaram-se “na graça política”; Piolon, “o maior palhaço do mundo”, virou desenho em selo para cartas; e Carequinha já falou, “o bom menino não faz pipi na cama”.

A partir de outra linha da palhaçaria, Avner, um palhaço americano herdeiro da comédia física de Dario Fo, Carlo Mazonne-Clementi e Jacques Lecoq, sistematiza o seu fazer artístico através de uma lógica particular corporal, o qual, além de transformar sua fraqueza em força cênica, subverte a lógica do olhar, estabelecendo outra forma de residir no mundo. A alternância entre erro e fracasso que faz o público se entreter em novas e impossíveis soluções, o mergulho profundo na nudez e inadequação humana, que faz com que se encontrem características universais independente da cultura que se vá, é o que esse palhaço aponta, trabalha e vivência, não como um personagem à parte, mas como agente responsável por aquilo que faz.

Para caminharmos para o final, é preciso saber que a risada é a própria expressão de um transbordamento interno a partir do externo, mesmo que seja sobre nós mesmos. O riso se dá sempre em análise e percepção de algo ou de alguém. O palhaço, assim como qualquer outra figura cômica não explica, ou não precisa explicar sua piada. Por isso, se deve ter sempre o cuidado sobre onde mora o seu “transbordar” ou, onde estão fincadas as subjetividades ideológicas do seu humor; sobre onde e sob o que se construiu o seu riso; a partir de qual lógica, o que ele subverte e o quanto ele pode construir ou descontruir, fomentar ou destruir comportamentos plurais, favorecendo ou não os mecanismos de opressão e injustiça.

O riso popular teve pouco prestígio nos círculos intelectuais e em pesquisas, principalmente pelo seu caráter de desenvolvimento marginal, na irregularidade de impérios burgueses que ditavam o que era valido e o que não. O motivo disso, como disse Bakhtin, era porque “o riso popular [na idade média] opunha-se à cultura oficial, ao tom sério, religioso e feudal da época”. Como já dito, esse riso se deu em carnavais, ritos e cultos cômicos, bufões, palhaços, tolos, gigantes e anões, mostrando que onde há vida existe escape-escarnio. Esse estado tem a capacidade de profanar o sagrado e trazer de volta à carne aquilo (liberdade) que lhe pertence, além de ser essencialmente subversivo, tornando a vida em um estado de jogo constante no suportar das opressões.

Então, prefira o riso popular do palhaço ao satírico, sabendo que o popular expressa uma opinião de mundo em evolução no qual estão incluídos os que riem, já o satírico-burguês, o humor negativo que destrói o outro, é individual e se encontra fora do alvo da piada. Assim, a sabedoria popular dos bobos reside “nos antigos dialetos, dos refrãos, dos provérbios, das farsas dos estudantes, na boca dos simples e dos loucos”, e acrescento, na anarquia boba dos corpos indisciplinados que se movimentam “na força profética” da inadequação completa. Dessa forma, ria de tudo o que quiser, mas saiba sobre qual ideologia reside a ética do seu riso.

“O palhaço é o sacerdote da besteira, das inutilidades, da bobeira… Tudo que não tem importância lhe interessa” Alice Viveiros de Castro

Bibliografia:
O elogio da bobagem — Alice Viveiros de Castro
Caminhos para uma palhaça: Investigação a partir da obra de Avner, The Exccentric — Ana Carolina Sauwen
A cultura popular na idade média e no renascimento — Mikhail Bakhtin

Bruno Rocha

Palhaço, professor e pastor. Formou-se em bacharel em Teologia (FTBSP) e atualmente cursa Teatro (IFF). Seus temas de reflexão são: arte, educação, teologia da libertação e palhaçaria.

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