A MENINA QUE RENASCEU: ENTRE MÁQUINAS E O BARRO QUE SOMOS FEITOS

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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9 min readAug 19, 2019

Por Carlos Netto

Foto: Itati Tapia, Canva

Era uma vez, no reino não tão distante, uma menina chamada Talita. Ela é uma das sobreviventes do rompimento da barragem do Córrego do Feijão, em Brumadinho (MG). Tem apenas 16 anos. É comum contarmos estórias com princesas, castelos e os desafios da vida e morte. Crescemos com elas. Soube que a diferença ortográfica entre estórias e histórias caiu na última revisão da Língua Portuguesa. Aqui me refiro ao sentido entre ficção e realidade. Volto ao passado então destacando as diferenças entre “estória” e “história”. Bruno Bettelheim escreveu, no livro “A Psicanálise dos Contos de Fadas”, sobre o poder que estórias possuem de organizar o nosso mundo infantil. Ele acredita que as crianças, através das estórias, são convidadas a identificarem-se com os protagonistas e, assim, receberem uma dose de esperança. É um momento especial da vida quando organizamos a base do mundo que aprenderemos a com-viver na formação do caráter. Bettelheim acredita que os contos são úteis para que a criança tenha confiança em sair-se vitoriosa, mesmo sobre um oponente muito mais forte. Da criança ao adulto, pela tese de Bettelheim, quero ir da estória à história. Organizar o mundo é desafio perene, inclusive da fase adulta. São etapas da vida. Preciso de esperança humana que dê alguma sanidade diante da realidade do Brasil. Isso me levou ao encontro da Talita.

Assim como eu, Talita nasceu para ver o mundo. O mundo deveria ser sua casa. A melhor casa que pudesse ser. Nascemos delicados, pois tudo que nasce é delicado. É a nossa natureza, somos assim. Nascemos para o encontro com o outro. E o que fazemos dele? Ele é por vezes distante. Nos fazemos distantes. Quero falar aqui sobre a distância do encontro do eu com o outro onde perdemos a delicadeza. Talita me alerta que o mundo existe para que eu o sirva. Este mesmo mundo que me sobe à garganta como um soluço quando ouço o que viveu. Deveríamos mostrar nossa face, quando nossas decisões provocam o outro que comprovadamente sofre pelo que fizemos. Eles nem sempre devolverão agressão em troca. Podem ser, talvez, um espelho quebrado da nossa própria imagem. Acredito que, ao invés de fazerem mal, elas podem reconfigurar nossa imagem pela força que demonstram. Não conseguiremos fazer isso sem olhar nos olhos. Nenhuma apresentação e relatório, em salas no topo de prédios para vitoriosos executivos, fará isso.

Somos um país de sofrimento e, acima de tudo, indiferença.

Preferimos notícias sobre o beautiful people, sobre os heróis da renda e do consumo, sobre aqueles que criam a ilusão de um triunfo cuja medida está no desnível humano que separa aquele que “triunfa”, no alto do seu pináculo, do pequeno homem (ou menina) do povo, no vale de lágrimas. Vale que uma vez lançado o ser, precisa, por sobrevivência, emergir e, assim, nos ensinar o que não se deve fazer. Talita é uma vida a ser guardada com aquilo que de melhor tivermos. É um exemplo que fala do presente e aponta para o futuro. Se é que desejamos ter alguma chance de futuro como humanidade. É a história da sobrevivente diante da máquina do mundo rangendo seus dentes de metal, seus parafusos que chocalham como os pequenos ossos de um enorme esqueleto, numa dança macabra. Chora o ser humano na máquina do mundo, ferida na essência pelo aço produzido pelo minério que os homens chamam de “ouro negro”.

Esse mundo ouve comandos dados por homens. Não nos enganemos sobre isso. Não se trata de uma máquina involuntária que se move sem comandos. Como seres humanos que pensam com autonomia, nos levantamos para destinos e ordens distintas. Fazemos escolhas. Pisamos o mesmo chão do mundo. Mas evitamos os olhares. Podem ficar marcas que coloquem em risco nossa capacidade de decisão. Alguns evitam esse encontro. Assim, não conversam mais, não choram mais, não se comovem mais, não amam e nem desamam. São, até a loucura, aquilo que não atrapalha o negócio que põe a máquina em funcionamento. A máquina, segundo eles, possui suas virtudes. De alguma forma, criam vida, geram empregos, trazem a dita prosperidade. A questão é como operar a máquina e o que fazem no intermezzo entre o operador e quem vive o resultado daquilo que ela produz. A história da Talita carrega a esperança que o nosso destino humano nos transforme. O preço da graça que recebemos é nos mantermos fiéis a ela. É nos tornarmos os porta-vozes dela. Nos fazermos a voz dela, a linguagem dela. A graça quer aceder o mundo através da nossa boca que fala, das nossas mãos que escrevem. Precisamos colocar o nosso corpo e ser em movimento para que, um dia, possamos nos calar em dignidade. Merecer o silêncio da noite.

Ainda vivendo o dia, precisamos da esperança que nos dê alguma sanidade. Isso me levou ao encontro da Talita. Seu nome em aramaico significa “a menina que renasceu”.

Morava poucos metros de uma pousada que foi toda destruída e ninguém sobreviveu. Sua mãe escolheu o nome para filha ao vê-lo estampada na marca da caixa de sapatos em uma loja. Mal sabia ela o quanto o significado do nome marcaria os passos da filha: renascer. Talita chegou em Brumadinho quatro dias antes do rompimento da barragem. Foi morar com o tio. A mãe morrera pouco tempo antes. Amava a prima, dois anos mais nova. Isso ajudou na adaptação à nova casa. Quando a lama veio, encontrou-a encolhida em um dos quartos. De início um barulho estranho. Ela viu imaginou o rio que transbordara. Andava em círculos pela sala sem saber o que fazer. É o que lembra. Até se encolher no canto de um cômodo como o feto que espera nascer, talvez inconscientemente assustado sem saber o que virá. Se protegeu como pode. Não foi preparada para viver aquela situação. Não imaginava que algo assim pudesse acontecer. Alguém imaginava? Passo a me perguntar. Nossas decisões exigem prioridades. Quais são elas? Digo para mim mesmo enquanto escrevo. Não sou juiz do mundo, mas da minha própria existência.

A lama, como uma onda, levou tudo. Talita diz ter se sentido como no liquidificador. Subia e descia. Teve várias fraturas, inclusive na bacia. Lembra de estar mergulhada e também do azul do céu quando emergia. Choramos juntos. Ela conta sua história. Nem um outro ser constrói a história que não o ser humano. Só ao ser humano coube esse ato de coragem capaz de dar forma ao mundo: contar sua história. Talita passou por cirurgias. Outras virão. Tem marcas no corpo. Deseja ser enfermeira. Quer ajudar quem precisa de ajuda. Creio que ela encontrou também nesse sonho uma forma de se ajudar. Na adolescência já entendeu que a vida nos faz buscar ferramentas para nos ajudar a ser. É um dos seus dois sonhos. O outro é ir à Disney e entrar na monta-russa mais alta que puder. Ela sorri. Sonhos fazem bem e projetam o espírito em territórios onde o corpo ainda não alcança. Pergunto se não tem medo da descida. Ela diz que só deseja subir. Quer ter a sensação de estar em um lugar muito alto, longe do chão. Tem pesadelos com a lama. Sente gosto de terra na boca quando acorda de seus pesadelos que não se foram. Eles não tem data para deixá-la. Se segundos antes sorria ao falar do sonho, agora chora pela lembrança do pesadelo ainda presente.

Quando me conta sua história, diz que sua prima faria 15 anos no dia seguinte. Planejaram a festa juntas: músicas, vestido, convidados…me vi dentro dela por algum motivo. Talvez todos nós tenhamos perdas. Preparamos festas que não irão acontecer. Temos a lembrança em nós dessas ausências existenciais que nos conectam com a experiência do outro. Isso nos humaniza. Lembra quem somos diante da força das máquinas que nos consomem. Nesses momentos mergulhamos no humano que há no outro e em nós. Precisamos nos encontrar para que haja lucidez. Não fujamos disso. Vivamos como uma oportunidade de respirar o oxigênio necessário da realidade como chance de transformá-la, naquilo que humanamente pudermos.

Ela não falou sobre o pai. Não perguntei. A prima e a mãe já eram ausências suficientes. Disse que tudo o que ela tem é Deus. Quem é Deus?, perguntei. “Quem me dá colo”, ela respondeu. Como Deus te dá colo?, precisava saber. “Não sei explicar, mas sei que me dá.” Se movimenta com dificuldade e espera um dia voltar a andar normalmente. Mora em hotel, lugar provisório, que nenhum executivo da empresa responsável pelo seu acidente um dia se hospedou. O lugar não é bom o suficiente para eles. A decisão sobre isso não parece individual, mas institucional. Não tem face, apenas uma marca com os seus arranhões. Tem duas enfermeiras que a ajudam no tratamento, pagos pela empresa. Elas se emocionam com a Talita. Senti amor no olhar de ambas. O rosto molhado pelas lágrimas mostra que há mais do que a profissional ali. Isso me faz procurar saber se algum executivo da empresa já procurou conhecê-la e saber sua história. Olhar nos olhos? Ouvir e conversar? Talita responde com lágrimas que não. O contato é com assistentes sociais. Parecem mais preparadas que executivos. Digamos que seja apenas uma falta de preparo. Falou sobre preconceito com força. Desejou falar. Não perguntei, veio dela a motivação. Disse que Deus a salvou por algum motivo. Só vê razão em ter sido salva, quando tantos outros morreram, se for para ajudar outras pessoas. Encontra aí algum sentido para a tragédia: ajudar outras pessoas. Entendo, assim, quando Deus se mostra ao que sofre. Mas tem dificuldade de se sentir notado por quem se esconde da dor do outro.

Quando Talita foi resgatada pelo Subtenente Gualberto, do Corpo de Bombeiros, disse que o olhar dela, segundo ele, era de desespero. Ela pediu água. Ele não pode lhe dar. Ela batia com as mãos em suas costas porque doía. Ele se deixou bater. Tempos depois Talita agradece por não ter levado, enquanto era resgatada, nenhum pedaço de pau nas mãos, como aqueles que machucaram seu corpo. Não o pouparia pelo tamanho da dor. Ele, apesar de salvá-la, representava, ali, sua dor. Era quem podia lhe tocar. E ser tocada doía. Mas o olhar dele, segundo Talita, era o de um anjo. Assim, hoje, se recorda de quem a salvou. Até aquele dia, no chão do helicóptero que a fez subir daquele chão de lama, não sabia como era o olhar de um anjo. Agora sabe, segundo ela. Talvez isso torne Deus tão íntimo a ponto de, como afirmou, “lhe dar colo”.

Talita chegou ao meu encontro com poucas palavras. Saiu com um dos sonhos realizados. Ela irá na montanha-russa mais alta que puder. Prometi quando os médicos a liberassem. Foi o nosso até breve. Bettelheim acredita que os contos ajudam os filhos a verem que seus pais, por amor a eles, estão dispostos a arriscar a vida para trazer-lhes a experiência daquilo que sonham e desejam. A afeição que entrelaça pessoas em amor não se limita a relação pai e filho. Isso me faz ser melhor. E não apenas para o meu filho. Talita foi resgatada com amor. O subtenente Gualberto viu a sua filha no corpo e na alma da Talita. Assim a pegou nos braços, como faria com a própria filha, segundo disse. Certamente não viverão “felizes para sempre”. Não acredito que isso seja possível em vida, apesar de desejar toda felicidade para ambos. Nos momentos que a tristeza vier — e virá, espero que saibam daquilo que são feitos: do barro nobre criado por Deus. Não quebram fácil, nem se escondem dos d safios.

Voltando para casa, ao longo de seis horas de estrada, encontro o meu filho de 3 anos. Prometi que voltaria, pois é o que ele sempre me pede quando viajo: Papai “volta-volta”? Conto estórias para ele, mas trago histórias em mim que nos ajudem. A realidade tem a condição de nos fazer sonhar o mundo. Podemos vestir a realidade com os nossos sonhos. Há uma verdade que buscamos. Vamos aonde for para encontrá-la e lá nos fartarmos daquilo que nos guie. Pessoas procuram tantas coisas. Eu procuro verdade. Foi o que vi hoje. Eu me fartei de verdade. Tal qual o pássaro que volta com alimento para os filhos que esperam no ninho, assim eu me sinto. Fui buscar alimento para nossas vidas para que possamos escrever nossas histórias como Talita tem nos ensinado. Ela renasceu. E precisamos renascer junto com ela. Sem receio de olhar no rosto do outro o resultado dos nossos fracassos.

Carlos Netto

Bacharel em História (UFF), mestre em História Social (UERJ), mestre em Ciência da Informação (UFRJ), Doutor em Psicologia (USP) e Pós-doutorando em Comunicação Social (USP). Pesquisador associado da Universidade de Coimbra, Portugal. Professor da FIA-USP. Coordenador do trabalho voluntário A Arte Abraça Brumadinho. Membro do Conselho da Fras-le, em Caxias do Sul. Foi diretor do Banco do Brasil por 7 anos.

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