A POESIA DO CHICO E A PÁTRIA DISTRAÍDA

Redação — Instituto Mosaico
Instituto Mosaico
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6 min readSep 16, 2019

Por Carlos Netto

Foto: Divulgação

Na última semana lemos que o Itamaraty, através da Embaixada Brasileira no Uruguai, proibiu filme sobre Chico Buarque em Festival de Cinema naquele país. Escrevo este texto em momento de emergência existencial. Como escreveu Clarice Lispector: Sou composta por urgências. Minhas alegrias são intensas. Minhas tristezas absolutas…Eu não caibo nos estreitos. Eu vivo nos extremos.

Existir é entrar em contato com o mundo. Nunca se esconder. É preciso salvar o ser. E salvar o ser é desvendá-lo em sua graça. Sem censura de poetas, músicos, pintores, bailarinos e a revelação do ser que a arte é capaz de nos oferecer. A arte é o ser em movimento. Não é possível parar o ser que flui em suas mais variadas expressões. Lembro de um espetáculo de dança que assisti anos atrás. Havia um determinado movimento coreográfico. Após cada movimento, entrava em cena um bailarino que amarrava uma das partes do protagonista. Uma das mãos, um dos braços, pernas e assim foi até só restar seu rosto. Em cada parte víamos seu corpo ser amarrado e a força da tentativa de restaurar a dança original, quando todo o corpo estava livre. Ao final, só restava livre sua fisionomia — seu rosto. E ela nos remetia ao que a coreografia que o corpo fez na primeira cena. Ou seja, você pode amordaçar o corpo, mas a alma é livre em sua expressão. Vi, ali, o quanto a censura é cruel, mas, ao mesmo tempo, limitada frente ao espírito humano.

Desvendar o ser, em liberdade, é reverenciar nele as digitais do sagrado. É justamente isso que faz o ser humano ser adorável. E Deus adorado verdadeiramente em sua criação. Afinal, o homem foi criado imagem e semelhança. Ele nasce, portanto, com a consciência do livre criar. Quem é o homem para censurá-lo?

O gesto do Cristo que divide o pão, inclusive com quem o traiu, é a loucura desse sonho de amor, de respeito ao outro, na mesa para todos. Como revela Leonardo Boff: “na construção de uma nova ordem, num horizonte novo, num universo novo de compreensão, livre, libertado e libertador.” Lembro que certa vez, incomodado com alguns alunos que interrompiam sua aula, perguntei ao professor Boff se não deveria separar alguns minutos para intervenções. Minha sede pelas suas construções me levava a desejar cada segundo daquela presença dele em aula. Ouvi resposta que nunca esquecerei:

Sei o que significa calar alguém. Já tentaram me calar. Na minha aula falarão quando desejarem…e pelo tempo que julgarem adequado. Eu estarei ali ouvindo aquilo que têm para dizer. Em silêncio enquanto falam e abrindo minha mente para aquilo que me dizem.

Falou isso com um sorriso de pai amoroso. Entendi e chorei. Aliás, lembro do sorriso diante da minha lágrima. A partir dali, prestei mais atenção naquilo que o outro tinha para dizer. Há lágrimas que escorrem sem pedir licença, diante daquilo que é divinamente humano. Foi o que aconteceu. Escolas militares que me assustam quando se tornam padrão de ensino. Educação é plural. A poesia de Chico Buarque entrará nessas escolas? Leonardo Boff entraria como professor? Sei que os defensores desses projetos de expansão das escolas militares entendem muito pouco de educação. Desconhecem o limite técnico que possuem. Mas o cargo fala mais alto.

Hegel nos ensinou que sem liberdade não há história. O ser humano é um permanente emergir de necessidades, incompletudes e de diálogos com fatos que o rodeiam. Essa sede de transcendência, de sonhar o mundo e se libertar para SER é que constitui o nosso grande projeto de transformar a realidade. Uma vez criado, o homem é construtor de si mesmo. A estrutura dessa construção não admite a censura. Somos formados de um consciente e inconsciente que não nos deixa escapar da significação que somos capazes de produzir. Sem isso só nos resta os ossos.

Lembro do Vale de Ossos Secos bíblico. Vejo ali o ímpeto divino de estimular o profeta para que vá além, restaurando a alma circulante que nos torna seres livres. Não há graça nos ossos. A beleza vem do espírito livre do humano. Até mesmo para abençoar ou amaldiçoar Deus em nosso livre arbítrio. Acredito que o censor amaldiçoa Deus quando cala toda e qualquer liberdade humana expressa pelas convicções do SER. Ao invés da censura é preciso estimular o humano no encontro plural com o Outro. Existir como pessoa é poder ser diante da subjetividade e do real, do mundo e do Outro. Saber-se a si mesmo significa a possibilidade de contato com o seu contrário — ao não si-mesmo. Assim, reconhecer o mundo em sua totalidade e ao Outro que lhe é estranho ou distinto.

Os animais vivem no fechado ambiente irracional, são 100% dominados pela natureza e agem exclusivamente por instinto. Já o ser humano nasce para o estado aberto. A criança não tem apenas as necessidades do instinto para serem satisfeitas, ela precisa mais do que tudo ser amada, recebida por alguém que lhe dê afeto. Assim, desenvolve sua capacidade de autoestima, de aceitar o Outro como tal. A carência do afeto genuíno faz com que se torne um ser humano violento. Só posso dar confiança a uma criança se há amor na trajetória que realiza nos primeiros anos de vida. A carência desse afeto gera inseguranças que serão expressas na vida adulta. A falta dessa confiança, manifesta na livre existência e pensamento do Outro, torna a vida um tormento, estado de constante ameaça, onde faz-se da vida o inferno da violência, combate constante e da falta de amor. Crianças que cresceram sem amor se tornam adultos que ensinam crianças a fazerem armas com suas próprias mãos. E o diabo faz seu castelo em quem não tem afeto. Mas vive com medo. “O inferno são os outros”, de Sartre, como neurose. Ou o “Paraíso são os outros”, de Valter Hugo Mãe, como redenção humana.

Sabemos como tudo isso termina. O PSL, Bolsonaro e os censores serão lembrados como página triste da nossa história. Sairão na urina da história. Chico será referência, memorial e aquilo que de melhor nossa cultura trouxe ao mundo como identidade. Chico é expressão do amor. Os outros são sua antítese. Um canta a liberdade, como Deus divinamente concebeu o humano. Os outros nos aprisionam como um dia fizeram com o Cristo, pois julgaram que a tortura e a morte o calaria. A rebelião, expressa na poesia, é uma forma de puxar as cordas daqueles que buscam nos prender. Ouço Chico sem cessar. Ele me liberta. E sempre ouvirei em minha mente. Ela é minha. Sabemos que as forças da retração estão vivas e intactas. Sempre residem em quem faz reverência ao ditador, ao milicianos que matam nos seus torpes julgamentos…Infelizmente basta um breve descuido nosso para que os velhos fios insones redobrem seus direitos aprisionadores. Sua vontade de excluir, censurar e dizer aquilo que nos serve ou não. Homens incultos. Eles são assim. Nunca leram Shakespeare. Não entendem Clarice. E fazem da poesia de Chico uma ameaça aos porões que desejam nos lançar. Vaidosos em suas demonstrações de poder momentâneas.

Escrevo para dizer que não seremos novamente puxados pela força dessas bestas que nos querem fazer de gado para tração rumo ao mundo sombrio. Precisamos da luz da poesia do Chico como girassóis desejosos daquilo que faz a vida ter sentido. Há coisas valiosas nas quais acredito. Não vou me calar. Preciso dizê-las em casa, nos momentos em família, nas ruas e, acima de tudo, para mim mesmo. Um dos dois maiores pecados humanos descritos por Kafka (e não Kafta…dos censores) é a preguiça. O cansaço de quem deixa de lado o momento histórico que vivemos. É o primeiro passo para dar força aos que desejam se alimentar da nossa liberdade. A avenida sempre será do samba popular. Cada paralelepípedo da cidade se arrepia quando vê a nossa força e não o nosso cansaço. Pense nisso.

Carlos Netto

Bacharel em História (UFF), mestre em História Social (UERJ), mestre em Ciência da Informação (UFRJ), Doutor em Psicologia (USP) e Pós-doutorando em Comunicação Social (USP). Pesquisador associado da Universidade de Coimbra, Portugal. Professor da FIA-USP. Coordenador do trabalho voluntário A Arte Abraça Brumadinho. Foi diretor do Banco do Brasil por 7 anos.

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