A MÍSTICA DO NATAL: UMA PROPOSTA DE LIBERDADE

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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6 min readDec 20, 2019

Por Bruno Rocha

Foto: Matthew Henry, Burst

Se afirmar cristão é um ato político. Tanto para aqueles que estão aparelhados com a teocracia conservadora vigente ou para aqueles que disputam, de alguma forma — para alguns em vão — esse nome atrelado à uma reflexão mais livre, desobediente e mística. Não só o cristão, toda e qualquer tradição religiosa se dá dentro de parâmetros sociais, econômicos, de gênero ou de raça, afirmando assim, um lugar sociológico da religião. Se identificar umbandista ou candomblecista no Brasil, por exemplo, é um ato mais que político. Num país onde se mata, se prende e se demoniza tudo que seja negro/mulher, ser religioso é um ato de insurgência e sobrevivência.

Partindo, então, da experiência cristã (não sem considerar toda sua história de violência, colonização e patrocínio junto aos poderes — da direita à esquerda), é necessário descobrir nesse tempo novos caminhos de enfrentamento, fazendo com que a reflexão teológica e científica da religião se faça presente. Sabendo que esta, tem tanto o poder de eleger bolsonaros quanto de destruí-los. Para que assim se faça, refletir sobre aspectos centrais dessa fé (Jesus) pode ser uma das chaves de diálogo junto ao povo, afim de redescobrir caminhos da fé a partir da autonomia do pensamento e consequentemente, da transformação daquilo e como se acredita.

Pelo calendário litúrgico, estamos no período do Advento. Esse novo ciclo prepara os fiéis para o natal — nascimento de Jesus. Nesse tempo, renova-se os votos da fé, os vínculos, e o clima de vigilância entorno da chegada da criança como esperança de que Deus ainda se localiza entre os cativos, é instaurado. Pode-se dizer que, aquilo que o povo de Israel experimentou no Êxodo (libertação, aliança e esperança) estava prestes a se repetir. Mas agora, não mais a favor de um só povo, mas a todos os privados de liberdade política/espiritual; os impedidos da possibilidade de esperançar a vida; com acesso livre para buscar um reestabelecimento gratuito e universal entre o Sagrado e a humanidade.

Nesse clima de tensão uma mulher é visitada e a esperança anunciada. Depois do anúncio, Maria vai para a casa de sua prima compartilhar e celebrar a beleza da maternidade divina e revolucionária que fora anunciada à ambas, como boas novas de esperança e presença inédita do Mistério encarnado entre a humanidade:

Minha alma engrandece ao Senhor, e meu espírito exulta em Deus, meu Salvador, porque olhou para a humilhação de sua serva. Sim! Doravante as gerações todas me chamarão de bem-aventurada, pois o Todo-poderoso fez grandes coisas em meu favor. Seu nome é santo e sua misericórdia perdura de geração em geração, para aqueles que o temem. Agiu com a força do seu braço, dispersou os homens de coração orgulhoso. Depôs poderosos de seus tronos, e a humildes exaltou. Cumulou de bens a famintos e despediu ricos de mãos vazias. Socorreu Israel, seu servo, lembrando de sua misericórdia. (Lc 1.46–54)

É interessante notar que o relato bíblico, momentos antes dessa declaração, vai dizer que esse milagre acontece em um corpo virgem. Essa informação não é importante nem para o milagre em si e nem para a perpetuação da “virgindade” como virtude-santidade, onde ao longo da tradição, perpetuou-se inúmeros esteriótipos sobre a sexualidade/imagem da mulher, além de contribuir com a perpetuação do patriarcado. Mestre Eckhart, místico cristão do séc. XIII, diz que: “‘Virgem’ diz o mesmo que homem livre de todas as imagens estranhas [construídas de Deus], tão livre como era quando ainda não era”. Adriana Andrade de Souza comenta afirmando: “Virgem quer dizer a receptividade absoluta de Deus na alma.” A virgindade evocada na figura de Maria tem mais a ver com a liberdade de toda e qualquer imagem já pré-concebida, propriedade institucional ou resistência racional ao mistério de Deus do que qualquer proposta moral. A espiritualidade desprendida, desprovida de qualquer apego prévio, torna a alma livre (virgem) para a concepção do Filho.

A experiência de gerar uma vida transborda a virgem em toda beleza, amor e liberdade que Deus, do mesmo modo, experimenta em sua criação. No mistério da concepção do filho de Deus, Maria exclama o caráter, o propósito e a ética de Deus, realizada não apenas nesse caso, mas em todos os nascimentos humildes e “virginais”. O nascimento dos pobres é o grito desobediente de Deus à ordem vigente! Jesus é filho da esperança de um Deus que faz grandes coisas pelos menores, além de mostrar que o seu braço pode agir com misericórdia por esses, mas também com força impetuosa aos soberbos de coração. O nascimento de Jesus no mistério de Deus é o ato de destronar os poderosos para que os humildes assumam o controle de suas vidas, detenham os bens e os meios de suas próprias produções além de efetivar uma ação direta de Deus: “Encher de bens os famintos e despedir sem nada os ricos”. Ou seja, Deus despede os ricos de mãos vazias pois toma deles para dar aos necessitados.

O projeto de Deus em Jesus é o anuncio de seu “reino” (figura de linguagem para “realidade”, “dimensão”, “espaço”) a partir da ética profética e libertária anunciada por Maria. O projeto de Deus em Jesus é a superação da religião e das autoridades religiosas/políticas, proporcionando abertura do caminho misterioso desse espaço onde a ética de Deus habita e deseja que todos habitem. O nascimento de Jesus é o símbolo de que todo nascimento contem a centelha do anuncio dessa dimensão. Tanto que esse projeto vai se construindo processualmente na vida de Jesus. A dimensão “Cristo” se faz no discipulado, nos embates, nas conversas com muitas mulheres, na meditação, no deserto e em tantos outros espaços e situações, se estendendo posteriormente a sua comunidade.

Um dos maiores erros da história do cristianismo foi a interpretação equivocada sobre a figura e propósito do próprio Jesus, seu nascimento e sua mensagem. Jesus anuncia o Reino de Deus, enquanto a cristandade e seus discípulos vão anunciar o nome do próprio Jesus. De profeta, anunciador, ele vira a própria mensagem e o fim:

Eu te glorifiquei na terra. Terminei a obra que me deste para fazer. (Jo 17.4) Manifestei o teu nome aos homens que do mundo me deste. Eram teus e os deste a mim e guardaram a tua palavra. (Jo 17.6) Porque eu lhes transmiti as palavras que tu me confiaste e eles as receberam e reconheceram verdadeiramente que saí de ti. (Jo 17.8) Manifestei-lhes o teu nome, e ainda hei de lhes manifestar, para que o amor com que me amaste esteja neles, e eu neles. (Jo 17.26)

Para encerrar, é necessário rever as imagens construídas sobre Deus. Rubem Alves diz que:

Deus nunca foi visto por ninguém. Por acaso a gente vê os próprios olhos? Quem vê os próprios olhos é cego. Para ver com os olhos é preciso não ver os olhos… Deus é como os olhos. Não podemos vê-lo para ver através dele. Deus é um jeito de ver.

Sendo assim, Deus é um modo de olhar e, se esse modo é forjado no dogma, no acumulo e na opressão, esse deus diz mais sobre um ser criado a imagem e semelhança daqueles que se assumem donos delem do que de fato ele seja. Denunciar o poder em si é papel daquele que segue a construção crística em Jesus e Maria; Compreender que se segue a Cristo assim como a mensagem anunciada por ele revela uma realidade maior que ele mesmo, é de fato um amplo caminho verdadeiro de vida; Deus, assim como no Êxodo sempre intervem para a liberdade do povo e isso condiz com as características de um Reino que reivindica a liberdade, pois foi para ela que Cristo, a partir das palavras de Deus, nos chama.

O cântico de Maria forja um caráter de graça sobre todos, onde a presença profética de uma criança gestada no espirito do Cristo aponta para a destruição do estado e dos poderes capitalistas desse mundo. Esse mesmo espirito evoca alternativas comunitárias, autogestionadas, fora do domínio de toda e qualquer autoridade. Enfim, o Natal efetiva na história um espirito anarquista envolto ao Mistério da vida.

Feliz natal.

Bruno Rocha

Palhaço, professor e pastor. Formou-se em bacharel em Teologia (FTBSP) e atualmente cursa Teatro (IFF). Seus temas de reflexão são: arte, educação, teologia da libertação e palhaçaria.

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